Jane escrita por Lucca


Capítulo 4
Em casa


Notas iniciais do capítulo

Em casa, mas há tantas feridas para perceber e cicatrizar...

Mas o primeiro momento daqueles que quero que reinem nessa história já está nesse capítulo.

Boa leitura



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O carro começou a andar e Kurt sentia seu coração ainda pulsando mais rápido que o normal. Estava acontecendo realmente. Estavam indo pra casa. Não exatamente a casa... Céus, há tanto tempo que não sabia mais o que era isso. Foram dois meses se escondendo em diferentes locais, mais um mês no bunker, depois voltar ao apartamento sem Jane o que não era a mesma coisa...

Antes de ligar o carro, conferiu novamente como ela estava. Rosto fechado, olhos bem abertos, fixos nas tatuagens dos braços, respiração aparentemente normal. Provavelmente seus instintos estavam percebendo o novo ambiente do interior do veículo. Deus, que bom que ela aceitou o cinto de segurança sem reclamações! Esse era seu principal medo quando pensou na viagem.

Ele sabia que seria uma viagem silenciosa. Jane só reagia às palavras quando estabelecia contato visual e a posição lado a lado não era favorável a isso. Patterson preparou uma playlist com todas as referências que encontrou vasculhando as antigas coisas de Remi. Alguns rocks pesados intercalados com jazz. Era estranho, muito estranho. Mas Kurt precisou admitir que era a cara dela. O rock devia ser resquício de sua fase gótica na adolescência.

“Avery também.” Pensou rindo.

Pareceu funcionar bem. Jane foi relaxando e, aos poucos, começou vasculhar com o olhar o interior do veículo. Minutos depois já espiava os prédios lá fora através do vidro da janela. Impossível conter o riso que entortava os lábios de Kurt em satisfação por aquilo.

Quando deixaram a cidade, entretanto, ela voltou a defensiva: postura rígida, olhar fixo nas tatuagens. A paisagem monótona da rodovia era realmente bem menos interessante que NYC, ele concluiu. Mas a situação não melhorou quando pegaram a estrada estreita que os levaria à cabana na montanha. As árvores lá fora não foram capazes de tirar Jane do universo tatuado na pele de seus braços.

Chegaram ainda como os últimos raios de sol iluminando o lugar. Era tão perfeito. Poderiam acompanhar o pôr do sol.

Kurt tocou suavemente no braço dela para chamar sua atenção. Imediatamente, ela fez conexão com o seu olhar, mas ainda parecia insatisfeita.

— Chegamos, Jane. É aqui, nossa casa! – ele disse querendo fazer um discurso muito maior, mas já tinha percebido com Avery que poucas palavras tinham um melhor resultado desde que ela acordara.

Desceu animado. Deu a volta no carro e abriu a porta dela, cuidando de soltar o cinto de segurança. Ela relutou no primeiro convite para desembarcar. No segundo cedeu, mas ficou estática ali exatamente onde ele a deixou.

Percebendo que ela precisava se adaptar ao lugar, Kurt resolveu descarregar o carro. Convidou-a a entrar na cabana, mas Jane não se moveu.

“Um passo de cada vez...” pensou e continuou seu trabalho deixando para dar atenção a ela depois disso resolvido.

Malas nos quartos, compras sobre o balcão da cozinha. Era hora de apreciar o pôr do sol antes de trazê-la para dentro.

Kurt evitava tocá-la sem que tivesse recebido uma demonstração expressar dela a favor disso. Com Avery era diferente. A garota sempre tocava, abraçava e beijava a mãe. Mas com ele Jane ainda parecia receosa em trocar essas formas de carinho. Assim, ele mostrou o banco ao lado da cabana posicionado no lugar perfeito com vista ao vale entre as montanhas e estendeu a mão como convite:

— Vamos ver o pôr do sol. Você vai gostar.

