A Garota do Capuz Vermelho escrita por Ly Anne Black


Capítulo 1
Único




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O detetive Andrew Hunter esperava um dia calmo. Seu plano para aquela quarta-feira era matar tempo preenchendo papelada, bebendo suco detox e se distraindo da enxaqueca que fazia um inferno em suas têmporas. Tais planos foram desmantelados lá pelo meio da manhã, quando a detetive Emily Hunter entrou em sua sala com dois arquivos em uma mão e a caneca de cerâmica lascada na outra. O olhar grave no rosto largo prenunciava problemas. O cheiro pungente do café que ela trazia feriu o olfato sensível de Andrew, que fez uma careta.

— Você vai querer dar uma olhada nisso — Emily jogou um dos arquivos finos sobre a mesa dele, uma das pastas azuis que a delegacia tinha adquirido na semana anterior.

— Eu duvido muito — ele disse, mas abriu o arquivo mesmo assim.

A foto do defunto havia sido colocada no topo da pilha de papéis, para efeito dramático. O corpo era de um jovem caucasiano nu em pelo, o pescoço manchado de abundante sangue seco, os olhos abertos e uma expressão congelada de surpresa e horror no rosto. Havia sangue escuro na boca da vítima, manchando seus lábios semiabertos e cinzentos. Andrew teve a impressão de que o conhecia. Mas então, ele conhecia todo mundo em Little Wing.

— Isso é novo — disse num tom de neutro, apesar do um mau pressentimento flutuando em suas entranhas. — Causa da morte?

— O ferimento no pescoço. O laudo ainda não voltou, mas parece que a carótida foi destruída, morte rápida.

— Mordida de animal?

— Não... suspeita de arma branca. Flecha, pelo formato da laceração, mas nada foi encontrado na cena do crime.

Ela lhe deu um olhar sugestivo e jogou outra pasta em cima da mesa dele. Essa era amarela, desgastada nas bordas, uma mancha redonda de café no canto inferior direito. Andrew a reconheceu. Era a pasta que encerrava os detalhes da morte do seu pai, cujo corpo também fora encontrado na floresta muitos anos atrás.

Ele ergueu o rosto incrédulo para a detetive.

— Você não pode estar achando que ela teve qualquer coisa a ver com isso.

— O corpo foi achado dentro da propriedade Redhood — Emily quase pareceu feliz ao revelar aquele detalhe. — Encontro você no carro em quinze, e vê se lava essa cara de ressaca antes. Que merda é essa, Andrew, farra em plena noite de terça-feira?

Emily saiu da sua sala deixando a porta aberta de propósito para irritá-lo. Andrew esticou a perna e usou o pé para fechá-la– sua sala não era grande e suas pernas eram compridas. Ele puxou o arquivo amarelo para perto.

Arquivado”, dizia o carimbo vermelho no topo da primeira página.

Andrew passou um bolo de páginas e releu as palavras familiares que abriam o caso:

“Camila Redhood, 7 anos. Encontrada sozinha na floresta ao lado de corpo de um lobo morto, dois dias após avó reportá-la desaparecida. Relatório do exame de corpo de delito indica sinais de luta: mordida de animal no braço direito, sangue e carne sob as unhas e roupas, mais tarde identificados como de Adrian Hunter, guarda florestal na reserva de Wind River. Corpo de Adrian Hunter foi encontrado dois dias mais tarde, flutuando no lago Tigee. Causa da morte: ferimento causado por arma branca não identificada.

A nota de arquivamento do caso fora escrita na sua caligrafia dez anos após a sua abertura, e um ano após Andrew se tornar detetive:

“Caso fechado por ausência de evidências.”

Duas fotos deslizaram para fora da pasta quando Andrew tentou fechá-la. Uma delas era a do corpo do seu pai, como fora achado na cena do crime. Nu e inchado pelo período submerso na água. Um ferimento no pescoço e os dentes quebrados, alguns deles faltando.

A outra foto, da garotinha encontrada na floresta dois dias antes, seu casaco ensopado de sangue. Os detetives no caso tinham atado os seus pulsos miúdos com zip lock para levá-la de volta à delegacia, porque ela tentara resistir, arranhando e mordendo. Camila Redhood fora dispensada da obrigação de depor, depois de jurar que não se lembrava de nada dos últimos dois dias desde o seu desaparecimento.

