Vício escrita por Anny Martins


Capítulo 4
Grades e jardins de mentira




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TÉO

— Bebe mais um gole, vai! 

Seguro a caneca e deixo que o sabor destilado do vinho mais barato do mercado queime minha garganta de uma só vez. Não vai ser bom quando meu estômago me cobrar mais tarde, mas por agora, é tudo que eu preciso. Além da companhia de Luc e Ester.

É sábado, estamos sentados no jardim falso do prédio em que eles moram. É um dos lugares que eu mais gosto na cidade: você tem toda a sensação prazerosa de se deitar no mato sem sentir a pele pinicar ou ser atacado por insetos ou ser engolido por árvores desproporcionalmente grandes. Embora a grama seja artificial, consigo sentir o cheiro da clorofila enfeitiçando meus sentidos. Se é que sei qual é o cheiro da clorofila.

Já se passaram dois dias desde que Cecília visitou o colégio e sumiu novamente. Muitos rumores correm pelos cantos. Como uma boa cidade média, não faltam boatos contaminados pela superstição: muitos dizem que foi um evento sobrenatural e já começaram a especular que a escola está amaldiçoada (por que ela teria resolvido assombrar o lugar depois de quatro anos?). Outros dizem que ela foi resgatada do rio por uma entidade e levada para longe (onde é que fica esse longe?). E ninguém me disse, porque essa é uma das coisas indizíveis, mas todos os supersticiosos devem achar que a forma mais fácil de se livrar de uma maldição é me entregando a ela. Como se eu não estivesse vivendo minha própria maldição.

Na parte que me interessa — fofocas possivelmente verdadeiras —, a variedade é maior, embora as indagações não sejam menos trágicas: conseguiu sair do rio e foi sequestrada por estranhos, ou encontrada e mantida em cativeiro pelos pais, ou levada pela rede de tráfico de crianças, ou fugida na companhia de um homem mais velho (quem a conhecia sabe que essa é a probabilidade mais absurda). Também não ouvi, mas os céticos devem imaginar que eu a entreguei aos sequestradores ou fiz um acordo com os pais (o que também é absurdo considerando que eu não ganhei nada com isso). 

E o mais importante: nenhuma dessas mentiras dá uma pista dos seus próximos passos.

— Me pergunto como os pais dela estão se sentindo. — penso em voz alta.

Ester está com os olhos fechados, tranquila e levemente bêbada. 

— Como qualquer um se sentiria se reencontrasse alguém depois de chorar pela morte da pessoa. — diz Ester. — Confusos? Felizes? Devastados? Bravos?

Encaro o céu, melancólico. Não deixei de pensar nos pais de Cecília nem por um segundo desde que ela desapareceu. Nem quando foi declarada como morta. Nem no enterro. Nem agora, quando ela ressurgiu magicamente na porta da escola. 

Não os vi muitas vezes. Minha única lembrança nítida deles antes disso tudo acontecer foi no dia em que Mariana quebrou a perna em uma das “aulas de pole dance” que Cecília dava nas barras do parquinho em troca de dois reais (por aula!) quando tínhamos dez anos. Não era a primeira vez dela na diretoria, mas foi a primeira que os pais apareceram.

Se fosse eu no lugar de Cecília, teria de lidar com a reação furiosa da minha mãe e muitas semanas de castigo. Mas tudo que eu vi nos olhos de seus pais foi cansaço. Não pareciam minimamente bravos. É como se estivessem tão acostumados com o comportamento indomável de Cecília que se tornaram apáticos e imunes.  

Tanto no dia do seu desaparecimento quanto no dia do velório, eles tinham esse mesmo olhar, mas intensificado. Pareciam exaustos, prontos para esfarelar. Quando me viram ali, parado, sorriram gentilmente. Não acho que me culparam, mas aquele momento ainda me perturba. 

— Téo... — Luc coloca a mão no meu ombro. — Não foi culpa sua, beleza?

Balanço a cabeça, mesmo sabendo que isso não é verdade.

— Sabe do que a gente precisa? — declara Ester, se animando em uma tentativa de recuperar o ânimo geral. — Uma festa.

