Cinzas escrita por Shalashaska


Capítulo 4
Apenas um momento




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24/04/2018 

Birnin Zanna, Wakanda

06:58

 Sonhos movimentados e confusos ainda escorriam da cabeça da Feiticeira Escarlate quando acordou de seu sono, deitada de forma desajeitada sobre um dos bancos da aeronave e apoiada em James Barnes. Ela levantou o torso em um único tranco, seus íris vermelhas e o corpo exausto, ainda que desperto. Os sonhos tinham escapado dos limites de seu crânio, mas ela ainda conseguia sentir o gosto metálico de sangue, de terra. 

Bucky sentiu a movimentação de Wanda e logo também acordou, acariciando seu ombro, beijando seus cabelos com discrição. A viagem tinha sido longa e a alternância de fuso horário não ajudava a relaxar o corpo, então todos aproveitaram esse meio tempo para descansar o quanto podiam. Até mesmo Banner, Wilson e Visão estavam do outro lado da nave, tomados pelo sono... O soldado então murmurou palavras doces no ouvido dela, em russo. 

— Você está segura, boneca. — Disse, sua voz tão longe e simultaneamente tão perto de Wanda. Aos poucos, ela voltava a realidade e segurava a mão dele com firmeza, buscando ancorar seu espírito. — Acho que estamos chegando.

Ela concordou, continuando a segurar a mão dele. Bucky voltou a fechar os olhos, sonolento, e ela fez o máximo de silêncio para não perturbá-lo. A luz adentrava o vidro grosso e blindado da aeronave, naquele tom dourado que somente a atmosfera de Wakanda parecia oferecer. Reconheceu o verde sempre presente dos arredores, o imenso monumento de pantera esculpida em pedra… E, em contraste com tal cena acolhedora, estava a silhueta dissonante de Steve Rogers, ainda pilotando a aeronave.

Se antes Wanda precisava de palavras leves e do tom do céu para caracterizar a aura azul do Capitão América, agora ela observava uma cor escura, líquida. Era o horizonte de um oceano amargo, tenso. Os pensamentos dele se tornavam ondas, depois espumas e então ondas ainda maiores. Wanda escutava tal som com cautela, ciente do maremoto que se formava entre devaneios preocupados e frustrações. O nome de Tony era frequente, associado com fortes correntes de culpa, medo, sal. Onde ele estava? Quem havia o levado? E como deter Thanos?

A última questão também ressoava em Wanda, mas a sua cor era vermelha e seu coração incandescente por debaixo da pele pálida, a expressão neutra. O caos dentro de si ardia por simplesmente queimar o Titã, sem culpa ou hesitação; tocar os véus da realidade e retorce-los, repicá-los se necessário. No entanto, a Feiticeira já tinha crescido além de seus ímpetos de aniquilação e tinha plena consciência de que existiam custos ao se brincar com o universo. Permaneceu ali, abraçada pela aura amena e escura de James Barnes, como se a noite lhe envolvesse para lhe oferecer descanso. De repente, veio a voz elegante e estável de Natasha de outro assento veio, um tanto próxima de Steve. Primeiro ela se espreguiçou, depois virou-se em direção ao loiro. Wanda não reprimiu um sorriso ao enxergar as nuances rosáceas da aura dela, encolhida ainda na poltrona.

Rogers. — Disse séria, naquele tom que só usava durante missões ou quando queria aborrecê-lo, chamando-o apenas pelo sobrenome. — Você não me acordou para trocarmos de lugar.

— Eu nem percebi, senhorita Romanoff.

De repente, o mar dos pensamentos dele não jazia tão revolto assim. Sorriu de lado, olhando-a brevemente apenas de esguelha, para depois prosseguir com a direção da aeronave. O esquema que ele, Natasha, Rhodes e Sam tinham feito eram turnos para pilotar na longa viagem. Sam ficou com o primeiro, Rhodes com o segundo, Steve com o terceiro e Nat com o último. À despeito do acordo, o Capitão América agora parecia próximo de pousar.

— Você não sabe mentir, Steve. 

— Não estou cansado. — Justificou, embora não fosse a verdade inteira. Isso tanto Wanda, que secretamente observava os dois, quanto Natasha podiam perceber. — Você sabe, por causa do soro de supersoldado tenho mais energia e tenho fôlego por mais horas.

Ela riu baixinho, ainda querendo irritá-lo pelo acordo quebrado. E é claro, Natasha tinha certo apreço em fazer piadas envolvendo sua idade e seus interesses românticos.

— Diga isso para suas namoradas.

