Por quem voam as borboletas? escrita por Jiji Castellum


Capítulo 1
Capítulo 1 - Harley




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Borboletas – Curiosidade 1:

Para voar, as borboletas dependem da energia do sol, captada por suas asas.

 

Há uma frase do escritor Walt Whitman que tornou-se para mim uma lembrança contínua. Não que eu seja uma admiradora de poesia, não se engane. Foi apenas uma frase que li em um dos livros da escola, e é claro, eu fora obrigada a fazer isso. Era um amontoado de palavras escritas à mão por algum adolescente crente que entendia as palavras do poeta americano. Não há como entender, eu não entendia. Porém, ainda que minha mente fosse uma tela em branco, um mar sem peixe e um céu sem lua, eu pude me identificar com as palavras do escritor. Por um instante, o que Walt Whitman desejou para si, eu desejei para mim. Por entre nuvens mal desenhadas, genitálias masculinas e gotas secas de uma bebida escura, estava escrito:

Penso que eu poderia mudar-me para viver com os animais, eles são tão plácidos e independentes. De pé, eu olho para eles por muito e muito tempo.

As iniciais do escritor vieram em seguida. Não lembro em qual aula eu estava, nem o nome livro em que li essa frase, não era importante, mas depois ao anoitecer em meu quarto, me vi pesquisando sobre aquilo que eu queria para mim. Naquela noite, pude ler o resto do poema:

Eles não suam nem se lamentam de sua condição,

Não se deitam e rolam acordados no escuro chorando por seus pecados,

Não me deixam enjoado discutindo seus deveres perante Deus,

Nenhum está insatisfeito, nenhum está ensandecido com a mania de possuir coisas,

Nenhum se ajoelha diante do outro, nem para os de sua espécie que viveram há milhares de anos,

Nenhum é respeitável ou infeliz na terra toda.

O resto do poema não me cabia, ignorei assim sem perceber. De vez em quando lembro-me dele, pois é a minha lembrança contínua. Não há nada mais que eu queira me lembrar, bastava-me o meu presente.

Foi há uma semana, eu descia a rua inclinada perto de minha casa para poder passar em um supermercado bem conhecido. Meu desejo era por algo gelado, para aliviar o inchaço interno que tinha na minha boca, mas o dinheiro que eu tinha fora o suficiente para uma mísera barrinha de chocolate. Há algo que me marcou, as feições dos que estavam no supermercado. Eu não os culpava, já que o lado direito de minha face estava machucado, uma mancha rosada com borda roxa estava se formando também. E os meus óculos, — que eu não devia ter usado naquele dia, — se encontravam com as lentes rachadas sob o meu nariz, meu lábio inferior estava cortado, minhas roupas estavam fora do lugar e minhas mãos cortadas e elevadas. Acho que eu mancava também. Tinha quase certeza que minha coluna havia sido fraturada. O pensamento deles deviam oscilar entre um possível atropelamento ou que eu fugia de um sequestrador.

O rosto do atendente do caixa foi ainda melhor, ele era um gordinho de cabelo encaracolado. Estava com fones nos ouvidos, mastigando algo que provavelmente era bom e só notou a mim, quando o cutuquei para pagá-lo. Ele me encarou por alguns segundos, consumido pela surpresa. Apenas quando reclamei ele voltou a si. Quando saí do estabelecimento que possuía a mesma idade que a minha, precisei abrir aquele chocolate com força, já que a embalagem não colaborava. O problema não era todos que passavam por mim me olhando da cabeça aos pés, alguns até pareciam preocupados, o problema era toda aquela atenção indesejada. Nunca gostei de olhares. Lembro bem que apesar da dor que eu sentia, o gosto do chocolate com amendoim melhorou um pouco o meu humor. Àquela altura, eu sabia que não ia durar muito já que eu estava perto de casa. Decidi comê-lo lentamente, eu queria fazer durar aquela sensação. Tornaram-se raras, as boas sensações. Pequenos prazeres deviam durar mais.

E como minha má sorte estava solta naquela dia, vi que meu pai também estava em casa quando passei pela porta pivotante da entrada. Não pude evitá-los, embora uma parte minha quisesse.

