A Outra Lydia Kinsley escrita por Bea Mello


Capítulo 13
Vallencourt




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Quando retomei a consciência, o banheiro parecia muito mais claro do que eu me lembrava. O som do exaustor também parecia mais alto. Eu estava estirada de costas no chão gelado encarando o teto, e a forma sobre mim foi aos poucos entrando em foco, revelando uma expressão preocupada.

Focando em me situar primeiro, respirei fundo, esperando que todos os meus órgãos fossem esmagados com o ato. Para a minha surpresa, senti meu pulmão se expandir a sua capacidade máxima. Então repeti mais duas, três vezes. Encarei os azulejos pretos e beges por alguns segundos, até que a forma se pronunciou.

“Tudo bem aí?” perguntou Scott pairando sobre mim.

Scott?

Me sentei às pressas, levando um susto — e o assustando junto — quando senti o vestido frouxo prestes a revelar muito mais do que eu gostaria na frente daquele estranho.

“O que você fez?” questionei sem pensar, minha voz leve enquanto eu tentava me encontrar no meio de todo aquele enigma de tecido.

“Você… disse que não estava conseguindo respirar. Então abri seu vestido.”

Eu o encarei por um momento, suspeita. Não me lembrava de ter dito uma palavra…

“Me desculpe, eu tentei ajudar,” continuou, seu rosto enrubescendo. “Sério.”

Quando meus pés finalmente encontraram o chão me levantei, Scott erguendo-se comigo. Ele parecia estar dizendo a verdade — e estava certo, eu não estava conseguindo respirar —, mas a forma como ele me olhava, como se estivesse procurando incessantemente por algo em meu rosto, não me deixava confortável.

“Obrigada,” respondi seca, segurando o corpete do meu vestido no lugar como se minha vida dependesse daquilo.

“O que aconteceu com você?”

Eu pisquei rapidamente, um tanto confusa. Tinha que me lembrar que ele não estava falando comigo e, sim, com a Lydia.

“Hã, eu… meu vestido está apertado demais. Acho que não estava tendo, é… oxigênio… suficiente.”

Senti meu rosto corar. Ele iria entender que eu estava confusa. Não é todo dia que alguém desmaia dessa forma, seria normal não estar falando coisa com coisa. Não é?

Pela primeira vez meu olhar parou em seu rosto. Ele era realmente muito atraente. Mesmo de salto, ele ainda era uns bons dez centímetros mais alto que eu, e apesar de cada fio de cabelo preto estar em seu devido lugar, algo nele me dizia que ele não era do tipo engomadinho. Seus olhos fixos em mim não hesitavam; ele esbanjava uma confiança invejável, como se soubesse todos os segredos do universo e não tivesse interesse nenhum em compartilhar com o mundo.

Percebi o canto de seus lábios vacilarem num sorriso.

“Eu quis dizer com você. Tá diferente.”

Tudo bem, talvez ele saber todos os segredos do universo não funcionasse a meu favor.

Esbocei um sorriso. Eu poderia enganá-lo. Se minha irmã fosse tão próxima deste homem eu saberia, Sarah teria me informado.

“Impressão sua.” Dei de ombros, virando-me de costas enquanto lutava para segurar meu vestido no lugar. “Me ajuda a fechar isso aqui, por favor.”

“Claro, desculpe.”

Acho que eu já estava tão constrangida que virar minhas costas nuas para Scott não me causou nenhuma reação. O quão pior as coisas poderiam ficar? Respirei fundo e me apoiei com os cotovelos sobre a porta do banheiro, enquanto ele começava a fechar o espartilho com puxões firmes.

Me esforcei para manter meus pulmões cheios o tempo todo, mas era difícil com um espartilho feito para me fazer caber em um vestido dois números menores.

Scott pausou com um suspiro.

“Dá pra parar de gemer? Isso tá ficando estranho.”

De repente, eu estava ciente demais de cada detalhe — sua perna roçando ao lado do meu vestido, seus dedos quentes sobre a pele gelada das minhas costas, a posição em que nós dois nos encontrávamos naquele momento. Senti meu rosto pegar fogo.

Me mantive imóvel por um breve segundo, boquiaberta, e antes que eu pudesse me segurar, estava respondendo:

“Você não conseguiria me fazer gemer nem que tentasse.”