Na parte traseira do veículo, Wanda o assistiu baixar a cabeça, talvez sorrindo também, e então soltando a direção da aeronave para encarar a russa diretamente. Houve um segundo de silêncio, um segundo doce no qual os dois desfrutaram a expressão um do outro. Em seguida, Steve usou sua voz de censura: 

Nat. Bom dia.

— Bom dia.

Os Vingadores Secretos haviam finalmente pousado em Wakanda. A situação geral não era boa, pois a ameaça inevitável do espaço se aproximava e prometia um destino terrível à todo universo, no entanto… Naquele instante, entre devaneios de ondas e de fogo, Wanda sorriu pela cena que tinha acabado de testemunhar. 

***

Todos acordaram rápido para descer da aeronave, recebidos pelo rei T’Challa, a princesa Shuri, a guarda pessoal composta pelas Dora Milaje e mais outros guerreiros com lanças. Ver o rosto conhecido de Shuri fez o coração da Feiticeira Escarlate se sentir mais em casa. Tinha desenvolvido uma amizade sólida com ela, por mais que início tenha sido disfuncional e até mesmo perigoso. De qualquer modo, superaram tudo isso e conversavam com relativa frequência no último ano através da pulseira-comunicador que a sokoviana ganhou de presente. E além de tudo, era bom vê-la ao lado do irmão e membro mais ativo do governo wakandano, com todas as diferenças e certos atritos passados resolvidos. Dura, questionadora e perspicaz: Shuri era uma princesa implacável e sua aura transmitia tudo isso.

Wanda soltou um suspiro fundo. Apesar de ter dormido, ainda se sentia atordoada e imaginava que os pesadelos eram, ao menos em parte, responsáveis pela sua exaustão. Portanto, nada mais soou tão agradável aos seus ouvidos quando a wakandana sorriu e disse:

Otária. — As duas se abraçaram. Wanda apertou-a, talvez um pouco demais, porque logo a princesa tensionou o corpo como um gato desconfortável no colo de alguém. A Feiticeira mal ligou, mais interessada em saciar a saudade da amiga que não via pessoalmente há tempos. — Você está com uma cara horrível.

— Bom te ver, babaca. Quase não te reconheci sem o piercing no septo.

— Por um momento quase pensei que ia falar da minha perna quebrada. — Ela arqueou a sobrancelha, mencionando a briga que tiveram no ano anterior e no fim que lhe obrigou a usar gesso na perna. — Já estava cogitando em te banir daqui. Aliás, não sabia que tinha pintado o cabelo. Está mais claro, acobreado. Homenagem a Romanoff?

— Ah! Na verdade, isso é um feitiço de transfiguração. Ajuda nos disfarces... Posso mudar de volta, se quiser.

— Não é necessário. Até que fica bem em você.

Bom. Estou cansada demais pra me concentrar nisso.

Enquanto isso, T’Challa explicava a Bruce Banner, enganado por Rhodes, que reverências de joelhos não eram necessárias em Wakanda. O grupo seguiu conversando ao adentrar uma das construções reais do país, pois havia muito o que se pôr em dia em pouco tempo.

O rei afirmou que contariam com o apoio da Guarda Real, a Tribo das Fronteiras, as Dora Milaje e, se fosse possível, Ororo Monroe poderia mandar ajuda.

Steve e Natasha davam descrições táticas dos aliens que encontraram em Edimburgo, já Banner explicava o plano de Thanos e como ele agia. Sam confirmava as informações, carregando Visão em um dos ombros; o sintozóide, por sua vez, explicava todos os detalhes que sabia sobre a Jóia da Mente em sua testa. Mais afastados, Bucky, Wanda e Shuri acompanhavam de leve o diálogo; estavam atentos, mas não diziam nada. A Feiticeira Escarlate só conseguia enumerar a enorme lista de problemas e variáveis para aquela missão dar errado, por mais que desejasse em seu coração justamente o contrário. Apertava a mão de James, encarava um ponto vazio a frente. Após certo tempo, a princesa comentou: 

— Acredito que esses novos inimigos ainda estão procurando Visão e não demorará muito para o encontrarem aqui. — Inspirou, virando o torso enquanto andava para vislumbrar o rosto dos visitantes. — Ainda assim, há tempo para eu me atualizar das informações enquanto vocês aproveitam para se trocar e comer alguma coisa. Seus quartos ainda estão vagos. Acredito que resto não vá precisar muito de roupas, já que estão praticamente montados.

Os ombros de Wanda, bem como toda a sua expressão, relaxaram com o som daquelas belas palavras.

— Um banho seria ótimo.

— Sim, eu imaginei. — Riu, mas logo sua face tornou-se um tanto séria novamente. — Só não esqueça de comer alguma coisa, mesmo que seja só pra lhe dar um pouco mais de energia. Depois que tudo isso acabar, — Ela alongou as últimas vogais em “depois”, ainda carregada de sotaque. — Poderemos fazer coisas mais divertidas. Que tal rever suas amigas cabras, Bucky?