Ela aceitou segurando a mão dele e o acompanhou. Sentaram-se ali e deixaram que a natureza fizesse todo a mágica que teve a total atenção de Jane. Em alguns momentos, Kurt chegou a perceber que ela estava emocionada.

Terminado o espetáculo, caminharam de volta. De repente, Jane soltou a mão de Kurt e foi até o carro, abriu a porta e entrou tentando puxar o cinto de segurança. Ele se aproximou devagar e tentou chamar a atenção dela:

— Jane, nie nie. – disse usando o africâner que ela demonstrou entender no hospital. – Vamos ficar aqui. Aqui.

Ela fechou a fisionomia e virou o rosto para frente, determinada a ficar no carro.

— Jane... – ele chamou de novo tocando de leve seu rosto conseguindo sua atenção. – Por favor, venha! – disse com a voz e os olhos carregados de súplica enquanto pensava no quanto ela deveria estar insegura pela mudança de ambiente.

Ela respirou fundo. Então fechou os olhos e soltou o ar num suspiro rápido. Desceu do carro e o acompanhou para dentro. Ele segurou sua mão, roçando suavemente o polegar sobre sua pele para passar segurança.

Lá dentro a rigidez dela se manteve enquanto Kurt apresentava o lugar empolgado. Passaram pelo ambiente aberto que unia sala e cozinha. Caminharam até o quarto atravessando o cômodo, ele mostrou o banheiro. Ela o seguia sem reação.

— Quer usar o banheiro? Tomar um banho? – ele disse apontando para o interior do cômodo.

Um leve aceno de cabeça bem ríspido para o lado foi uma negativa bem convincente para ele. Foi uma decepção para Kurt. Planejou deixá-la tomar banho e descansar enquanto faria o jantar. Ela devia estar exausta com o dia agitado que tiveram. Além disso, isso a ajudaria a abandonar de vez aquela atmosfera hospitalar que viveram nos últimos meses. Mas tudo bem, a experiência já lhe mostrara que tudo tinha que ser bem devagar agora.

— Quer descansar? – sugeriu passando a mão sobre a cama.

Ou negativa.

— Então, vamos para a sala. Você fica no sofá enquanto cozinho. Deve estar com fome. – Concluiu e voltou para a sala sendo seguido por ela.

Mas o plano não deu certo. Assim que retornaram, Jane caminhou decidida até a porta. Sorte a dele ela ainda estar bem lenta e mancando com a perna direita, do contrário não a teria alcançado.

Colocando-se entre ela e porta, falou com calma:

— Nie, Jane, nie. Vamos ficar! Venha. – disse pegando sua mão e conduzindo de volta.

Como o sofá não parecia uma opção já que ela insistia em ficar em pé ao seu lado na cozinha, ele trouxe uma das cadeiras e, após alguma insistência, ela se sentou.

Biscoitos, frutas, ele ofereceu tudo e Jane só recusou. Aceitou a água. Dois copos sugados de forma sedenta. Ele respirou e repetiu para si mesmo que logo isso passaria. Concentrou-se em picar os legumes para a sopa.

Cozinhou rápido pensando em alimentá-la e ficar livre para lhe dar atenção.  Colocou a mesa procurando cuidar dos detalhes, queria tudo aconchegante, bem família.

Falou com ela devagar, tentando passar segurança na voz:

— Está pronto, Jane. Venha! Fiz com carinho para as minhas meninas. – e a tomou pela mão.

Ela o acompanhou, mas ao ver que se aproximavam da mesa parou abruptamente.

— Está tudo bem, Jane. Pode vir. – ele insistiu tentando estimulá-la repousando suavemente a mão em suas costas.

Ela se esquivou rápido do toque, se afastando e ficando firme na sua resolução de não ir até a mesa.

Kurt apertou os lábios e torceu o pescoço. Isso requeria uma estratégia diferente. Foi até a mesa, sentou-se e serviu os dois pratos. Voltou a olhar para ela implorando cooperação.

— Venha, Jane, por favor. – mas ela permaneceu parada e agora sua respiração parecia mais pesada.