Eu não soube dizer se o som que saiu do fundo do seu peito era uma risada abafada ou uma expressão de desgosto, mas deixei isso de lado imediatamente. Para falar bem a verdade, eu não me importava. Só queria estar longe daquele lugar e daquelas pessoas o quanto antes.

Scott continuou trabalhando em meu vestido quando senti a porta se mover sob meus cotovelos. Como um raio, a mão de Scott segurou a porta, ao mesmo tempo em que soltei todo meu peso para evitar que ela abrisse. Ficamos ali parados por uns dois segundos enquanto eu me odiava por não conseguir tirar os olhos das tatuagens sobre as costas da sua mão, que pareciam se estender por baixo do blazer. Era óbvio que ele tinha uma tatuagem do rosto de um lobo. Muito conveniente.

Rapidamente Scott puxou o zíper. Com um braço eu o empurrei para trás da porta enquanto a abria, escondendo-o da vista de quem entrava.

O homem parado do lado de fora me encarou, seus olhos azuis hesitando entre mim e a placa na porta.

Abri o sorriso mais inocente que consegui.

“Me perdi.”

Ele abriu a boca, mas nenhum som saiu. Alisando seu terno, ele entrou no banheiro e logo foi em direção aos mictórios, escondidos da entrada do banheiro por uma parede.

Sem olhar para trás, me retirei de cabeça erguida, a porta fechando atrás de mim com Scott ainda lá dentro. Nada aconteceu, pensei comigo mesma. Ninguém viu nada. Agora eu só precisava pegar minhas coisas com Nina e ligar para Sarah. Eu poderia dizer a Nina que não estava me sentindo bem — o que não deixava de ser verdade. Sarah, por outro lado, seria mais difícil de convencer.

Para meu desprazer, ouvi a porta do banheiro masculino abrir e fechar e, mesmo sobre o carpete, sons de passos atrás de mim.

“Então, quem é você?” perguntou Scott colado em meus calcanhares.

“Como assim? Você me conhece,” me fiz de boba sem nem ao menos olhar para trás. Se eu não desse importância ao assunto, talvez ele me deixasse em paz.

“Você claramente não é quem você está fingindo ser, então...”

Desta vez, franzi o cenho ao encará-lo. Seus olhos castanhos dançavam incansavelmente por todo meu rosto.

“Não entendi.”

“O que houve com sua tatuagem de golfinho?”

Travei no lugar por um breve segundo — breve o suficiente para fazê-lo esbarrar em mim —, e me condenei por isso. Várias situações possíveis passaram pela minha cabeça enquanto eu o encarava. Ele estava tentando me enganar? Mas se fosse isso, como ele teria notado tão rapidamente que eu não era ela? Talvez Rose tivesse uma tatuagem da qual nem eu nem a Sarah sabíamos. E aparentemente Lydia esteve bem à mostra no último clipe da banda deles.

Ainda assim, eu tinha certeza que minha irmã e ele não eram tão próximos. Eu sabia exatamente como contornar a situação.

Com toda minha habilidade de atriz, meu rosto se iluminou.

“Ah,” dei uma risadinha. “Aquilo era temporário.”

Ele semicerrou os olhos, seus lábios grossos esticados em um sorriso malicioso.

“A gente se esbarrou no estúdio no dia, lembra? Eu vi meu tatuador fazendo a tatuagem.”

Congelei meu rosto no lugar, tentando não esboçar nenhuma reação enquanto revirava meu cérebro por uma desculpa.

“Ah, você diz a outra tatuagem de golfinho?” Eu ri de nervoso, do quão estúpida eu soava, mas me assegurei de que não fosse essa a impressão passada. “Bem, eu cobri por hoje.”

Essa devia ter sido a minha primeira resposta. Eu queria morrer — na verdade, acho que Sarah iria garantir isso assim que a gente se encontrasse.

“A gente se vê mais tarde?” perguntei, voltando a caminhar rapidamente, e dei graças a Deus que Scott ficou ali parado, apenas sorrindo.

“Eu nem sei quem você é,” disse ele de forma descontraída, como se estivesse se divertindo com a situação.

Eu parei e o olhei. Queria retrucar, mas sabia que era uma ideia idiota — além de que, apesar da desconfiança dele, eu tinha que continuar sendo Lydia. Sem respondê-lo, dei as costas a ele e saí dali.. Era óbvio que eu não o tinha enganado. Acho que eu estava mais confusa com a minha própria identidade do que ele.

