A Jaula escrita por Maria Chinikoski


Capítulo 2
Erro NO Sistema




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Yen estava pronta para mais um dia de serviço. Como uma das dez fiscais, tinha dias longos de trabalho. Ela vestiu sua farda e se apresentou aos superiores na sala de preparação. 

Cerca de trinta "pessoas" (como eles chamavam) de raças diferentes à dela já haviam pego suas armas e saído. Ficaram apenas nove fiscais da raça humana. Enfileirados, em perfeita ordem. Era possível ouvir seus corações batendo calmamente. 

Exceto o coração de Yen. Por algum motivo... 

Ela sentia-se apreensiva. Um de seus colegas havia faltado. De novo! Justo hoje. O que teria acontecido com Alef? Ele sumira há dois dias.

O superior estava chegando na sala! Um indivíduo do sexo masculino, com cor de pele azulada, cheia de caroços marrons de aparência escamosa. Tinha cerca de 2 metros de altura, com presas pequenas saindo fora da boca, mas ainda assim, um dos poucos com aparência levemente humanoide. 

— Preparem-se para dose diária!

Todos humanos mostraram seus pescoços e um enfermeiro calmamente aplicou-lhes sua injeção matinal no pescoço. 

Aquilo continha micro chips que podiam transmitir informações diretamente à central, bem como localizá-los e "apagá-los" se necessário.

Todos recebiam uma dose superior à dos humanos que trabalhavam lá fora, para que servissem fielmente a seus propósitos. 

Estando prontos, o enfermeiro voltou a seu computador e começou a mexer rapidamente em seus controles.

— Agora vou sequenciar os chips e ativar as escutas e transmissores internos.

Um zunido agudo parecia estourar os tímpanos dos humanos. Logo, a voz de um dos supervisores começou a soar baixo em seus cérebros.

" Matar os intrusos e garantir a paz! "

Todos os nove humanos repetiram em voz alta a ordem:

— Matar os intrusos e garantir a paz!

 

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Já havia passado a maior parte da manhã.

Era um dia bem tranquilo na fortaleza, sem muito serviço para os fiscais.

Os seres humanos trabalhavam como funcionários em construções, manutenções, lojas. Já os "visitantes" trabalhavam com seus grandes comércios, mercados, entre outros...

Era clara a discrepância.

— Pff... Dignidade onde?- Sibilou Yen, vendo uma senhora mendigar um desconto em um pão para uma fêmea de pele vermelha e cabelos amarelos.

Ela se aproximou e foi ver o que acontecia.

— Está tudo bem, senhora?

— Oh, minha querida. Eu trabalhei a semana toda e agora os preços subiram. Já não sei como alimentar eu e meu esposo...

— Eu falei para a velha - Disse a mulher alienígena - Os preços refletem a produção. Se os humanos não produzem o suficiente, o preço sobe!

Yen olhava para a velha em lágrimas, mas sabia que não devia se envolver.

— Não tenho culpa que ela não consegue trabalhar para arrumar dinheiro! - Disse a alienígena - Ela já passou do prazo útil! Deveria se apresentar ao centro de desligamento e partir logo.

A fiscal engoliu em seco. As ordens eram para deixar todos viverem ao máximo de sua vida útil. Depois que não conseguissem mais trabalhar, os humanos poderiam se apresentar ao centro de desligamento. 

Um nome diferente para um hospital da morte.

Eles sofriam eutanásia, indolor e rápida. E assim, eram descartados. 

A senhorinha chorava e Yen colocou a mão no bolso. Se desse uma de suas moedas de fiscal, conseguiria alimentá-la por mais uma semana pelo menos. 

De repente, uma voz forte soou em sua cabeça: "Não interfira!". Era um dos supervisores, detectando sua atitude. 

Ela olhou para o alto e viu as milhares de câmeras que transmitiam as imagens do pátio principal. Colocou a moeda de volta e respirou fundo, se afastando.

— Ei! Por favor! Me ajude, mocinha! Eu te imploro!

Com resquícios de lágrimas nos olhos, Yen falou, sem se virar para a senhora:

— Infelizmente este não é trabalho para uma fiscal. Tenha um bom dia.

 

 

O trabalho costumava ter dias como esses. Mas o correto era não ajudar.

Infelizmente, os instintos humanos as vezes superavam as ordens de seus chips. A vontade humana era algo extraordinariamente imprevisível. Alguns humanos, mesmo controlados, já haviam matado fiscais antes para roubar seu dinheiro. A maioria, claro, foi executada em praça pública, mas no geral, se acontecia às escondidas, suas memórias eram zeradas e eles se tornavam uma espécie de zumbis de trabalho braçal, trabalhando na parte de fora da fortaleza, sem memória, até que algum animal selvagem os eliminasse ou que morressem de fome. Eram descartáveis.

Se um fiscal der seu dinheiro a um humano comum, este pode ser denunciado como ladrão e a pena seria bem pior do que a morte por fome ou desligamento.

 

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Na parte da tarde, um chamado: Alguém causava um grande tumulto.