Vi minha mãe, Holly, derrubar no chão a bandeja que tinha em suas mãos, para depois esconder o rosto que desmanchava-se em lágrimas. Aquilo perfurou meu coração, como não? Eu percebi que ver minha mãe chorar me fazia querer chorar também.

Meu pai, Húlio, nada disse. Acho que ele não conseguia. Ou não queria. Ele tinha aquele olhar de quem havia perdido outro filho. A decepção era tão visível, que me machucou bem mais do que um chute da Kate. Ou um puxão de cabelo da Jane, ou a humilhação de ser cuspida pelo Johnny.

Minha mãe correu até mim, e ah as suas palavras. Ela não podia ter ficado calada? Ela não podia apenas me sacudir e dizer que eu havia passado dos limites daquela vez?

Seu abraço doía em mim, no entanto não podia afastá-la. Talvez, eu merecesse mais essa dor. Queria acalmá-la, mas acho que dizer a ela em como eu deixei os outros não a confortaria. Nada a confortaria. Talvez, Daniel a confortaria. De nós dois, ele sempre foi o melhor em fazer isso. Não é à toa que ele fazia falta. Ele era o encarregado de pedir as desculpas, e eu? Ficava atrás dele ou acabava por fugir. Eu estive por muito tempo atrás dele, como uma boa sombra. E estive sempre fugindo, ele adorava me lembrar isso.

Meu pai se juntou a minha mãe naquele abraço agonizante. Aquele abraço que dizia que a vida continuava, apesar das dores. Aquele abraço que dizia para eu não me entregar, apesar de já ter me entregado, para eu lutar, mesmo sem eu saber como. Diziam para eu ficar bem. E apesar dessas palavras serem apenas frutos da minha imaginação, eu dei a resposta a eles em voz alta.

― Eu não posso. Eu não consigo. Eu não sou como vocês. ― Minha voz saiu sufocada e firme, não chorei. ― Eu quero ir morar com a vovó e com o vovô. Eu quero ir embora.

Esses foram os acontecimentos que me trouxeram a essa cidadezinha chamada Portis e a esse momento hesitante.

Eu estava de pé, olhando para a casa caramelo por muito e muito tempo. O gnomo de cerâmica do jardim me lançava aquele olhar torto dele. Pensei em seguir pela passarela da grama verde, pensei em dar meia-volta. Imaginei-me tocando a campainha, imaginei-me entrando no trem. Meus pensamentos eram extremos. Ou é oito ou oitenta. Enquanto eu ia até a casa, escolhi oitenta.

Espírito dos mais ameaçadores medos e de dúvidas (porém sempre avante e firme e insistente).

 

                                                                                                 

 

Quando subi os degraus do batente para chegar na varanda, procurei por uma campainha, e incrivelmente eles não tinham uma. Bati na porta com decorações um tanto estranhas como ciscos de natal. A vovó realmente estava atrasada. As minhas batidas aumentavam, mas nenhum ruído vinha da casa. Eu esperava até mesmo um latido vindo do Soren, um vira-lata gordo e velho que eles tinham. Eu até hoje não sei como aquele cão está vivo.

O meu receio era que eles tivessem ido até a estação de trem, eu havia mandado uma mensagem avisando que não precisaria. Espero que eles tenham visto, não teria como eu saber, pois o meu aparelho celular estava descarregado, não quis admitir antes, mas acho que havia perdido meu carregador. E não me importava, pois algo que não me aprisiona é o celular. O meu é de anos atrás, onde suas funções simples são mensagens e ligações. Não, o joguinho da cobra também funciona. Tentei mais uma vez, me agarrando a esperança de que haviam tomado remédios para dormir. Se isso for uma boa coisa.

― Eles não estão em casa. ― Uma voz veio um tanto longe, atrás de mim. Eu olhei por cima do meu ombro e mesmo com a minha vista embaçada – devido a uma miopia aguda, e a minha incapacidade de usar óculos – avistei um rapaz loiro usando blusa xadrez e botas, parado na rua. Era ele que havia falado comigo, então.

Eu dei um olhar afirmativo, pois não gostava de falar muito com pessoas, e ainda por cima pessoas desconhecidas. Eu esperava que ele já houvesse ido embora, mas quando voltei a olhar ele ainda estava lá. Decidi não me importar já que ele deveria morar por ali. Considerei que todos guardavam chaves reservas em lugares secretos como vasos de plantas ou debaixo dos tapetes.

