Lily e Hugo escrita por Maga Clari


Capítulo 2
Gilbert e Anne




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Demorou cerca de duas semanas até Hugo criar coragem e finalmente aparecer na fila da Sonhos Gelados, com o sorriso tímido de sempre, estendendo-me duas moedas de cinquenta centavos e encolhendo os ombros, como se dissesse Ei, Lily, eu quero o sorvete mais barato porque na verdade eu só vim te ver. E eu sei que é verdade, porque percebi seus olhares discretos do lado de fora sempre que fazia o caminho para o Hallow Park. Foi por isso que sorri quando foi minha vez de atender e ao invés do sorvete entreguei um papelzinho antes de tirar o avental e virar a plaquinha de horário de almoço. Corri animada para a sala de funcionários, recolhi tudo que podia e reencontrei Hugo com uma sobrancelha arqueada, à minha espera, do lado de fora. Meu peito subia e descia devido à pressa e à adrenalina quando ele fez a pergunta através de seus olhos expressivos que eu tanto conhecia desde sempre.

 ― Eu vou te buscar. ― digo simplesmente. ― Eu vou te buscar e você pode tentar esse plano aí que eu te entreguei. 

― Mas… Lily....

― Acha mesmo que tem escolha? ― arrisco um sorriso e um beijinho no rosto logo voltando a correr pela avenida, parando apenas ao escutar meu nome em seu tom de voz leve e gostoso ― O QUÊ?!― minhas mãos já estavam acima dos olhos, tentando evitar o sol escaldante de meio-dia.

― E o meu sorvete?

A pergunta simples e inocente me faz gargalhar, como sempre. 

― Tenho algo melhor!

― Então cadê?!

― De noite!

― Lily!

― De noiteeeeeee!

Continuo com a animação infantil de quem planeja travessuras quando solto uma piscadinha e continuo minha corrida para bem longe dele e bem perto de uma chave de portal, localizada no beco escuro entre a praça das Rosálidas e o Centro de Consertos Mágicos. Era um simples chapéu sem abas debaixo de um guarda-chuva lilás completamente fora de propósito em dia tão ensolarado. 

Ajeitando minha bolsa transversal me apresso em segurar de olhos fechados o solene chapéu para então me encontrar na frente do Ministério, também conhecido como trabalho de papai. Olho para todos os lados antes de atravessar a rua e passar pelo estacionamento dos aurores, recebendo um olhar curioso do moço-vigia que já me viu “pegar emprestado” o carro do famoso Harry Potter milhares de vezes sem me delatar.

― Qual a aventura dessa vez, Senhorita Potter?

― Essa eu vou ficar te devendo, Seu Cattermole. ― digo, pegando meu par de óculos escuros da bolsa e fazendo minha melhor pose de agente-secreto ― Assunto confidencial.

― Crianças… ― escutei ele resmungar quando dei marcha e olhei para trás enquanto dava ré.

Eu sabia que meu pai guardava o carro lá por segurança, mas que só o usava em missões bem específicas. Eu já tinha habilitação para conduzir desde o ano passado, mas havia aprendido há pouco mais de três anos antes. Nesse meio tempo, mergulhei no mundo dos trouxas junto com Hugo e minhas amigas e primas, conhecendo toda a diversão do centro jovem de Londres, colecionando boas histórias e muitos amigos. Por isso, não hesito em  utilizar o tão nostálgico veículo para a última das minhas fugas do mundo mágico. 

Lembro-me do dia que peguei Hugo no flagra, bem debaixo da cerejeira. Disse a ele minha proposta e o motivo para tanta preparação. Mas confesso que nem tudo era verdade, nem tudo acabava por ali. Havia um motivo maior e melhor que pulsava dentro de mim e que não poderia transbordar em momento diferente do que este que havia escolhido tão intensamente. Eu diria que o amo, também como uma prima ama um primo, mas nesse caso, mais como uma garota ama um garoto, uma amiga ama um amigo, que sempre foi seu melhor amigo. Eu diria que precisa dele, que precisava que ele me visse dessa mesma maneira, que não acharia estranho porque de estranho já basta ele.