Luc abre a boca, mas antes que emita qualquer som, Ester o julga com reprovação:

— Não, Lucas, não ouse nos chamar pra uma rave mais uma vez. Não vai rolar.

Festivais de trance são a nova obsessão de Luc, depois da era dos cabelos coloridos e das maratonas infinitas de Eurovision. De todas, essa é a mais inusitada. Considerando o fato de que ele detesta aglomerações, pessoas suadas, música eletrônica e conversas sobre auras e energias, é como se ele estivesse deslumbrado pelo seu próprio inferno pessoal.

— É só uma questão de tempo até eu convencer vocês, já até separei a roupa de cada um. — responde em tom de deboche. — Mas não é de festa que o Teozinho precisa, e sim de terapia.

Ester e eu reviramos os olhos ao mesmo tempo.

— Tudo bem, depois a gente discute que tipo de terapia o Téo precisa. — rebate Ester.

Olho para os dois como quem diz oi vocês estão falando de mim e eu estou bem aqui. Ela continua:

— Ouvi falar que semana que vem vai ter uma house party... na casa da Mari.

Ela tenta passar uma imagem serena quando diz isso. Eu e Luc nos olhamos, confusos e surpresos, sem saber exatamente como responder a isso. Não era um nome proibido entre nós? Estaria a terapia fazendo efeito em Ester? Será que eu também deveria fazer? Como se eu tivesse dinheiro para isso.

Mariana e Ester se conheceram graças a mim, quando a banda de Ester procurava por uma vocalista. Elas se conectaram imediatamente. Fui quase um santo casamenteiro — nunca contei para ela, mas eu sabia que as duas seriam mais do que amigas, eu torci pra isso, acompanhei cada passo dessa história como se fosse uma série de televisão, pulando, literalmente pulando quando ouvi os detalhes sobre o pedido de namoro. O que posso dizer? Cresci assistindo filmes de romance com a minha mãe.

E então, em um dia, não apenas em um dia comum, mas no aniversário de um ano de namoro, do mais absoluto nada, Mariana terminou com Ester. Disse que não estava mais apaixonada por ela. Foi a Semana Sombria de Ester. Os Meses Sombrios. Ela nos contou, chorou por uma eternidade e, desde então, nunca mais tocamos no assunto. Até hoje.   

— Hum... legal? — respondo, sem conseguir disfarçar o julgamento.

— Gente, já deu, não precisam continuar pisando em ovos por mim.

Ela respira fundo e passa a língua entre os lábios.

— Me sinto pronta pra falar dela. E frequentar os mesmos ambientes que ela.

— Mas precisa ser a casa dela? Não pode ser aos poucos? Até semana passada nós nem falávamos o nome dela em voz alta, Ester. — pergunta Luc, visivelmente temeroso pelo que pode acontecer.

Vocês não falavam o nome dela. — corrige Ester. — Eu realmente não ligo. 

Um silêncio se estabelece entre nós. Por fim, digo:

— Podemos estudar a ideia, vai...

Ir a uma festa não me parece uma má ideia. É um abrigo confortável: posso conversar aleatoriedades com várias pessoas diferentes, beijar várias pessoas diferentes e, sobretudo, não pensar em nada importante. Eu posso apenas me divertir e esquecer que eu odeio tudo sobre essa cidade. Posso ser o Téo simpático e positivo que todo mundo conhece. Aquele que eu sempre fui.

Somos interrompidos pelo toque do meu celular. É uma mensagem da minha mãe.

[15:55] Mãe: Você não vai acreditar, Téo!

                     Os pais acabaram de fazer a matrícula da Ceci!!! :O

Não rolei para ler o resto (emojis e exclamações e variações de estou em choque o que está acontecendo). Minha mãe a chamava assim desde que foi sua professora no quinto ano. História era a matéria favorita de Cecília — embora fosse irritantemente boa em tudo. Ela não puxava o saco de nenhum professor, estava muito acima disso, exceto pela minha mãe. Acho que era uma admiração genuína, e era recíproco a ponto de ter um apelido. Na única vez em que eu dei um apelido para Cecília, ela ficou ressentida de verdade (foi uma das poucas vezes em que apelou sem uma revanche).