Em um minuto, expliquei a Nina que não estava me sentindo bem e liguei para Sarah, já prevendo sua fúria. Eu só queria sair dali. Queria deitar na cama confortável do hotel e dormir até a hora de ir embora. 

Enquanto o telefone chamava, eu averiguava as escadas na saída de emergência, certificando-me de que ninguém estava por perto.

“Oi,” ouvi a voz do outro lado da linha.

Imediatamente senti meu rosto formigar, e meus olhos logo se encheram de lágrimas. Respirei fundo, me certificando de que eu não iria chorar com Sarah ao telefone.

“Eu preciso ir embora.”

“Por quê?”

“Eu não estou bem, Sarah,” despejei, minha voz apertada na garganta. “Eu não estou conseguindo respirar nessa coisa, minha cabeça parece que vai explodir, e eu tenho certeza que o cara do 13Wolves estava rindo da minha cara, tipo, dois minutos atrás.”

Ouvi a risada de Sarah do outro lado da linha e apertei meus olhos, mas não foi o suficiente para evitar as lágrimas escorrerem.

“Por causa do seu discurso?” perguntou ela.

“Eu desmaiei no banheiro masculino. Só estava ele lá,” expliquei antes que ela pudesse se preocupar, o choro já nítido na minha voz apesar de eu estar me esforçando para contê-lo. “Ele me ajudou, ele abriu meu vestido e o espartilho, mas ele me perguntou de alguma tatuagem e eu não soube como reagir.”

Acho que Sarah percebeu que eu já estava desesperada àquela altura — ou então estava com medo que eu fosse fazer mais alguma cagada.

“Vou mandar o carro buscar você, espere na saída do palco, do lado direto.”

Pensei em perguntar onde ficava isso, mas eu não queria importuná-la ainda mais.

“Obrigada,” murmurei.

#

Mesmo com Sarah me assegurando de que havia falado com Scott para “agradecê-lo”, não consegui dormir direito naquela noite.

Tomei um banho demorado, e aproveitei que ninguém podia me ver chorar ali para descarregar tudo que eu tinha guardado. Já havia algum tempo que eu não fazia isso. Quando saí do banheiro, meus dedos estavam enrugados.

Sarah pediu serviço de quarto para mim, incluindo uma variedade de legumes refogados com pedaços de frango e uma vasilha grande de salada de frutas e, de sobremesa, um chocolatinho. Depois voltou para o seu próprio quarto. Acho que ela estava tentando me pedir desculpas por não querer me dizer exatamente como foi a conversa entre ela e Scott. Não consegui esconder estar chateada. 

Pelas próximas horas, me distraí pesquisando tudo sobre Scott Vallencourt que eu consegui encontrar na internet — o que infelizmente não era muito.

Ele nasceu em Long Island, tem 29 anos e seu interesse pela música começou aos dez anos, quando teve sua primeira aula de piano. Essas eram as únicas informações pessoais na Wikipedia. Todo o resto era relacionado à banda: conheceu Fred na faculdade, os dois começaram tocando em bares pela cidade de Nova York e pelo caminho encontraram Mike e Cody. Logo depois do primeiro single eles estouraram.

Eu não conseguia explicar o porquê, mas a falta de informações sobre a vida dele me frustrava. Talvez fosse porque eu — bem, Lydia — devia conhecê-lo, mas não havia outra saída que não pessoalmente. Ou então porque ele percebeu imediatamente que eu não era quem estava fingindo ser, e eu queria ter algo contra ele também.

De qualquer forma, eu estava em desvantagem.

Depois de dormir três horas naquela noite, fiz as pazes com o fato de que eu não conseguiria pegar no sono novamente, então, quando percebi o sol entrando pelos vãos da cortina, me levantei e desci até o restaurante do hotel. Imaginei que o preço por noite da minha suíte era uma boa desculpa para encher minha bandeja com tudo que me parecia minimamente gostoso.

Escolhi uma mesa bem longe da porta, e rezei para que Sarah dormisse até mais tarde. Se ela visse o conteúdo da minha bandeja — torradas, ovos mexidos, bacon, waffles e um milkshake de morango — teria um infarto.

“Você não conseguiu terminar sua história ontem.”

Scott surgiu ao meu lado com uma xícara de café e um bolinho de chocolate. Eu franzi a testa, confusa. Era cedo e eu estava cansada demais para ter que lidar com isso.