Yen correu, mas alguns companheiros de outras raças chegaram primeiro.

Um humano, de aparentes 40 anos, gritava e chorava no meio da praça secundária, atraindo a população. Ele estava fora de si. 

— VOCÊS SÃO MALUCOS! ELES NOS APRISIONARAM! ELES SÃO OS BANDIDOS! - Gritava, apontando o dedo para qualquer outro homem ou mulher não humanos - ELES VIERAM DE VÁRIOS PLANETAS E INVADIRAM O NOSSO!

Todos estavam confusos e amedrontados.

A fiscal de outro planeta apontava sua arma, quando Yen a segurou.

— Calma! Temos que entender porque ele está assim!

— Tsc! - Desaprovou a outra - Seja rápida, humana! 

— Alguém sabe o que aconteceu aqui? - Yen perguntava, mas todos estavam muito assustados para se arriscar a dizer algo.

De repente, uma garotinha segurou sua mão. Ela estava em choque.

— O papai... O papai estava comprando algo para bebermos... Ele... Ele começou a gritar e ficou assim.

— Ele é seu pai?

— Por favor, moça! Salva ele! Eu te imploro! - Chorou a garotinha. Deveria ter uns 12 anos no máximo.

" Os chips dele estão corrompidos " - Soou a voz do supervisor em seu cérebro - " É como se todos tivessem dado curto ao mesmo tempo ".

Yen correu e ficou na frente do homem. Ela sabia o que poderia acontecer!

— Se acalme! Tem que se acalmar! Ou será apagado! Por favor, eu te imploro!

— Não posso! Ele me disse! Ele contou tudo!

— Quem contou o que? - Perguntava ela.

— Ele sabe de tudo! Ele me disse! Nós somos animais engaiolados! 

— Senhor! Se recomponha! Pela sua filha!

Ele a olhou, com um olhar vazio:

— Ela não é mais a minha filha! Eles a controlam!

Então, com grande força, o homem tentou arrancar a arma da fiscal, entrando em luta corporal. Ele tentava apontar a arma enquanto Yen puxava de volta. Ela sabia para quem ele apontava...

— Pai! Não faz isso, pai!

— Desculpa, mas eu não sei quem você é!

Ele iria atirar, mas Yen foi mais rápida e o derrubou, batendo a cabeça dele no chão com força. Uma grande multidão assistia. Para nocauteá-lo, Yen o socou no rosto e deixou-o atordoado, se afastando.

A fiscal ao lado ia atirar, quando uma voz ressoou no cérebro de todos os fiscais:

"Não o mate! Quero que a humana o execute!"

Yen, ainda de costas, respirou com dificuldades.

"Você foi muito irresponsável! Ele quase tomou sua arma!"

— Mas senhor! - Disse Yen, para si mesma. Sabia que ele estava escutando.

" Faça! "

— E a criança?  - Perguntou a fiscal alienígena.

" Ela pode estar contaminada também! Faça os dois agora! Ou a próxima será você! "

Yen relutou. Foi quando um choque perpassou seu corpo inteiro. Estava sendo punida para agir logo.

Ela se recompôs. Não havia outro jeito! Não se quisesse permanecer com sua memória minimamente alterada.

" Repita agora! "

Yen levantou a arma, fechando os olhos para conter a vontade humana de chorar. Se recompôs novamente e abriu os olhos, com raiva. 

— Matar os intrusos e garantir a paz!

Um tiro foi dado! A garota entrou em desespero e correu até o pai. Um segundo tiro foi dado.

...

Yen respirou fundo e pegou um aparelho de comunicação.

— Procedimento iniciado! - Disse Yen - Iniciar reformulação de memória em massa! Apagar memória de todos humanos em um raio de dois quilômetros e refazer os dados!

Poucos segundos depois, todos os humanos em volta começaram a arregalar seus olhos e ficar em estado de transe.

— Humanos de merda - Disse a alienígena, se afastando.

— Ei! Qual o seu problema? - Disse Yen, confrontando-a.

— Não leve a mal, gracinha! As vezes esqueço que eles deixam perdedores como você na equipe! - Ela olhou ao redor - Todos os não humanos! Circulando! Voltem aos seus trabalhos, seu bando de lixo!

Os demais povos começaram a circular. Logo, ficaram só os humanos em transe. Uma equipe recolhia os corpos e cuidava da limpeza.

Yen já ia sair, mas seus olhos captaram algo. Por milésimos de segundos, ela podia jurar que um humano não estava em transe. Ele a olhou rapidamente e desviou o olhar.

— Você vem, humana? - Perguntou a outra fiscal.

— Não, pode ir e reportar ao supervisor. Eu vou conferir algo antes.

Yen não escutou os palavrões. Começou a andar em linha reta até um humano de capa e boné. Ele torcia levemente a boca! Certamente ele não estava em recuperação de memória! Ela tinha que investigar!

No meio do caminho, porém, o processo acabou. Todos os humanos começaram a se mover novamente, esbarrando em Yen.