Bem original da sua parte fazer piada com o meu olho, idiota. Espero que a sua cara queime da próxima vez que você me chamar assim!

Eu nunca mais a chamei de Zuko*.

Sendo sincero, o apelido me veio exclusivamente pela mancha de nascença no olho, mas a reação dela só provou que a comparação fazia sentido.   

Ester e Luc estão estáticos de curiosidade e receio, esperando que eu fale do que se trata. Tento formular uma frase, mas ela sai embolada demais para que qualquer ser humano possa entender. Ela tira o celular da minha mão e os dois leem as mensagens. Ester ri brevemente.

— Eu amo o espírito fofoqueiro da dona Luisa. Preocupada com você, mas igualmente investida no acontecimento.

— Como uma boa historiadora! — tento brincar, falhando em parecer natural.

Luc ainda está com os olhos na tela, passando por cada mensagem. Ele me devolve o celular e respira fundo. Como se Ester finalmente houvesse absorvido a notícia, ela o acompanha e me olha com cara de pena. Me sinto derrotado. Não recebia esses olhares há mais de três anos, quando consegui deixar isso pra trás (ao menos era o que eu pensava). Nem a Ester recebeu esse nível de misericórdia quando falou sobre ir na casa da Mariana.   

— Como você se sente com essa notícia? — indaga ele, finalmente.

Asfixiado, por toda a culpa que ressurge como se fosse um bicho que despertou de um longo período de hibernação. E, se estou sendo honesto, por outros sentimentos que não consegui decifrar ainda. Por tudo que eu conhecia dela. E por tudo que eu não conhecia.

Mas eu não quero voltar para os dias ruins. Me recuso a ser a garoto triste mais uma vez. Nem as minhas roupas combinam com essa energia de sadboy. Se eu deixar que isso aconteça, ela vai ganhar mais uma vez. 

Eu levanto a cabeça e digo:

— Sobrecarregado... mas não pretendo deixar isso me afetar de novo. 

Pego a garrafa de vinho, mas está vazia.

— É isso! — vibrou Luc, dando tapinhas nas minhas costas.

Inesperadamente, Ester se vira para Luc. Ela parece furiosa, e sei que lá vem um de seus posicionamentos agressivos e verdadeiros-até-demais.

— Você diz que ele precisa de terapia e acha que essa atitude de nãovoudeixarissomeafetar é uma coisa boa? Um belo hipócrita, Luc. É óbvio que isso já afetou o Téo. 

Ela aperta meus ombros.

— Acho que você merece respostas. Não dá pra ignorar isso pra sempre.

Sem disfarçar, Luc arregala os olhos para ela. Imagino que esteja um pouco orgulhoso, porque sabe que ela está certa. Mas eu reconheço esse semblante: o de quem não aprovou o tom. Ele me trata como um filhotinho ferido, chega a ser irritante, sempre orquestrando frases e tentando filtrar as reações sinceras de Ester. Quase nunca dá certo. 

Ele costumava ser honesto sobre tudo: meus desenhos, minha postura, minha reclusão.

Esse traço ficou ruinzinho.

Endireita a coluna, você tá andando feio.

Você não pode passar o resto dos recreios na sala, é chato demais.

E de repente, bastou eu contar toda a história, e ele assumiu esse papel cauteloso, meio pai. Embora isso não combine nada com o resto da sua personalidade expansiva. Eu deixei a sala de aula nos recreios, mas ele continuou medindo as palavras em qualquer sinal de fraqueza da minha parte. Sei que ele tem boas intenções, mas é incrivelmente chato.

Antes que ele possa corrigir Ester com um tom mais brando, eu digo (e isso também me surpreende):

— Sim, eu sei.

Penso ter visto Cecília passar na calçada, entre as grades do jardim, pronta para me contar tudo aquilo que eu não sei e implorar por desculpas. Respiro aliviado quando ela vira o rosto e eu estou errado, porque não sei se realmente quero ouvir. E não preciso ouvir, já que logo isso não passará de um passado distante.


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Notas finais do capítulo

*Zuko é um personagem do desenho Avatar: A Lenda de Aang; ele possui uma cicatriz no olho



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