Minha avó tinha vasos de plantas, mas ela tinha vários vasos de plantas. Tapete ali só havia um, e seria muito fácil para mim. Chequei levantando o tecido sujo de terra, e nada havia além de grilos. Me fez perceber que tinha anos que eu não reparava em um grilo. A cidade grande realmente havia ficado para trás.

O cansaço tomava conta de mim, e tudo que eu precisava era entrar naquela casa para tomar um banho, sem falar na minha barriga que se sustentava com jujubas. Foi isso que me impulsionou a enfiar minhas mãos nas terras úmidas daquelas plantas. Em algum deles poderia estar.

― Se está procurando por chaves reservas, estão comigo. ― A voz veio de novo, e eu não pude evitar o balanço dos meus ombros. Ele estava mais perto dessa vez, abaixo da escadinha, me olhando.

― O que? 

― O senhor e a senhora Willow deixam as chaves reservas comigo. ― Ele falou aquilo como se dissesse as horas.

― Eles deixam? ― Tentei entender a situação, para que ele me explicasse. O que não aconteceu.

― Sim, quer dizer, as pessoas não guardam mais as chaves debaixo dos tapetes. Isso seria estupidez. ― Ele dizia enquanto andava em minha direção, ou melhor na direção da porta. Ele tirou um molho de chaves do bolso, e não precisou de palavras mágicas para a porta se abrir.

― De onde eu venho as pessoas fazem isso. ― Não pude deixar de resmungar. Ele se virou para mim.

― E de onde você vem? ― Ele perguntou em um tom condescendente demais para o meu gosto. Agora mais de perto, pude reparar nele rapidamente. Ele era bem mais alto que eu, seus olhos eram azuis, tão azul quanto a piscina que nunca tive. Ele cheirava a madeira nova, era como estar em uma floresta recém molhada pela chuva, e mostrava que ele havia acabado de sair de um banho. Era forte, e um pouco intimidador. Ou talvez eu fosse intimidada por qualquer pessoa. Quando eu tomei coragem para rebater com algo não preparado, algo nos tirou nossa atenção. Soren vinha caminhando em suas quatro patas como um velho cansado. Ele estava vivo, e eu duvidava arduamente das suas capacidades de latir.

― Ei, amigão. ― O cachorro caminhou até o loiro condescendente como se o conhecesse. ― Está com fome? ― E minhas surpresas não acabavam. O loiro adentrou a casa e o cachorro o seguiu. Pelo visto, a única coisa não habitual aqui era eu. Eu entrei no cômodo não muito diferente de três anos atrás. As mesmas decorações claras, o mesmo sofá com plantas esquisitas desenhadas nele, a mesma TV, a mesma escada e apenas uma diferente mesa de centro. Minhas lembranças não vieram mais à tona, graças ao loiro que voltava da cozinha.

― Então, Harley...

― Como? ― E como eu disse, minhas surpresas não acabavam. Como ele sabia meu nome? E por que ele está na casa dos meus avós, como se conhecesse aqui há muito tempo? E por que eu ainda não sei quem ele é? ― Como você sabe meu nome? E por que você alimenta o cachorro dos meus avós, e tem a chave da casa deles? Quem é você?

― Nossa. Como eu odeio perguntas. ― Ele murmurou como se eu não estivesse lá. Ele me ignorou claramente nos cinco segundos que se seguiram. ― Você quer que pegue suas malas?

― Você não vai me responder? ― Voltei a falar, um pouco confiante dessa vez.

― Nós estamos tendo uma conversa mais longa do que o esperado, não é? ― Ele murmurou de novo. Aquilo me irritou. ― Você quer que eu pegue suas malas? ― Mais parecia um aviso. Eu cruzei meus braços nos seios e disse:

― Por favor.