Andrew suspirou, antecipando o desconforto da visita. Pegou as duas pastas, o resto do seu suco verde e a Glock 22 na gaveta, e foi encontrar Emily no estacionamento.

— Não derrame essa coisa fedida no meu carro — Emily o advertiu quando ele se acomodou no banco do carona, o copo sem tampa balançando precariamente na mão esquerda.

— Não enche meu saco, Em.

Que ótima ideia aquela de Pompy, colocá-los como parceiros. O chefe de departamento de polícia de North Wind só podia ser filho único…

— Você leu o arquivo? O cara tinha antecedentes criminais. Assediou sexualmente uma vizinha ano passado. A noiva pediu uma ordem de restrição para ele no ano anterior.

— E por que não estamos interrogando uma delas? — Andrew disse com mau humor. — Qualquer uma das duas tem muito mais motivo do que a garota Redhood.

— É, mas Redhood é a única andando por aí com uma besta, até onde sabemos. Além do mais, o corpo foi encontrado na propriedade dela.

— Nem devíamos estar nesse caso — Andrew resmungou, mais para si mesmo do que para Emily. — Não dá pra sermos exatamente imparciais aqui, não acha? 

      Ele queria dizer que não tinha como Emily ser imparcial, mas a sua opinião estava mais segura nas entrelinhas, especialmente quando era Emily quem estava no volante. 

Emily pressionou os lábios em uma linha apologética e encolheu os ombros.

— Eu pedi a Pompy para colocar a gente nele.

— Você pediu–! — Andrew começou um protesto indignado.

— Já faz um tempo que não checamos a garota, ok! Alguém tem que ficar de olho nela.

* * *

Camila Redhood morava em uma cabana miúda e bem conservada no sudoeste da reserva florestal de Wind River. Localizada dentro da única propriedade privada da reserva, só continuava ali porque a família Redhood havia se instalado naquelas terras muito antes da floresta se tornar uma reserva– antes mesmo da cidade de Little Wing existir. Apesar de serem uma das famílias mais antigas da região, os Redhood nunca tinham demonstrado desejo de construir uma casa na cidade – ou de se misturarem com os demais residentes. Camilla, a única Redhood que restava, mantinha aquela tradição e raramente era vista circulando pela cidade.  

Andrew desceu do carro e se adiantou para a cabaninha, batendo com os nós dos dedos na porta de sequoia antes mesmo de Emily deslizar o motor. Fumaça espiralava pela chaminé e o cheiro de sangue fresco e pelo úmido alcançou o nariz de Andrew, vindo por debaixo da porta.

Camila Redhood abriu depois da quarta batida. Ela, uma jovem de pele morena avermelhada, olhos claros puxados e um queixo arrogante, estreitou os olhos quando o reconheceu.

— Você está algumas horas adiantado.

Andrew fez um movimento mínimo de negação com a cabeça e tirou o distintivo do bolso, vendo Emily se aproximar pelo canto de olho.

— Eu sou o detetive Andrew Hunter, e essa é a minha parceira, Emily. Gostaríamos de fazer algumas perguntas, Srta. Redhood. Podemos entrar?

— Ah, merda — Camila praguejou. Ela deu espaço e fez um sinal para dentro de sua casa. — Suponho que possam.

Emily pisou para dentro da cabaninha sem hesitação, mas Andrew hesitou à porta. Camila ergueu as sobrancelhas para Andrew, por cima da detetive. Ele lhe devolveu com um olhar de apelo. “Você só precisa cooperar”, tentou lhe dizer com as sobrancelhas erguidas.

Camila devolveu com um esgar que prometia a sua morte mais tarde.

— Esteve caçando ontem a noite, Redhood? — Emily perguntou, alheia à troca de olhares entre a garota e o seu irmão. Emily andou até o balcão que dividia a salinha da cozinha, e torceu o nariz para o que estava pendendo em ganchos acima do balcão. Cinco coelhos decapitados e já sem pele, pendurados pelas patas traseiras, sangue viçoso pingando pelas cavidades do pescoço e escorrendo em uma bacia metálica logo abaixo.

Andrew também franziu o rosto, seu estomago vazio roncando.   

— O que é isso? Little Wing anda tão entediante que polícia agora está investigando a morte de animais silvestres? Eu tenho permissão para caçar na minha propriedade, detetive Hunter.