“Sobre ter matado Lydia Kinsley,” ele continuou.

Não pude evitar soltar uma risada. Me perguntei se em algum momento eu fiz parecer que era o que eu havia feito, mas não era possível. Pelo meio sorriso em seu rosto, deduzi que ele estava mesmo brincando.

Eu não sabia o que Sarah havia dito a ele na noite anterior, então decidi mudar de assunto.

“Não dormiu?”

Ele passou a mão pelos cabelos parando na nuca, as tatuagens da parte interna do braço expostas. Pude notar uma frase em uma língua estranha para mim, mas antes que pudesse espreitar melhor, ele abaixou o braço e se apoiou nos cotovelos.

“Nem um minuto. Estive tentando descobrir quem é você.”

Que charme. Apesar de parte de mim, bem no fundo, desejar que fosse verdade, eu sabia que ele só havia dito aquilo para não contar o motivo real da sua insônia. Eu fiz isso por muito tempo para ser enganada da mesma forma.

“Mentiroso,” acusei.

Ele pareceu pego de surpresa por um momento, mas logo continuou.

“Seja lá o que passei a noite fazendo, eu não contaria para você.” Seu tom não era hostil, mas não pude evitar me sentir um pouco desapontada. “Eu nem sei seu nome.”

Se ele estava tentando me persuadir a falar algo que eu não devia, não era assim que ele teria sucesso. Sem saber o que responder, dei uma mordida no meu waffle.

“Está com fome?” perguntou sarcástico, tomando um gole do seu café em seguida.

No meu tempo, terminei de mastigar e engoli. 

“Você não me julgaria se visse a minha conta desse fim de semana aqui,” constatei.

Ele se inclinou, aproximando-se de mim como se estivesse prestes a me contar os segredos da Área 51.

“Já viu a minha?”

Sem tirar meus olhos dos dele, tomei um gole do meu milkshake. Pela primeira vez notei as leves sardas sobre seu nariz e bochechas, que se estendiam sutilmente até seu lábio superior. Eu já havia visto aquele olhar várias vezes antes, e quando me dei conta, eu estava o olhando da mesma forma. Juntos, nós dois nos endireitamos na cadeira, como aquele momento de pânico quando você sonha que está caindo e acorda com um sobressalto.

O que eu estava fazendo? Não podia baixar minha guarda por causa de sardas e um sorriso bonitinho.

Não importa o quão bonitinho fosse.

“Eu queria te pedir desculpas por ontem,” continuou.

“Pelo quê?”

“Bem, acordar com seu vestido todo aberto com um cara em cima de você não deve ser muito… agradável.”

Apesar de nunca ter dado muita atenção à essa possibilidade, ele estava certo. 

“Não mesmo, mas está tudo bem. Você fez o que precisava.”

“Mesmo?”

Eu assenti.

“E obrigada. Por me ajudar.”

Ele franziu os lábios num sorriso tímido e tomou mais um gole do seu café. Percebi que ele estava pensando no que dizer, então não o pressionei. Apenas continuei comendo, surpreendentemente confortável com o silêncio entre nós dois.

“Olha, eu sei que Sarah me pediu para não fazer perguntas.”

Ergui minha cabeça e o encarei, surpresa.

“Pediu?”

“Bem, sim. Ela não deu muitos detalhes, mas eu entendi que você não é você. Disso eu tenho certeza.”

“E você vai fazer o oposto do que ela pediu?”

“Algo me diz que você não se importaria.”

Bem, eu não podia julgá-lo. Eu era profissional em fazer o oposto do que Sarah pedia.

“Pode me perguntar o que quiser. Se eu vou responder é outra coisa.”

“Você me diria seu nome?”

“Não.”

“Essa foi fácil,” ele suspirou. “Olha, temos um show hoje à noite e mais tarde vamos comemorar o aniversário de Cody. Você vai com a Nina, né?”

Eu não estava muito a fim de fazer nada o dia todo, mas por mais errado que fosse, parte de mim queria me aproximar de Scott. Além de que eu havia prometido a Nina que faria companhia. Pensando bem, eu tinha mais motivos para ir do que não ir, mas decidi não dar o braço a torcer tão fácil.

“Eu vou considerar.”

Scott esticou os lábios em um sorriso e se levantou, levando sua xícara de café e seu bolinho intacto com ele.

“Te vejo hoje à noite então.”


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