Eram quatro malas, no total. Para ele foi fácil e eu até me ofereci para ajudar. Mas ele balançou a cabeça em negação. Ficou calado pelo o resto do tempo que se passou, quando terminou com as malas ele se virou por fim para mim e começou:

― O senhor e a senhora Willow foram até uma confeitaria arrumar um bolo para lhe fazer uma surpresa, acontece que estava fechada e tiveram que ir em outra. Aqui em Portis, as coisas boas ficam um pouco longe. Demoraram mais do que previram. Mas já estão vindo, pela mensagem que me passaram. De qualquer forma, eu sou Lucas. Sou vizinho e amigo, conserto alguns móveis de vez em quando para eles. Chaves? ― Ele as estendeu no ar, e eu as peguei absorvendo as informações. Ele falava rápido. ― E quanto ao seu nome, eles obviamente comentaram enquanto mostravam fotos suas de quando era bebê.

― O que...

― Ah e não esqueça de trancar tudo, alguns guaxinins costumam invadir as casas por aqui.

Ele saiu fechando a porta e me deixando um pouco zonza. Soren, o cachorro, parecia rir de mim. Sei que não, mas parecia.

 

                                                                                             

 

Grace e Tucker Willow eram casados há mais de 40 anos, pelo que diziam. Grace demorou a engravidar conseguindo apenas ter uma única filha chamada Holly, minha mãe. Grace e Tucker são os avós que qualquer criança iria querer ter, enquanto Grace nos engordava, Tucker nos botava a perder. Tucker nos ensinava a pescar, caçar, atirar e pular no rio sem ter medo do que teria nele. Nos ensinava que a vida não passava de aventuras e que deveríamos aproveitar cada uma delas.

Grace era mais doce, cuidava dos nossos machucados, trazia bolo com chocolate quente e ligava a televisão para que pudéssemos assistir desenhos. Já Tucker nos contava lendas de terror, contava achar desnecessário escovar os dentes, arrumar a cama e pentear o cabelo.

Os dois tendo apenas uma filha, deviam mesmo se fazer com os netos. Eu tenho vagas memórias nossas, mas tenho as melhores. Como na vez, em que Tucker foi picado por abelhas e ficou parecendo um tomate. Na época, foi engraçado.Ou quando Daniel saiu correndo, pois uma cobra havia se enroscado em sua perna, eu e Tucker rimos muito na hora. Só depois fomos descobrir que ela era bastante venenosa. E até mesmo o dia em que eu quase caí de uma árvore, me salvando pelo vestido preso em um dos galhos, permanecendo estendida no ar, minha calcinha exposta aos ventos.

Eu sentia a falta deles. Acho que são os únicos seres humanos que gosto de abraçar.

Nós estamos assim há um tempinho, desde que chegaram. Eles não me soltavam e eu também não queria que isso acontecesse tão cedo, nos braços deles senti vontade de abrir a torneira, mas não era hora de estragar o momento.

Não guardei de imediato meus pertences, estávamos no entardecer de um dia da semana, haveria muitas outras coisas para me preocupar, deixaria então para depois. Nós três bebíamos café com bolo de laranja, Tucker em sua velha cadeira acolchoada e Grace em uma poltrona ao lado dele. Eu tomava todo espaço do sofá, e Soren dormia em sua cama no canto da sala. Eles ditavam regras da casa, falavam das alergias do cachorro, horários, comidas, obrigações. Não foi muito difícil de ouvir, seria mais difícil colocá-los em prática.

Eu senti falta do silêncio também. A cidade grande podia ser perturbadora. Mas aqui com eles, a calmaria me atingia de um modo confortante. Eles ainda falavam de como seria tudo daqui para frente. Evitavam falar sobre o passado, e o que me trouxera a viver com eles. Eu podia sentir os ovos entre nós.

Discutiram também sobre o colégio onde eu terminaria meu último ano (tenho quase certeza que ela contou o nome, mas não prestei atenção), era uma boa escola pública e a minha avó tinha muitos conhecidos por lá, visto que mais nova fora professora. É claro que ela não parava de encher a bola do colégio, o que infelizmente não funcionava em mim. Nada de amizades, nada de atividades extracurriculares, ou passeios aleatórios. Nada além do necessário. Cheguei a pergunta que eu tanto queria fazer.

― Então, vovô, vou poder ir na caminhonete até o colégio, certo? ― Perguntei tentando amolecer o coração do velho e pensando naquela linda C10 azul dele. Mas o fiz rir, no final das contas.

― Não. ― Ele negou e voltou a rir.

― Por que não? ― Sentei-me no sofá, mostrando minha insatisfação. ― Eu tenho carteira.

― Quem disse que eu confio nessas carteiras? ― Ele disse mais sério do que podia.