Emily ignorou o tom sarcástico da jovem, se curvando para investigar os orifícios no pescoço de cada animal. Andrew ficou parado perto da porta, experimentando a estranheza de visitar um ambiente tão familiar por aquele novo ponto de vista.

— Matou esses aqui com flechas? — Emily perguntou, levando Camila a rolar os olhos. — Posso dar uma olhada na arma do crime?

— Arma do crime? — Camila olhou irritada para Andrew. — Detetive, do que eu estou sendo acusada aqui, exatamente?

Andrew puxou do bolso a foto da vítima. Emily fez uma cara estranha quando ele segurou a foto para Camila dar uma boa olhada– aquele não era, afinal, protocolo de um interrogatório informal conduzido fora da delegacia.

— Scott Sharpangs não voltou para casa ontem a noite, e a mãe notificou a polícia. O corpo dele foi encontrado nos limites da sua propriedade hoje pela manhã.

— A não ser que ele tenha estado aqui na forma de um coelhinho felpudo, não acho que isso seja da minha conta — Camila disse, cruzando os braços em frente ao corpo, sem se demorar na foto. — E se esse merdinha esteve em minha área, quero fazer uma queixa formal de invasão de propriedade. Com quem eu falo sobre isso?

— Esse “merdinha” foi assassinado, Redhood — Emily disse, as narinas infladas. — Será que você não pode ter o mínimo de…

— Você o conhecia? — Andrew perguntou por cima da voz da irmã.

Ele e Camila trocaram um breve olhar e Andrew soube que ela odiava tudo sobre aquela visita. Sobre abrir a porta e fingir que não o conhecia, sobre Emily invadindo o seu santuário sem convite, sobre o uniforme que Andrew usava. Andrew sabia que precisaria se desculpar, mais tarde.

— Todo mundo conhecia essa desculpa de ser humano. Duvido que alguém vá ao velório dele, além da mãe. E olhe lá.

— Qual era o seu nível de relacionamento com a vítima? — Emily pressionou. Andrew viu a irritação queimar nos olhos amarelos de Camila e desviou o rosto, com um frio no estômago. Nunca gostara de vê-la irritada.

— Eu disse que o conhecia. Não é a primeira vez que ele vaga pela reserva no meio da noite, procurando problemas.

— Então você o viu por aqui na noite passada?

— Não posso dizer que tenha visto, não senhora — Camila disse, circulando para trás do balcão e sacudindo um pouco os coelhos nos ganchos, para ajudar o sangue a escoar.

Andrew acompanhou com os olhos algumas gotas de sangue escaparem da bacia e salpicarem o balcão. Sua boca salivou e ele desviou o olhar com pressa.

— Ouviu algo estranho durante a noite?

Camila ergueu o rosto sério, mas com uma sombra de escárnio nos lábios rosa escuros.

— Tem todo tipo de ruído estranho na floresta quando cai a noite, detetive Hunter.  

Emily bufou, empertigando-se na postura rígida que lhe rendera o apelido de Cabideiro entre os colegas da delegacia.

— Algo que insinue que um homem foi morto e desdentado em sua propriedade, eu quis dizer.

Camila nem piscou, mas o risinho de escárnio ainda estava lá.  

— Se ele foi morto e então desdentado, não é como se pudesse ter feito muito estardalhaço, não é? E então, eu não teria ouvido coisa alguma.

Emily fez um movimento sutil de sua mão para o coldre, num reflexo de irritação, mas parou no cós da calça e enganchou um polegar impaciente no gancho do cinto.

— Eu nunca disse que essa foi a ordem dos acontecimentos…

— Estamos terminadas aqui, detetive? Preciso preparar o meu almoço.

Emily olhou mais uma vez para os coelhos descarnados nos ganchos, sem esconder o desprezo. Ela e Andrew tinham sido criados em uma casa estritamente vegetariana.  

— Vou precisar levar uma flecha da sua besta para análise, Redhood.

— Eu preciso de um monte de coisas na vida, detetive. Nem por isso saio por aí exigindo o que quero sem um mandado.

As duas se encararam, juras de morte silenciosas presas nas pálpebras. Andrew colocou uma mão apaziguadora no ombro da irmã antes que mais algum protocolo fosse quebrado durante a visita.

— Vamos chamá-la à delegacia caso o seu depoimento seja necessário, senhorita Redhood. Obrigado pela sua hospitalidade.