“Você não está com medo de encarar a fera, né?” a voz de Avery soou na sua cabeça. Ele precisava se manter firme. Provou algumas colheradas da sopa, fingindo ignorá-la ali em pé a poucos passos dele. Soltou algumas interjeições demonstrando que gostava do que comia.

— Hum! Isso está delicioso! Tem certeza que não quer provar, Jane? Ja? – arriscou voltando a olhar pra ela.

Os olhos de Jane o fuzilaram como Remi fazia. Ele estar ali comendo parecia totalmente reprovável à ela.

Kurt tentou e tentou. Nada. Droga de determinação, Jane!

Após terminar a refeição, tirou a mesa. Tentou ofereceu a sopa numa tigela para ela na cozinha. Novo fracasso. Lavou a louça. Colocou tudo no lugar. Ela ali, em pé ao seu lado ameaçadora. Assim que terminou, ela foi em direção à porta de novo.

Cansado, Kurt decidiu deixá-la abrir a porta. Era só escuridão lá fora agora. Lua nova. Noite fechada.

Jane virou a maçaneta e, assim que viu o breu lá fora, bateu a porta de volta, bufando.

— É noite, Jane. Não há nada pra fazer lá fora.

A respiração dela estava pesada. Seu olhar o acusava mais do que qualquer palavra.

Ele passou a mão pelo cabelo cansado.

— Venha. Hora de descansar. Assim você vai se sentir melhor.

Nos seus planos, dormiriam em quartos separados. Patterson colocou uma babá eletrônica na bagagem para que Kurt pudesse monitorar Jane mesmo de longe. Mas como tudo que ele tentou, esse plano fracassou. Jane não se distanciava dele mais que dois passos. Foi por isso que também desistiu do banho.

Vestir pijamas foi mais uma tentativa que não deu certo. Ela não aceitou sequer tirar os sapatos. Com muita insistência a convenceu a se sentar na cama, costas na cabeceira, joelhos flexionados, postura enrijecida. Apagar a luz? Claro que não deu certo. Ela ficou tão agitada que ele desistiu disso também.

Sem outra saída, tudo que Kurt podia fazer era tentar a mesma estratégia do jantar: deitou-se ao lado dela, se mostrando relaxado para ver se Jane seguia seu exemplo. Nada, o olhar dela estava fixo no nada.

Ele tentou falar com ela. Tentou sussurrar palavras de segurança. Ousou tocar seus cabelos, talvez assim ela cedesse. Tudo que conseguiu foi vê-la se esquivar. Melhor não insistir, ela poderia sair da cama e as coisas ficariam ainda mais difíceis.

O tempo foi passando sem nenhum avanço. Em algum momento, Kurt adormeceu. Ele não tinha certeza de quanto tempo se passou. Ao acordar, ela estava ali, ao seu lado, na mesma posição que antes, imóvel, olhar no nada.

Enquanto seus olhos cansados tentavam se adaptar à luz, ele se permitiu provar do alívio por tê-la ao seu lado ali. Quando as imagens se tornaram mais nítidas, sentiu-se ser rasgado pelas marcas de lágrimas no rosto dela.

Chega! Não dava mais. Inferno! Ela não passou por tanta coisa para ter que suportar ficar num lugar que não lhe agradava.

Ele se virou e olhou para o teto. Era madrugada. O melhor seria aguardar o amanhecer. Então, olhou de novo para ela e não teve dúvidas.

“Não! Nós vamos embora agora!”

Levantou-se, contornou a cama e se sentou de frente para ela. Parecia tão cansada. Ainda assim, olhou para ele e havia tanta súplica em seu olhar. Como ele deixou chegar nesse ponto? Devia ter entendido assim que chegaram. Prometeu a si mesmo que aprenderia a observá-la, a ler todos os seus sinais para que não deixar nada passar despercebido. Respirou fundo, ela ainda estava tentando se conectar com ele, então era preciso mostrar que a compreendia:

— Nós vamos embora, Jane. Só vou recolher tudo. – e pegou a mão dela para guiá-la assumindo que deixá-la sozinha não era uma opção.