― Mas como...? Então o senhor me ensina a dirigir. ― Dei essa opção, discutir o motivo dele não confiar na minha carteira de habilitação não me ajudaria. E eu não queria mencionar o fato de que ele deixava Daniel dirigir.

― Oh minha neta, quem disse que eu confio em mim? ― Ele retrucou.

― Vovô!

― Tucker... ― Minha avó o repreendeu.

― Tá bom, tá bom. Vem comigo. Já tenho algo para você. ― Ele passou por mim, bagunçando meu cabelo. Eu me levantei um tanto alvoroçada para segui-lo. Nós passamos pela cozinha até os fundos da casa, onde dava para sua velha casinha de ferramentas. Eu nem estava sonhando que fosse um carro, mesmo que velho, seja um carro, mesmo que baixo, seja um carro, só seja um carro.

― Então, o que você acha? Mandei trocar os pneus e tudo.

A minha decepção era percebível. Tinha que ser. Pois Tucker me olhava com orgulho. Quer dizer, nós dois estávamos realmente olhando para a mesma bicicleta? Ela era vermelha, com laços nos freios e até mesmo tinha uma cestinha na frente. E era uma bicicleta, uma bicicleta.

― Ah, vovô. Eu não sou a chapeuzinho vermelho. ― Resmunguei e ele ouviu.

― Desde quando a chapeuzinho anda de bicicleta? ― Ele indagou, a vovó aparecendo atrás dele.

― Harley, você não precisa ir nela. Tenho certeza que se eu falar com o Lucas, ele leva e a traz todos os dias. ― Grace me sugeriu. Eu e meu avô levantamos uma sobrancelha.

― Lucas? ― Perguntei.

― Sim, ele estuda lá também. Você o conheceu. ― Ela me respondeu.

― Meu amor, conhecendo minha neta do jeito que eu conheço, ela vai preferir ir nessa linda bicicleta. Quer dizer, olha para ela. ― Entrei de volta na casa, deixando Tucker sozinho paquerando a bicicleta. Grace me seguiu.

― Ah, sim... Já que a senhora citou esse Lucas, vamos falar mais sobre ele. ― Insisti pegando impulso e me sentando na bancada. Ela começara a ajeitar algumas coisas na pia da cozinha.

― O que tem ele?

Eu cheguei a arregalar os olhos.

― Como assim o que tem ele? Ele estava com as chaves da casa, alimenta aquele velhote ali...

― Ei, não esqueça que todos nessa casa são velhotes.

― Não mais. Enfim, ele até sabia meu nome e disse que viu minhas fotos de quando eu era bebê. Quando ele viu minhas fotos de quando eu era bebê?! ― Grace ria enquanto eu falava. Tucker chegou na cozinha e pareceu ter escutado.

― Esse garoto é esperto. Se eu tivesse sido como ele, seria rico. ― Ele comentou. Grace tentou convencê-lo que ele era rico em amor.

― Oi? Atenção em mim, por favor! ― Eu praticamente implorei.

― Harley, Lucas é um menino de ouro. ― Ela começou. ― Ele se mudou faz dois anos, com a mãe, o padrasto e a irmãzinha. Eles têm uma relação conturbada, então nos apegamos a ele. Veja, ele é um faz-tudo. Adora consertar e construir coisas. Tá vendo aquela mesinha de centro? Ele que fez.

― Consertar e construir coisas?

― Sim. Os jarros das minhas plantinhas, o balanço que estava quebrado no quintal, os meus armários. Estão todos bons graças a ele.

― Você sabe que eu faria, docinho, se minhas costas deixassem. ― Tucker ajeitou a coluna envergonhado.

― Eu sei, meu amor. ― Minhas sorriu mostrando os dentes e piscou para mim depois. ― Enfim, não precisa se preocupar com isso. Acho até que vocês podem se dar muito bem.

― Sério...

― Ele vem trabalhar aqui toda noite, e voc...

― Espera, ele vem o que aqui?

― Eu dei a ele a minha casinha de ferramentas, afinal só servia para acumular entulho. O padrasto emburrado dele não apoia os projetos do garoto, cedi um ótimo lugar para ele trabalhar. ― O vovô explicou.