Tentei decorar tudo que diria, o discurso completo. Assisti ao descer do sol e senti o vento no rosto, tudo bem ali, deitada no teto do carro do papai que era até confortável para uma lata velha. Eu havia decorado sua superfície metálica naquele resto de tarde, colocado bem à minha cara. Havia pintado tudo, colocado desenhos de grafite e comprado suprimentos e até um enorme colchonete. Era nele que eu estava a observar o sol e o céu e todas as cores que se formavam entre as nuvens e a natureza ao redor de mim. Durante todo o tempo me perguntei se ele viria, se ele teria entendido a urgência do meu pedido, se ele sentia o mesmo e o que ele diria ao me ver. Sei que há muito em seus olhos perdidos e em sua mente gigante. Sei que lê o que gostaria de viver e que vive o que gostaria de escrever.

No dia que iniciei o meu plano de convertê-lo em minha loucura de road trip foi o dia que descobri que Hugo gostava de romances. Não me leve à mal, é que seria o último tipo de livro que teria imaginado que Hugo gostasse. Sempre achei que ele fosse o tipo de leitor de sci-fi e distopia moderna. Mas lá estava meu amigo de infância, debaixo de uma cerejeira em Hallow Park, todas as tardes, lendo todos os dias, todos os romances. Será que Hugo era desse tipo, afinal? Saberia ele de tudo que eu sinto, de como a minha mão sua quando estou perto, ou de como meu coração dá três voltas inteiras sempre que o vejo abrir um sorriso causado por mim?

Diferente daquele dia, seu novo livro não fala especialmente de amor, fala de vidas, boas histórias, mas fala também de um garoto nerd e uma garota tagarela que por acaso se tornariam inseparáveis, como dois melhores amigos que descobrem que são almas gêmeas tão ingênuas ao ponto de cogitar serem amantes. Esse livro não é exatamente novo, lembro-me muito bem dele, quando dividimos a leitura no primeiro ano. Havia sido presente de Natal da vovó, a coleção de Anne de Greengables. Ela dizia que Anne era uma Weasley perdida pelas terras do Norte, as terras do Canadá. E que a doçura de Gilbert parecia curiosamente com a de Hugo. Os mesmos olhos bondosos, o mesmo apreço pelos animais e pela tagarela da turma, que sempre foi eu.

Por alguns minutos, deixei que meus pensamentos me levassem até o quarto dele. Imaginei o que teria ele pego para nossa viagem secreta. Qual livro escolheria? Qual jaqueta vestiria? Teria posto perfume? Ou apenas colônia pós-banho? Viria ele com o mesmo cheirinho de quando era mais novo, depois de muitas guerras de sabão e patinhos de borracha? Como sou estúpida em pensar essas coisas. Talvez o melhor seja deixar isso para lá. Hugo é apenas um bom amigo e para mim já basta isso. 

Era nisso que pensava quando seu aroma familiar inundou todo o meu coração de amor. Abri os olhos para então encontrá-lo com seu sorriso discreto, uma sacola de tactel de um lado e uma de compras do outro. Misturado à colônia havia chocolate e morangos adentrando minhas narinas e indo direto para os hormônios do sistema nervoso. Ele estava mais bonito do que eu esperava e quando dei por mim ele já havia se colocado ao meu lado, sem nada dizer, sem nem questionar o que teria eu a dizer sobre o motivo de tê-lo chamado para me encontrar atrás do shopping, na rodovia menos utilizada, onde até mesmo um bosque se formava, quando na verdade quem queria fazer perguntas era eu. Todas aquelas que já relatei por aqui. Mas a primeira, a primeira de todas, me escapou pela boca como um segredo, secreto até mesmo aos esquilos, que farfalhavam entre as árvores. 

― Você veio antes de anoitecer. ― meus olhos clamam por respostas sinceras, enquanto viro-me para olhá-lo de lado. ― Por quê?

―  Vim pelo mesmo motivo que veio você.


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