Vício escrita por Anny Martins


Capítulo 3
Velórios de filme




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CECÍLIA

Cadáveres são estranhos. Velórios são estranhos, tão estranhos que chega a ser cômico. Uma sala onde todos se reúnem para chorar ao redor de um corpo sem vida, inchado, amarelado, com algodões em todos os buracos possíveis, o que dá a impressão de que esse corpo pode explodir a qualquer momento. Ou simplesmente murchar e desaparecer. A segunda opção me parecia menos nojenta, então me segurei nessa possibilidade enquanto encarava o corpo. 

Havia cerca de 40 pessoas reunidas em uma das minúsculas salas de velório do cemitério. Reconheci duas ou três, mas nenhuma me parecia familiar de verdade. Imaginei se veria minha mãe ali. Ao mesmo tempo que esse era um cenário indesejado (e impossível), me convenci de que poderia ser divertido. Tornaria toda a situação menos deprimente. Ou, em uma reviravolta que somente ela era capaz de produzir, acentuaria o clima de morte e degradação. 

Algumas pessoas entravam, tocavam no corpo e se debulhavam em lágrimas, esfregando as mãos nos olhos logo em seguida. Senti uma ânsia arranhando minha garganta. Imaginei Caroline tendo essa exata reação: enojada e perplexa com o delírio coletivo que é um velório. Evitei frequentar eventos do tipo por anos, mas agora eu meio que não tinha pra onde ir.

Tentei imaginar acontecimentos improváveis para transformar aquele episódio grotesco em algo melhor: o corpo desaparecendo (sem soltar gosmas); o corpo ressuscitando (mesmo que só por alguns minutos para assustar todo mundo); minha mãe surgindo e me tirando de lá aos berros; minha mãe surgindo, tentando me tirar de lá aos berros, sendo interrompida pelo corpo ressuscitado de Caroline e desmaiando. Comecei a rir e recebi encaradas fatais (em um evento feito para odiar a morte).

Não sei se existe um manual de etiqueta sobre como se comportar em um velório, mas tenho certeza de que rir é proibido.

Um homem baixinho e compacto se aproximou de mim.

— Acho que ela gostaria de ter alguém rindo nessa ocasião.

Tudo nele parecia desencaixado: seus óculos eram grandes demais para o rosto, seu paletó marrom estava amassado e com um péssimo caimento nos ombros e seu cabelo — um exagero de fios considerando sua idade — estava desgrenhado. Mas havia algo de elegante em sua postura, quase como se sua caracterização ridícula fosse um desafio de lógica. Era a desarmonia preferida de Caroline. 

— Não sei exatamente do que ela gostava. — respondi, sarcasticamente. — Mas eu gostava dela. Não ligo se eu estiver contra os códigos de conduta do luto.

Ele sorriu e estendeu a mão. Recuei e ele cochichou em tom de confidência:

— Tudo bem, eu não toquei no cadáver. 

Assenti, mas não peguei sua mão.

— Você me lembra muito ela, sabia? — ele retirou o gesto, mas permaneceu sorrindo. — Meu nome é Otávio, éramos grandes amigos desde a faculdade. Assim que me formei, virei seu advogado e nem preciso dizer que nunca me faltou trabalho com ela.

Imaginei que não. Pelas poucas histórias que me contou e pela ficha de processos que encontrei online sem que ela soubesse, sua atração por problemas era visível. Sua grande sorte foi nascer com pouco temperamento e muito dinheiro.

— Cecília. — me apresentei, embora imaginasse que ele sabia quem eu era.

Especialmente com velhos, procuro me conter nas palavras. Eles costumam ser invasivos, e é preciso toda a paciência do mundo para não explodir. 

— Sei que pode ser um pouco cedo, mas imagino que você não esteja mais aguentando ficar aqui e, sendo bem sincero, eu também não e... 

Interrompi com desconfiança:

— Mas não tem toda a cerimônia de levar o caixão, jogar terra e etc?

— Suponho que você tenha assistido muitos filmes americanos. — devolveu ironicamente. — Eles só levam o caixão e enterram.

Assenti. Ele continuou:

— Vou direto ao ponto, porque acho que você também seja direta como Caroline: ela pediu que eu lesse sua parte do testamento com você o mais rápido possível.

Então eu fui com Otávio, o velho compacto, até uma cafeteria. Porque:

1) Não aguentava mais o cheiro e o clima de morte (embora o cheiro forte de naftalina no paletó dele não estivesse ajudando).