— Você precisa ver o que ele fez com aquela espelunca, até eu gosto de entrar lá. — Vovó falava encantada, talvez ela queira trocar o vovô por ele. Mas se me lembro bem, aquele lugar era uma casa de ratos.

― Bom, pelo que eu entendi ele entra aqui, faz o que quer, tem espaço cedido.

― Com certeza, não do modo folgado com que você fala. Ele na verdade, faz de tudo para não nos incomodar. ― Tucker se gabou de alguma forma.

― Não foi o que pareceu para mim.

― Vai ver ele só estava tentando mexer com você. ― O velho dos olhos verdes falou com uma voz esquisita quando Soren entrou na cozinha.

― E por que ele faria isso?

― Vai saber, não é Soren? Vai saber.

Eu respirei fundo observando as malas perto da escada.

Precisava do meu banho antes de mexer com elas.

 

                                                                                                

 

Já era noite, e eu estava há um bom tempo no meu novo quarto. Era o quarto usado por mim e Daniel quando passávamos as férias aqui. Ele parecia maior na época. Acho que porque nós éramos crianças, e criança não se preocupa muito com espaços. Não é como se fosse algo emergencial ou absurdo, eu nunca fui de ter muitas coisas, nada de objetos feitos para serem jogados fora, como bichinhos de pelúcias, diários de infância, desenhos ou pinturas. Gosto de ser comum, nada complicado. Se apegar era difícil para mim, porque eu teria que me preocupar. As pessoas sempre esperaram pouco de mim, assim eu era, assim eu sou. Em meu antigo colégio, os alunos meio que não gostavam de cair comigo em trabalhos. Não era que eu fizesse de propósito, apenas fazia e faz parte da minha personalidade. Não costumo me preocupar tanto, arrisco até dizer que minha falta de interesse é completamente inocente.

O quarto havia sido reformado, estava com paredes brancas, uma mesa que parecia ser nova no canto da parede, dois criados mudos e um guarda-roupa embutido. Não era grande coisa, mas o suficiente naquele momento. Para não dizer que não houve decoração por minha parte, eu trouxe um abajur dado de presente por meu pai. E dois porta-retratos que se encontravam sem fotos. Achei melhor deixá-los assim.

Eu ainda tinha alguns livros para guardar, sim. Mas eram poucos considerando a montanha que eu havia deixado para trás no escritório do meu pai, escolhi trazer apenas os que realmente achava valer a pena. E eu já havia lidos todos, e relidos não sei quantas vezes. Serviriam de enfeite mesmo. Também tinha o meu Mp3, que não precisava de muito espaço, só um bolso desgastado. A música me distraia. Me tirava de várias fossas. A distração da música era como um néctar para mim.

Ás vezes eu traia os meus estilos favoritos, e escutava um Hip-Hop. Gostava das vibrações que passavam pelo corpo quando escutava as batidas. A vontade de dançar crescia, mesmo que não fizesse isso. Dançar não fazia parte do meu estilo de vida. Penso que um dia poderia ter feito, mas algo aconteceu comigo antes disso. Acho que são pequenas felicidades não realizadas. Pois uma vez, eu já quis fazer de tudo. De desenhar a atuar, embora infelizmente alguém não tenha colocado esses dons em mim. Meus pais uma vez chegaram até me perguntar qual era minha paixão, o meu dom, assim como basquete era o de Daniel. Acho que tentei dizer algo a eles, mas fui interrompida pela quantidade de pipoca que enfiei na boca. Já fiz testes bobos na internet, mas parei quando o resultado foi para botânica.

Escuto por um momento um som vindo da garagem, reconheço o som dela sendo aberta. Vou até minha janela e espio. O loiro com ar condescendente está indo até a casinha de ferramentas do vovô. Ele carrega algo nas mãos, que não pude ver. Por um segundo, ele parece sentir que está sendo observado. Não sei se ele chegou a olhar para minha janela, pois eu não estava mais lá.

Pelo que parecia a presença dele ali era frequente, e eu teria que me acostumar.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por chegar até aqui. O que achou desse primeiro capítulo e o que espera do próximo? Deixe-me saber. Ah, e se tiver notado algum erro de digitação, peço que me ajude e comente aqui também, serei eternamente grata e você ganhará na loteria! ]

Próximo capítulo: Lucas.



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