Ele foi rápido, bem mais rápido do que achou que poderia. As malas não tinham sido desfeitas. Embalar as coisas da cozinha foi o que exigiu mais tempo. Acendeu as luzes da parte externa da casa entendendo que o escuro a deixava desconfortável.

Ao ver o carro, Jane suspirou. Seguiu todas as orientações de Kurt enquanto ele colocava as coisas no carro.

Pegaram a estrada de volta. Dentro do carro, ela parecia cansada e incomodada, nem a música ajudou. Meia hora depois parecia aflita, soltou o cinto e começou a tentar abrir a porta. Por deus que o carro tinha travas nas portas.

— Calma, Janie. Calma! – ele tentou falar enquanto estacionava no acostamento.

Assim que pararam e ele destravou a porta, ela jogou o corpo para fora vomitando. Ele esperou até que tudo acabasse, esfregando as costas dela. Quando ela voltou a posição normal dentro do carro, se recostou bem abatida, a mão abandonada ao lado do corpo. Com cuidado, Kurt levou sua mão até a dela e deixou que seus dedos roçassem os dela em solidariedade. Ela ficou algum tempo olhando aquilo. Aos poucos, seus olhos migraram o rosto dele e, com a mão, sinalizou para voltarem à estrada.

Rodaram quinze minutos e alcançaram um posto de gasolina com uma loja de conveniência. Ela parecia ainda nauseada demais para descer. Ele foi rápido. Entrou e pegou uma água tônica. Esperou ela beber devagar. Só quando Jane parecia melhor, retomaram a viagem.

Nem todas as luzes de NYC foram capazes de atrair a atenção de Jane quando entraram na cidade. Ela estava alheia e cansada.

O que ele faria?                Qual a melhor opção agora?

                                                ****************************

“Kurt Weller FBI”. Era esse o nome dele. Ela se lembrou após alguns dias. Alguém muito confiável segundo seus instintos ou qualquer outra coisa que sua cabeça fosse capaz de lhe dizer. Seu corpo e seu coração diziam muito mais sobre esse homem. Sua presença a deixava diferente.

E ele esteve por lá o tempo todo. Algumas vezes deixava o quarto perto da hora de irem dormir, mas retornava pouco depois delas despertarem. Sempre prestativo, com o olhar carinhoso e o sorriso que fazia borboletas se agitarem no estômago de Jane.

Incrivelmente cuidadoso com ela, Kurt Weller FBI nunca se aproximava sem sua permissão declarada, tão diferente das outras pessoas que também cuidavam dela ali. Isso a fazia confiar ainda mais nele. O homem parecia compreendê-la e entender o quanto tudo aquilo estava sendo invasivo demais.

Muitas vezes ela imaginou como seria recostar a cabeça no peito dele, sentir suas mãos a envolverem... Claro que ela não esperava que fosse o mesmo tipo de aconchego que sentia quando estava assim com Avery. Pensava em algo diferente, eram sentimentos diferentes, desejos diferentes. E existia o anel. Ah, o anel! Ele nunca o retirava. Isso dava a Jane uma sensação tão boa. Mas por quê?

Não! Melhor não alimentar esse tipo de coisa. Era abusivo demais da parte dela exigir ainda mais daquele homem. Isso deveria ser mais uma das insanidades que se apossaram dela. Ela devia manter a distância que existia entre eles. Agora Kurt Weller FBI só a visitava sozinho, mas nas primeiras visitas existia sempre uma mulher com ele. Jane não sabia explicar, nem podia dizer que se lembrava, mas tinha certeza de que havia uma conexão forte entre ele e aquela mulher.

Era tudo tão confuso: paz, alegria, medo, insegurança, sensações não só da alma, mas que também pareciam percorrer cada veia do seu corpo quando esse homem se aproximava... Como era mesmo o nome que Avery deu a isso? Crush! Era complexo demais. Talvez mais uma sequela da sua insanidade.