2) Estava desesperadamente ansiosa para saber o que ela havia me deixado, já que isso significava o que eu faria nas próximas horas. Com toda a distração da cerimônia, acabei me esquecendo do que me deixou acordada durante toda a noite. Talvez fosse presunçoso da minha parte esperar uma herança que não me pertencia. Mas para quem ela daria tanto dinheiro? Ela não tinha alguém especial. Eu era o que chegava mais perto da definição. 

Quando nos sentamos à mesa, ele foi realmente direto ao ponto. Só esperou o café chegar e abriu uma pasta verde-sem-graça. 

— “Para Cecília — ele pigarreou. — deixo o anel de rubi falso que tanto a fascinava (por motivos que não compreendo) e um último serviço de Leonardo em direção ao endereço abaixo.”

Ele me entregou o papel para que eu lesse com meus próprios olhos. Não parecia surpreso com as palavras, nem com o meu semblante contrariado.  

Eu não estava entendendo. 

— É sério? Ela me odiava em segredo?

— Ela não te odiava. 

Sendo honesta, eu não esperava acordar com dez milhões de reais na conta. Mas nada além de uma bijuteria? E que urgência é essa em me mandar para o último lugar onde eu gostaria de estar? O maior presente de grego da história — depois do cavalo de troia, é claro. 

— Ela quer me mandar de volta pra casa dos meus pais, então eu diria que, sim, ela me odiava. E eu nem gostava tanto daquele anel de rubi.

É verdade. Não sou boa com elogios, então era uma das únicas coisas que me vinha à cabeça quando queria agradecer por estar me acolhendo.

Uau, Caroline, que anel bonito.

Já te falei como esse anel é bonito?

Sim, já havia falado. Pelo menos dez vezes. Era um pouco constrangedor, mas achei que era óbvio que eu não era exatamente fascinada pelo anel.

— Ela raciocinava de maneiras que jamais iremos entender.

Dei uma risada.

— Não, quem faz isso é Deus. Ela apenas me odiava, pelo visto. Achei que ela era podre de rica, com aquela casa enorme no mercado imobiliário mais inflacionado do país.

Ele pegou o papel da minha mão e ajeitou na pasta com delicadeza.

— Caroline deixou todos os bens para a caridade.

— Caridade? Isso nem é um lugar. — soltei ironicamente. — Ela não era bem uma pessoa caridosa. Será que ela queria comprar um lugar no céu com essa única ação benevolente no final da vida?

Otávio ficou sério e me lançou um olhar de você só a conheceu por quatro anos, você não sabe de nada. Mas não me disse. Apenas me entregou uma caixa com o anel e apontou para o carro que me esperava lá fora. Leonardo acenou para mim. 

— Suas malas já estão dentro do carro. Pelas minhas contas, em sete horas você está entregue.

— Como uma encomenda. — devolvi amargamente, indo em direção ao carro sem me despedir.

Leonardo me cumprimentou com um sorriso e destravou a porta de trás, mas ignorei e dei a volta, me sentando ao lado dele. Ele tinha 23 anos e fazia faculdade de química. Nas horas vagas, ou em qualquer momento que Caroline precisasse, ele era o motorista particular dela. Nunca entendi porque ela tinha um motorista tão jovem. Talvez tenha ficado traumatizada quando seu motorista centenário morreu em um acidente de carro há dois anos. De qualquer maneira, eu jamais questionaria essa escolha. Afinal, ele era minha única exceção quando se tratava de homens mais velhos (embora seja impreciso chamá-lo de homem).

Às vezes, quando me sentia entediada e com preguiça demais para abrir o tinder ou reviver algum contatinho, eu ligava para Leo e fingia que precisava ir a algum lugar. Com ele, não precisava conversar. Ele bem que tentava, mas eu não queria ouvir. Era o fato de ser tão simples que me fazia estar ali, com ele e seu belo maxilar.

Quando me aproximei, ele recuou.

— Ah, Leo, você vai me dar mais essa derrota?

Soei mais desapontada do que estava. 

— Cecília, eu já te falei que tenho uma namorada. — disse enquanto segurava no volante, sem olhar para mim.

— Vocês não terminaram? — cruzei os braços.

Ele me olhou magoado.

— Faz tempo que voltamos. Você saberia se não ignorasse minhas mensagens.