— Com licença! Policial passando!

Ao seu redor, os humanos, ainda espantados, olhavam o sangue no chão. Alguns sussurravam entre si:

'- Você viu, que tragédia? A filha estava roubando o dinheiro do pai!'

'- Tempos difíceis... Mas por que ele tentou matá-la?'

'-Você não ouviu ela falar? Ela quem planejou matar o próprio pai para receber o dinheiro dele do banco!'

'-Eu vi com os meus próprios olhos! A fiscal separou eles, mas a filha tinha apunhalado o pai e preferiu se matar a ser presa!'

'- Que menina ingrata... Tinha tudo, era tão nova...'

Enquanto a multidão se amontoava, o rapaz começou a andar calmamente, se afastando de Yen.

— ESPERE! POLÍCIA! - Gritou ela, mas o rapaz começou a correr, se embrenhando nos prédios.

Quando chegou ao beco, já não havia ninguém. Yen colocou as mãos no joelho e arfou com pesar. Aquele rapaz... Ele sabia de algo... Devia ser ele um clandestino? Impossível! Eles eram super raros hoje em dia!

Uma pesada mão pousou nas costas de Yen. Um outro fiscal humano... Quer dizer, ex-fiscal e ex-humano.

Era Alef, um jovem moreno. Ele tinha uma peculiaridade: um braço azul escuro transplantado de um alienígena após um acidente no trabalho. Ele havia se adaptado bem, mas ainda sofria um pouco com a nova aparência.

Seu tipo sanguíneo era bem raro e, felizmente, um alienígena morto possuía substâncias regeneradoras de grande escala, podendo ser utilizado este braço no transplante.

Como Alef era um grande Ás do exército, foi premiado com o braço novo, o que era impossível de se conseguir em outros tempos. Mas há dias, estava afastado de seu trabalho habitual.

— Está cansada, Yen?

— Oi! Você tinha desaparecido!

— É uma longa história! O que faz aqui?

Yen olhou mais uma vez para os lados, procurando pelo rapaz, mas viu que era trabalho perdido.

— Achei que tinha visto algo... Mas... Devo ter me enganado.

— Venha... Eu te pago uma bebida...

 

Ambos saíram dali, com rumo a um bar na periferia, conhecido e pouco movimentado por qualquer não humano. 

 

— Tenho novidades! - Disse ele.

Era notável que Yen sentia uma leve atração por Alef. Ele era incrível e havia ensinado-a muito bem a lutar fora da fortaleza. Eram inseparáveis, até ele começar a se afastar do serviço.

— Tomara que sejam boas. Estou exausta pelo nosso trabalho!

Ela deixou os ombros caírem e ele a envolveu com seu braço humano, deixando um beijo em sua testa e se afastando novamente.

— Nós não somos máquinas. Eu te disse que não vale a pena se matar de trabalhar... Deveria começar a tirar suas folgas antes de se matar.

Eles passavam pelo centro para chegar ao outro lado, na periferia afastada. Reluzente, o grande prédio de eutanásia assistida estava movimentado.

Lá você poderia escolher apenas ser apagado ou passar uma bela experiência em seu cérebro, vivendo por segundos o equivalente a uma vida toda programada pelos chips em seus neurônios.

Talvez parecesse poético... Morrer com um  sorriso por viver uma segunda vida apenas na sua cabeça, morrendo da forma como quisesse e esquecer-se deste mundo...

Mas para Yen era falso... Era pesado e angustiante... Até o final de sua vida suas memórias são remodeladas por eles... Por qual propósito?

Na fila, Yen a reconheceu... Abraçando com força seu marido, também de idade...

— A mulher de hoje cedo... - Ela sussurrou.

Ambos deram um último beijo apaixonado e entraram de mãos dadas para o prédio da morte. De relance, a senhorinha viu Yen. Ela tomou um susto quando a senhorinha lhe fez um tchau com a mão e sorriu, plena e tranquila.

Lá dentro fariam uma última refeição farta e depois... Bem... 

Depois seriam alocados dentro do caminhão frigorífico que saía de trás do prédio e levava seus corpos para algum lugar desconhecido ao norte da fortaleza...

Assim que eles entraram, Yen não se conteve: Correu até o lixeiro mais próximo e vomitou.

Alef suspirou pesadamente e segurou-lhe os cabelos.

— Yen...

— Estou bem... - Ela brigou.

— Yen! Você está chorando!

Foi ai que ela percebeu que seu rosto, quente em brasa, estava assim por causa das lágrimas.

Alef a abraçou de frente, escondendo o rosto dela em seu peito largo e sussurrou:

— Por favor, se controle. Vamos desabafar em outro lugar. Não deixe que nossos superiores desconfiem de nós... Venha.

Entraram por becos abandonados e pularam alguns muros até a periferia.

— Já tomou...?

— Sim! - Ela disse - Eles me deram uma nova dose de microchips hoje. Mas não se preocupe... Já tomei o desativador... Se tem algo que não quero... São eles controlando minhas memórias.

...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Comentem, por favor.



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