Tentando se manter firme e lúcida, Jane continha seus sentimentos colocando seu foco na recuperação dos movimentos. Era difícil, muito difícil. Algumas vezes parecia até impossível coordenar o que lhe pediam. A tentação de desistir e permanecer alheia a tudo era grande. Mas se isso acontecesse, Avery e Kurt Weller FBI reagiriam como diante do seu fracasso? Jane temia a resposta. Assim como temia algo ainda pior. Havia uma vida crescendo dentro dela. Céus, ela nunca imaginou que poderia ser mãe novamente.  E ela precisava estar recuperada até essa criança nascer. Precisaria segurá-la em seus braços e provar a todos que era capaz de cuidar dela do contrário levariam o bebê como fizeram com Avery e isso não era algo que Jane fosse capaz de suportar. Não de novo. Não agora.

Quando tudo começou a lhe mostrar que sua filha logo se afastaria, ela fez o que podia para se mostrar forte. A presença de Avery foi tão boa e a ajudou tanto, era necessário mostrar gratidão. Mas depois da despedida, a ausência da garota doeu demais. Que bom que ele ficou. Mais que isso: a confortou, parecendo compreender sua dor.

Foi por todos esses motivos que ela o acompanhou para fora daquele hospital. Kurt Weller FBI parecia tão feliz e animado. Seguir ao seu lado era com certeza bem melhor do que ficar abandonada ali naquele lugar.

No começou foi estranho estar lá fora, mesmo que dentro de um carro, mas as músicas traziam uma familiaridade tão boa. Ainda assim, deixar a cidade aumentou sua insegurança. Para onde iriam? Por quê?

Chegar à cabana foi reviver seu maior pesadelo. Enfim, Kurt Weller FBI voltava a ser o que parecia ter sido sempre: um surto dela. Jane sabia o que viria pela frente: o pretenso final feliz. Ele daria a ela tudo: a família, a felicidade. E depois a lembraria que aquilo só estaria ao alcance deles se ela aceitasse morrer.

Jane estava bem ciente de suas limitações para enfrentar aquilo. Fazer todo o caminho a pé não era uma opção. Dirigir o carro muito menos. Mas ela estava farta disso tudo e não desistiria sem lutar. Resistir da forma que fosse possível, essa era a ideia. Não deixaria essa ilusão machucá-la como fez nas outras vezes. Lutaria pela vida que carregava em seu ventre. Lutaria por si mesma porque ... ah, dane-se o porquê. Ela não precisava de justificativas! Se tudo falhasse, se a morte ou a loucura prevalecessem, não seria com seu consentimento.

E assim ela resistiu à todas as tentações que Kurt Weller FBI lhe ofereceu de uma vida idílica numa cabana. Não se sentou, não comeu, não descansou, não fez nada do que ele pedia para ela fazer. Insistiu em mostrar de todas as formas possíveis que não aceitava aquele percurso já tão conhecido: a felicidade ofertada numa bandeja de prata só para ser arrancada dela depois, lembrando-a de sua própria morte.

Enquanto os dois travavam uma verdadeira batalha de resistência, foi crescendo nela a certeza de que, em algum lugar do seu passado, a felicidade dele valeu mais do que sua própria vida. Como poderia ter sido diferente? Ele era sempre tão perfeito e ela tão... Ah, não importa! Isso foi no passado. Jane não desistiria de si mesma agora.

Com as armas que tinha, da forma que podia, ela lutou. Sua vida tinha sido uma luta sem fim de qualquer forma. Então, por que não lutar agora? Negou se entregar à escuridão. Luzes acesas, olhos sempre abertos. Ela pode ter chorado, mas nem assim desistiu.