— Sempre um prazer — ela sorriu para Andrew, mostrando os dentes muito brancos. Quando Emily se virou, os lábios de Camila voltaram a se crispar e ela o fuzilou como se preferisse que Andrew fosse um dos coelhos sem cabeça nos ganchos.

“Sinto muito”, ele fez com a boca antes de sair da cabana.

Emily bateu a porta do carro com força desnecessária.

— “Obrigado pela sua hospitalidade”? Essa garota é uma selvagem, viu o que ela fez com aqueles coelhos?

— Em, sério — Andrew fechou a porta do carona com delicadeza exagerada, para fins de contraste. — “Arma do crime”? Não temos nenhuma prova contra ela.

— Eu sei, não foi um dos meus melhores momentos — Emily admitiu, girando a chave na ignição do velho Chevy cor de lama. A viatura roncou truculenta em resposta. — Mas a garota é uma psicopata. Viu o jeito com que ela olhou para foto? Nem piscou. E aquele sorrisinho na cara, de quem já fez coisa parecida e faria de novo, se tivesse a chance.

Eles arrancaram pela estradinha de mão única que ligava a cabana à via principal da reserva e tomaram o sentido de Little Wing. Andrew apertou as pálpebras com a parte macia das palmas, tentando aliviar a enxaqueca pulsante que voltava com força total.

— Não foi ela quem matou nosso pai, Em — ele disse, só para o caso de a irmã ter se esquecido.

— Nunca foi provado que não foi ela — Emily o corrigiu, os ombros ainda tencionados. — Não é a mesma coisa.

— Ela era só uma garotinha. 

— Psicopatas não tem idade. Não se lembra daquele garoto de doze anos que matou os pais e os três irmãos no Alabama, só porque ele não ganhou o Lego do Star Wars de aniversário?

— Tenho bastante certeza de que ele já tinha uns quatorze… E eu entendo o sentimento, também ficaria puto se não ganhasse os meus legos. 

Emily olhou para ele com severidade e Andrew se calou, pressionando os lábios. Pelo canto de olho, viu a irmã dar um longo suspiro e deixar os ombros dentro do uniforme preto da polícia relaxarem.

— Desculpe, não foi lá muito profissional da minha parte. Acha que pode não mencionar nada disso ao Pompy? Ele ainda está puto comigo por causa do atraso dos relatórios do caso da Barricada.

— Não conto nada, se você não comentar sobre a foto — Andrew barganhou, mesmo sabendo que Emily não diria nada de toda maneira.

A sua irmã era um pé no saco, mas seria sempre a primeira a protegê-lo e a última a traí-lo em qualquer circunstância.

— Então, o que vai fazer hoje à noite? Vai cair na farra de novo? — Emily perguntou, numa tentativa de amansar os ânimos quando estacionaram na entrada da delegacia. Andrew deu com os ombros.

— Vou encontrar alguém em Lake West. Devo passar a noite por lá, se tudo der certo.

— Uh, me poupe dos detalhes sórdidos. E só a apresente “à família” quando tiver certeza que não é nenhuma maluca.

Andrew sorriu amarelo. Emily partiu na frente, parando no lounge dos funcionários para pegar se reabastecer de café-preto-extra-forte-sem-açúcar. Andrew passou longe da cafeteira.

A última coisa de que precisava naquela época do mês era de um estimulante.

* * *

Dirigiu para fora dos limites da cidade antes mesmo que o sol tocasse a linha do horizonte. Naquela época do mês, Andrew evitava a estrada do parque Washakie, na qual seu carro poderia ser visto nas câmeras instaladas pela prefeitura do condado. Ele conhecia rotas alternativas que levavam à propriedade Redhood. Rotas que Camila lhe mostrara há muitos anos. Antes de aprender a dirigir, Andrew costumava chegar lá de bicicleta. A pedalada longa contribuía para o corpo dolorido, nos dias que seguiam aquelas visitas.

Andrew estacionou numa clareira à beira do lago Wetpaws, que demarcava o limite leste da propriedade Redhood. Ele seguiu de pé por uma estradinha quase oculta entre as árvores, guiando-se pelo olfato, seguindo o rastro do sangue fresco e da lenha queimada na lareira.  

Camila o esperava nos fundos da cabana. Ela já vestia a sua capa de cetim vermelha, que ondulava até os tornozelos cobertos por botas de caça de couro. O capuz abaixado cobria o cabelo escuro, preso em duas tranças longas pendendo uma de cada ombro. A cesta de piquenique estava apoiada no último degrau da escada; Andrew sentiu o cheiro pungente de carne fresca e sua barriga roncou mais uma vez, de um jeito doloroso.