Bufei e me encostei no assento. Ele completou:

— Além disso, sua avó pediu que essa fosse uma viagem estritamente profissional.

Já deveria saber que ela sabia. Ela sempre sabia de tudo. E é claro que arrumaria mais um jeito de se deliciar às minhas custas (e eu respeito isso). Se houver um lugar depois da morte e uma tela de observação para o mundo terreno, aposto que está sorrindo em silêncio. Caroline se divertia plantando a semente do caos, o que talvez seja nossa maior semelhança. Uma dádiva e uma ruína, dizia ela, em suas poucas palavras.

Pelo menos, saber que eu estava sendo rejeitada por causa dela deixava meu ego menos ferido. Mas isso significava que eu passaria as próximas sete horas remoendo toda a minha vida: os quatro anos que passei aqui, a minha vida antes disso, a existência dos meus pais, minha própria existência, este dia. E quando essas horas acabassem, eu faria mais do que imaginar. Teria de lidar com todas as consequências dos meus atos. Com a minha vida antes disso, que seria novamente a minha vida do agora.

Seria possível que tudo estivesse igual, intocado, parado no tempo, esperando que eu voltasse? Meus pais (não que eu me importe) ainda estariam sentados em seus respectivos escritórios, distraídos em seus próprios mundos (que não tinham espaço suficiente para mim)? A ponte de madeira ainda estaria bamba, prester a se despedaçar? Téo ainda estaria de pé na grama, com lágrimas nos olhos, encarando as águas furiosas do Rio Vermelho?

Sabia que não, nada disso seria possível. A mais provável delas era que eu realmente encontrasse meus pais em seus escritórios e mundos que não me pertenciam, como se nada tivesse acontecido, já que mesmo antes era como se eu não existisse. Meu quarto deve ter sido transformado em um quarto de hóspedes — o que, mais uma vez, não vai ser tão diferente assim. Todos os traços de que um dia eu nasci, morei e vivi ali devem ter sido apagados. Me pergunto se fizeram um velório para mim. Se alguém compareceu e lamentou minha morte. 

Será que a cidade se lembra de mim?

Será que Téo se lembra de mim?

Leonardo tentava se comunicar comigo a cada vinte minutos, e talvez fosse mais fácil jogar conversa fora com ele, não pensar nisso tudo. Poderia lhe perguntar sobre seu relacionamento instável e autodestrutivo e fingir interesse.

Quer dizer que Luciana (ou seria Mariana?) é uma mulher muito ocupada e nunca tem tempo para você? Poxa, sinto muito pelo fato de que ela não vive em função de você, Leozinho.

Mas eu não queria jogar conversa fora, eu não tinha conversa alguma para sequer jogar fora. Em algum momento, ele acabou desistindo.

Quando finalmente entramos na cidade, senti meu corpo amolecer e a pressão cair. Minhas mãos gelaram. É quase como se eu estivesse morta ali, e ultrapassar a fronteira sugasse minha vida. Como um feitiço que protegia o lugar de mim, ou que me protegia do lugar. Mas eu não vivia em um mundo mágico. Era apenas... medo? Não, não era isso. Rancor, talvez.

Fazia tempo que eu não via tantas árvores em um mesmo lugar. Eu costumava gostar. Téo achava sufocante, eu me lembro dele dizer isso. Com aquela cara emburrada de sempre (porque seria um pecado relaxar perto de mim).

É como se fôssemos uma cidade mergulhada dentro de uma floresta.

De longe, avistei a escola. Um sentimento estranho tomou conta de mim. Me lembrei de todas as camisetas douradas, de todas as gincanas, de todas as competições, de todas as vezes que desafiei alguém, de todas as vezes em que não deu tão certo assim. Ganhar era minha lembrança mais forte naquela propriedade espelhada. Não acho que Téo concorde. Mas eu sempre ganhava.

Antes que Leonardo pudesse virar à esquerda em direção à casa dos meus pais, intervim:

— Espera! Não vira na próxima! Segue reto!

— Mas não é esse o…

— Por favor, Leo. Eu só preciso fazer uma parada, juro.

Ele ponderou enquanto esperava o sinal ficar verde. 

— Tudo bem, mas só isso.