Então o cansaço foi se abatendo sobre ela de forma cruel. Já estava a ponto de apagar novamente, de se desligar de tudo pra ver se aquilo acabava. Foi daí que Kurt Weller FBI acordou, se levantou e começou a recolher tudo, mostrando que a tiraria dali. Tão indescritível! Seu ânimo retornou apesar do seu cansaço, apesar do seu estômago gritar contra ela no caminho de volta.

Confusa e exausta, Jane sentiu a mão dele acariciando suas costas, depois roçando os dedos de sua mão e, por fim, oferecendo algo para beber que foi o bálsamo necessário para suportar o caminho que tinham pela frente. Talvez ela pudesse contar com ele quando suas forças faltassem...

A estrada a sua frente parecia sempre igual. Jane não sabia o que viria. Ela só tinha uma certeza: não desistiria de viver e de ser feliz.

                                               ***************************

Kurt estacionou o carro e suspirou. Tudo que tinha pela frente era uma incógnita. Então, decidiu focar nos próximos minutos: tirar Jane do carro, entrar com ela e a bagagem. Só lá dentro saberia qual reação ela teria.

Repetiu como fez na cabana, chamou a atenção do olhar dela:

— Chegamos, Jane. – disse calmo.

Observar o cansaço no rosto dela e não poder puxá-la para seus braços era terrível. “Inferno! – murmurou em pensamento - Espero que você goste daqui. Senão descemos com travesseiros e cobertores e tento ajeitar uma forma de dormimos no carro. Pelo menos assim você descansa um pouco...”

Kurt desceu e contornou o veículo. Abriu a porta dela e a viu deslizar logo para fora. Muito bom, bem mais fácil dessa vez. Tentou pegar o máximo de bagagem que podia, afinal se ela aceitasse ficar, não poderia deixá-la sozinha para voltar ao carro. Então a observou. Jane estava olhando para o alto, contemplando a fachada do prédio. Seu rosto estava calmo, bem diferente do que foi na cabana.

— Vamos entrar. – ele disse gesticulando com a cabeça no sentido da porta inseguro em antecipar qualquer coisa mais pra ela.

Jane atendeu sem resistência alguma. Dentro do prédio, pegaram o elevador. Subiram em silêncio, os braços dela cruzados protetoramente sobre a barriga.

Quando chegaram ao andar desejado, Kurt colocou parte da bagagem no chão para pegar a chave no bolso da calça. Então abriu a porta e voltou pegar as malas. Ao se virar pra frente, foi surpreendido com Jane já dentro do apartamento, quase no meio da sala. Sem hesitar, a seguiu, precisando ficar atento a cada reação dela.

Lá dentro, Jane deixava seus olhos vagarem pelo espaço. Enquanto caminhava, correu os dedos pelo balcão da cozinha, depois foi até o sofá e se sentou.

Kurt torceu os lábios e o pescoço satisfeito. Era todo sinal que ele precisava. Deixou as malas no hall de entrada, levando só a sacola com as coisas de cozinha consigo. Colocou-se na frente dela, se abaixou e, assim que conseguir contato visual, disse:

— Eu vou colocar algumas coisas na geladeira e já volto. – e apontou para a cozinha ao lado. O ambiente aberto permitiria observá-la enquanto fazia aquilo.

Enquanto acomodava os alimentos na geladeira, espiou de novo a sala. Jane estava o observando, parecia tranquila apesar de cansada.

“Por favor, Jane, goste daqui. Seria horrível descobrir que você só está desistindo de lutar contra o que não quer.” Ele pensou já num tom de prece a Deus.

Mais alguns minutos e tudo estava no lugar. Voltou a olhar para sala e viu que ela tinha se deitado no sofá. Isso encheu seu coração de paz.

Caminhou devagar até lá, não queria assustá-la. Abaixou-se ao lado dela e a observou. Parecia tão serena. Em outros tempos, a tomaria nos braços para levá-la ao quarto. Ela resistiria, diria que era desnecessário e que podia andar perfeitamente, mas ele insistiria porque sabia que ganharia o sorriso e consentimento dela. Muita coisa mudou desde então. Já não existia essa liberdade entre os dois. Mas ela estava aqui: viva e forte como sempre e ele não deixaria nada tirar essa felicidade dele. Tocou devagar os cabelos dela enquanto a chamava:

— Jane! – e esperou ela abrir os olhos ainda muito sonolenta. – Venha, vamos para o quarto.