—— Sua irmã é uma vaca — Camila disse sem virar a cabeça. Estava pendurando a pele marrom-avermelhada dos coelhos que caçara mais cedo em um varal de corda, para que secassem durante a noite.

— Sinto muito por mais cedo — ele disse, se aproximando com cuidado até parar ao seu lado.

Camila ergueu uma mão e lhe afagou a cabeça, bem onde um cacho do cabelo castanho de Andrew fazia um redemoinho. Andrew inclinou-se, fechando os olhos para a carícia, sua enxaqueca vacilando sob o toque dela.

— Deixei o seu chá em cima da mesa — ela disse, numa voz mais suave. — Vá tomar enquanto ainda está quente. 

Andrew usou a porta dos fundos, lutando para ignorar a cesta de piquenique ao passar. Sabia que se fosse um bom garoto, Camilla lhe ofereceria as melhores partes da carne suculenta mais tarde.

— Vou tentar tirar Emily do caso — ele disse, projetando a voz de dentro da cabana para que ela lhe ouvisse do lado de fora. — Está mais do que óbvio que é pessoal demais para ela.

Camila fez um sinal de deixa-pra-lá com a mão morena, sem dizer palavra. Ela ficava mais séria, concentrada, na proporção que a lua cheia se aproximava.

Andrew se sentou na mesinha minúscula da cabana, que mal cabia duas pessoas. A xícara fumegante de chá de ervas que lhe esperava, uma receita secreta da família que o deixaria mais dócil quando a lua subisse. Ele sorveu um gole do líquido amargo e olhou ao redor, não com os seus olhos de detetive de mais cedo, mas como estava acostumado a ver aquele lugar. Refúgio.

A cabana transpirava caça em cada centímetro das superfícies cobertas com pele de cervo, das armadilhas de urso penduradas no teto, das ferramentas de dissecar e estripar em ganchos sobre a pia, e principalmente da cabeça empalhada do Primeiro Lobo empalhada sobre a lareira. Aquele era, segundo as histórias que Camila lhe contara, o lobo que matara a matriarca Redhood. O começo de tudo.

Camila voltou para o interior da cabana e Andrew abaixou a xícara. 

— Mas sério, precisava arrancar os dentes dele, Mila?

— É a tradição — ela disse por entre os dentes. 

— E usar a besta… isso vai dar um problemão pra abafar.

Ela se tencionou com o comentário. Andou até a besta que mantinha pendurada atrás da porta, junto ao coldre e a série de flechas embebidas em pasta de acônito. Colocou ambos sobre os ombros, por cima da capa vermelha.

— Não tive escolha. Ele achou que podia me fazer a cadela dele. Um maldito pervertido, não importa a fase da lua.

— Merda. E onde é que eu estava…? Eu devia ter protegido você!

Andrew nunca se perdoava por não conseguir lembrar do que fazia naquelas noites. Tudo era instinto, quando a lua subia.

Camila achou graça.

— Eu sei me defender sozinha, Andrew. Você deveria saber disso, entre todas as pessoas. Ande com esse chá, o sol está quase se pondo.

Camila voltou para os fundos da cabana a fim de terminar os preparativos para mais uma noite de lua cheia em Wind River. Andrew bebeu o último gole de chá, já sentindo os primeiros sintomas. O calor emergindo de um ponto indistinto em seu corpo, o canto primitivo da floresta retumbando em seus ouvidos, chamando-o.

Eles caminharam lado a lado pela trilha noroeste, rumo ao pico Wolverine. Camila em sua capa, o capuz puxado para cima cobrindo o rosto, a delicada cesta de piquenique em um braço, cheia de carne de lebre, fresca e desossada.

Enquanto os mantinha alimentados, não precisavam caçar nas cidades próximas. E se algum saía do controle…  acabava entrando para a coleção de presas que Camila mantinha na caixinha de cerâmica sobre o console da lareira. Andrew bem sabia; era lá que os dentes do seu pai tinham ido parar.

Mas Andrew… ele tinha sorte. Poderia ter se tornado parte daquela coleção há muito tempo, se Camilla não o tivesse adotado.


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Notas finais do capítulo

Publicada em 19 julho de 2020, atualizada em 12 de dezembro de 2020.



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