Então ele seguiu, até parar bem na frente do colégio. A entrada estava aberta, indicando que as aulas estavam prestes a acabar, mas ainda estava vazia. O último sinal não havia batido. Eu podia escolher um banco e me sentar ali. Só para sentir, sem pensar tanto. Desci do carro e fui em direção ao banco mais velho, e logo me certifiquei se meus rabiscos ainda estavam ali. Seria um sinal de que ainda existia uma parte minha que não morreu. Não estava lá. Nenhum rabisco.

Faz quinze minutos desde que me sentei neste banco, imersa em lembranças, paranoias e pensamentos patéticos. Nesse ponto, não tenho mais certeza de que pedaço da minha vida foi real: os meus primeiros treze anos? Os últimos quatro? Algum deles precisa ser uma ilusão para que o outro possa existir. Eu continuaria formulando teorias sem sentido, mas ouço o sinal bater.

Sinto um arrepio percorrer a minha nuca. Antes que eu possa me levantar e entrar no carro, uma multidão se movimenta em direção à saída, bloqueando qualquer tentativa que eu possa ter de me levantar. Tinha me esquecido do quanto as pessoas corriam quando o sinal batia. Um verdadeiro Jogos Vorazes.

De repente, percebo todos os olhares fixos em mim. Quase me esqueci: eles provavelmente estão assustados. Não tanto quanto eu por estar de volta nesse lugar horrível (eles jamais saberão que eu poderia me mijar agora mesmo com a sensação de terror que se apodera do meu peito embora eu não saiba de que lugar ela vem). Levanto a cabeça e encaro o nada com desdém, como se não me importasse. Algumas pessoas caminham e vão embora, mas a maioria fica encostada contra a parede, como se eu fosse uma assombração pronta para devorá-los. 

Alguns minutos se passam, e eu permaneço imóvel. Sinto meu celular vibrar, assumo que seja Leo me chamando, impaciente como as vibrações ininterruptas. Silencio o celular. Por algum motivo, preciso estar ali. Só mais um pouco. Se eu for embora agora, eu perco tudo.

Uma garota passa olhando diretamente para mim, e lanço uma expressão de por que caralhos você tá olhando para mim?, fazendo com que ela desvie e saia a passos rápidos. Até que me viro e o vejo. 

Téo Bastos. Pela primeira vez desde que coloquei meus olhos na entrada da cidade, sinto que algo não virou completamente do avesso. Mesmo as árvores pareciam diferentes. Ele, por outro lado, parece o mesmo, só que mais alto e com os cachos mais discretos, em um cabelo mais curto do que antes. Seus olhos âmbar são refletidos pelo sol.

Ele parece estar em choque. Nós dois sabemos que é uma reação exagerada da parte dele. Embora ele nunca tenha sido bom em fingir. Até que ele tentava parecer não ligar para minhas provocações infantis, mas a raiva era visível. Suas narinas se expandiam e suas sobrancelhas ficavam enrugadas.   

Eu me levanto e vou até ele. Eu poderia abraçá-lo, só para sentir algum tipo de conforto no dia mais desconfortável da minha vida. Para me amaciar antes de encarar o tribunal dos meus pais.

Eu poderia beijá-lo. Deus sabe o quanto meu subconsciente me levou a isso ao longo de dois anos. Talvez três. Quatro. Eu poderia beijá-lo e acabar com esse desejo imbecil agora mesmo, para voltar a me divertir com sua raiva imediatamente e nunca mais sonhar com isso outra vez.

Em vez disso, tudo que sai é:

— Teodoro.

Ele odiava que eu o chamasse assim. Porque, por mais estranho que pareça, seu nome era Téo. Só Téo. Um nome de três letras, não um apelido para Teodoro. Não faz sentido algum.

Sinto que a falta de reação de Téo é a minha deixa, então me viro em direção ao carro e vejo Leonardo estressado, me chamando com as duas mãos. 

Téo não me responde. Seu cérebro parece estar processando. Talvez não se lembre mais de mim direito. Está recuperando todos os sentimentos de desprezo que tinha por mim há quatro anos. Faço questão de ajudar com que se lembre, então paro e digo:

— Nos vemos em breve, caracolzinho.

Não espero pela reação, apenas sigo.

Agora, depois da amostra grátis proporcionada por aquele momento, estou indo encarar a realidade como um todo. Não sei o que esperar do resto. Não sei o que esperar do amanhã. Tudo que eu sei foi o que eu vi nos olhos de Téo — eu não estou morta.


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