Ela atendeu prontamente e se deixou guiar por ele.

Assim que entraram no quarto do casal, ela tirou o tênis e se deitou na cama. Então, olhou pra ele e mostrou o lugar ao seu lado. Esse convite era algo que ele realmente não espera, mas também era irrecusável. Livrando-se dos seus sapatos, ele foi até a mesa de cabeceira e acendeu o abajur antes de apagar a luz do quarto. Nada de escuridão por aqui. Ela suspirou parecendo aliviada.

Kurt se deitou de lado, virado para ela. Jane fez o mesmo e segurou as mãos dele. Os olhos dela se prenderam ao dele por um curto espaço de tempo antes de cederem ao sono. Kurt suspirou. Era real: eles estavam juntos de volta à cama que compartilharam tantas vezes. Então desceu o olhar para a barriga já bem saliente dela. Deus, era muito melhor que no passado!

Exausto, deixou-se embalar no sono. Finalmente voltou para casa com sua família.

Algumas horas depois

                Ainda com preguiça de acordar, Kurt estendeu o braço para sentir Jane ali. O vazio foi tudo que encontrou. No instante seguinte, ele estava em pé, totalmente desperto, chamando por ela.

                O banheiro foi sua primeira alternativa. Alguns sinais mostravam que ela passou por ali. Mas já deixara o local. Saindo para o corredor, verificou os outros quartos. Nada. Chegando à sala, também a encontrou vazia. Com a emoção já se sobrepondo à racionalidade, voltou à chamá-la bem alto e forte, em puro desespero.

                A porta do apartamento estava bem em frente ao seu campo de visão. Droga, droga, droga. E se ela saiu? As escadas seriam um destino mais certo. Deus, que ela não tivesse ainda alcançado a rua. Haviam tantos perigos lá fora...

                Já estava atravessando a sala quando percebeu a porta da geladeira aberta. Talvez ali encontrasse alguma pista. Entrou na cozinha.

                No chão, encolhida contra a pia, rodeada por muita coisa, uma Jane muita assustada olhava pra ele.

— Você não saiu... – ele concluiu em voz alto por puro instinto. – Obrigado. Obrigado. Obrigado. – disse agradecendo aos céus e a ela.

Então observou melhor a cena à sua frente. Manteiga de amendoim, morangos, restos de um pêssego e o pote com a sopa que preparou na cabana circundava uma Jane com dedos e rosto lambuzados. A porta aberta da geladeira deixava o ambiente bem gelado.

Kurt bufou um sorriso e coçou os olhos com uma das mãos enquanto a outra fechava a geladeira. Depois se sentou de frete pra Jane que ainda o observava bem assustada, mas ao vê-lo se sentar, ela fechou a expressão do rosto e colocou as mãos sobre o estômago gesticulando brava com a cabeça.

— Ok, você estava com fome... – ele disse sorrindo. – e sabe onde encontrar comida. Isso é bom. Me desculpe por ter gritado.

O tom manso da voz dele a acalmou e sua fisionomia foi desfazendo a carranca. Percebendo que ela cedia, Kurt pegou o pote de sopa que estava entre os dois para se aproximar mais. Imediatamente ela gesticulou para impedi-lo e fez uma expressão de nojo com o rosto.

— Então minha sopa está ruim? Com certeza gelada deve ser horrível. – ele disse riu.

Jane pegou o último morango da embalagem e puxou o pote de manteiga de amendoim. Já estava levando o dedo até o creme quando parou e olhou para Kurt, levantando os ombros e arqueando as sobrancelhas como quem não tinha outra forma de se servir daquilo.

Kurt riu e disse:

— Tudo bem, você não deve saber onde ficam os talheres. Pode usar o dedo, eu não me importo.

Jane passou o dedo na manteiga de amendoim e depois a colocou sobre o morango. Então levou o petisco bem singular até a boca de Kurt.

— É pra mim? Você deixou um morango pra mim? – ele disse antes segurar o pulso dela para abocanhar seu presente. – Hummmm. Mas no pão com geleia é bem melhor. – e, sem pensar, sugou os dedos dela para aproveitar o resto da manteiga de amendoim que tinha ali.

Jane riu daquilo e coçou a boca com a outra mão espalhando ainda mais os restos de fruta e manteiga de amendoim pelo rosto.

Era a primeira vez que ele a via sorrir desde que acordou do coma. Tomado pela emoção, levou a mão até o rosto dela, acariciando com o polegar sua bochecha.

— Ah, Jane... Seu sorriso é maravilhoso, sabia? Obrigado.

Ela baixou os olhos, um pouco tímida, e isso fez Kurt recuar por achar que já tinha avançado demais o espaço pessoal dela por uma só manhã. Mas aquele momento era especial demais pra não ser registrado.

Então ele olhou para cima e viu seu celular sobre a bancada. Deixou ali na madrugada. Pegou o aparelho e fez algumas fotos dela. Depois se deslocou para seu lado mudando a câmera para selfie e fez fotos dos dois.

Como ela não parecia incomodada, ele pegou o pote de manteiga de amendoim e ofereceu a ela, depois mostrou a própria boca. Jane revirou os olhos, mas acatou o pedido. Lambuzou o dedo e colocou na boca dele. Kurt repetiu o que fez da primeira vez, sugando os dedos dela e conseguiu o que queria: Jane riu e ele registrou isso com uma selfie dos dois.

Ele teria ficado ali com ela por muito tempo, mas o chão do apartamento estava bem gelado e temeu que isso tivesse consequências ruins para a saúde já frágil dela. Levantou-se e a ajudou a sair do chão. Indicou a pia e ela compreendeu que devia lavar as mãos e, claro que também tentou lavar ao redor da boca sem muito sucesso em acabar com a bagunça que havia em seu rosto. Enquanto isso, Kurt recolheu as coisas do chão.

Jane mostrou as mãos limpas pra ele.

— Hmmm, nada mal. Mas ainda precisamos limpar aqui. – disse pegando o pano da mão dela e limpando cuidadosamente as partes do rosto e a ponta do nariz que ainda tinham manteiga de amendoim.

Ele estava bem concentrado na tarefa, procurando fazer um bom trabalho com a maior delicadeza possível quando finalmente seus olhos desviaram da boca para os olhos de Jane. Ela o observava e, como sempre, seus olhos se conectavam aos deles de forma tão intensa que era difícil descrever. Havia muita familiaridade naquele olhar. Era como voltar aos primeiros dias juntos nos FBI. Os dois permaneceram assim por algum tempo até cederem em sorrisos constrangidos pelo não dito tão explícito que trocaram. Ao se afastarem, ele disse sem ser capaz de parar de sorrir:

— Avery precisa ver essas fotos. – sua alegria precisava ser compartilhada.

Acionando o nome da enteada pelo whatsApp, Kurt enviou a mensagem “Olha o que achei na cozinha do apartamento” e encaminhou também as fotos que fez.

A garota estava na aula de anatomia. Já era tarde na Alemanha. Mas ela jamais deixaria de conferir uma mensagem do padrasto. Correu as fotos sentindo uma alegria imensa encher seus olhos de lágrimas. A colega ao lado, discretamente se preocupou:

— Está tudo bem?

— Está tudo ótimo. São só os dois idiotas mais fofos do mundo. – e limpou a lágrima que insistiu em escapar pelo canto dos olhos.


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Notas finais do capítulo

Juro que estou tentando tirá-los dos momentos difíceis, mas há tanta coisa lá que os dois precisam descobrir para superar.

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