Ele soltou uma risada franca, passou as mãos nos cabelos.

— Confesso que sinto falta delas, vossa Alteza.

— E quem sabe as crianças parem um pouco de questionar onde está o Lobo Branco.

Wanda notou que ela estava de bom humor e tal fato lhe ajudava a ser um pouco mais otimista frente aos problemas que estavam passando. Wakanda foi o início de seu tratamento psicológico após a prisão e a coleira elétrica; foi também o lugar onde firmou amizades e onde teve a chance de realmente conhecer James Barnes. Então, se havia um lugar capaz de evocar memórias boas e pintar de novo o verde da esperança em seu coração, esse lugar era Wakanda. 

Ela tentou armar o melhor sorriso que pôde, um tanto torto e pequeno, mas já um começo. Inclinou-se para o soldado ao seu lado e comentou:

— Fez sucesso aqui, James.

— Não só ele. — Shuri respondeu pelo soldado, um semblante de falsa maldade estampado em seu rosto. — As Dora ainda podem precisar de uma estrangeira pra apanhar durante o treinamento. — Wanda lhe deu um empurrão de leve, sem querer se recordar daquilo. — Só estou brincando, sabe disso. Mas Njeri pergunta de você, talvez seja bom dar um oi a ela. Não ganhou uma cicatriz no rosto por causa do trabalho bem feito da doutora… E também não é bom ficar longe de consultas.

A Feiticeira concordou em silêncio. Tinha melhorado muito no último ano, mas a princesa tinha razão. Um acompanhamento psicológico e psiquiátrico consistente talvez tirasse um peso de si que ocasionalmente lhe fazia doer os ombros… Só era estranho voltar após tanto tempo e imaginava como narraria a história absurda de Chthon para a pobre doutora Njeri, que tanto havia cuidado dela.

Bucky pareceu notar também que a atitude de Shuri era implacável, serena e até mesmo indiferente ao saber de ameaças intergalácticas. Estava impressionado, o rosto numa expressão intrigada. 

— Você fala como se isso tudo… — Tomou uma pausa, o que fez a princesa parar um pouco para prestar atenção. O restante do grupo seguia adentro da construção, já pegando o caminho para subir alguns andares. — Não fosse nada demais.

— Não é o que queremos? 

Com certeza.

— Bom, podem ir. — Ela chamou uma dupla de funcionários do palácio para conduzi-los até os aposentos  que se referiu antes, embora o casal soubesse o caminho. — Só não demorem, certo? O fim do mundo pode não esperar.

Com uma última piscadela, a ela se afastou dos dois para seguir o restante dos Vingadores e o irmão. Bucky e Wanda se entreolharam, já não tão certos de esperança, mas dispostos a acreditar na princesa de qualquer jeito. 

***

Talvez tivesse sido melhor tomar um banho gelado para despertar melhor seu espírito, mas Wanda não conseguiu evitar ligar a água quente naquele chuveiro enorme. Enquanto se ensaboava, contou alguns roxos aqui e ali ao longo de sua pele por conta da luta contra os alienígenas e reparou que o corte em sua coxa já estava menor devido a seus feitiços curativos. Ali, debaixo d'água e respirando o perfume do vapor, a Feiticeira só desejava relaxar os músculos e esquecer da existência de problemas. Mas, ela já não tinha tanto tempo assim.

Saiu do chuveiro, enrolou-se na toalha. Há muitos meses naquele mesmo país, ela só era uma garota que não suportava se olhar no espelho e ver as próprias olheiras e cicatrizes, a expressão triste e abandonada. Hoje, Wanda se encarava com cuidado. A névoa no banheiro cinza parecia querer lhe contar mais coisas, memórias que estavam escondidas em sua cabeça. Apoiou-se no granito preto e elegante da pia, ficando imersa em divagações. Existia algo em seu pesadelo, só não conseguia se lembrar o que exatamente. 

Bucky adentrou o banheiro, inteiro aparatado com munição, quebrando suas reflexões pela aparição súbita. Ou não tão súbita assim, já que Wanda sabia que ele estava no quarto e tinha de fato deixado a porta aberta caso precisasse falar com ela.

— Wanda, eu já estou pronto. Vou ficar com Sam lá fora, ok? — A Feiticeira assentiu silenciosa, seus olhos baixos. Houve uma pausa e James não partiu. Ao contrário, deu passos em sua direção e a envolveu com os braços, embalando-a com carinho, firmeza. — Eu sei que tá tudo um saco e não era assim que a gente imaginava o fim das nossas férias, mas… O que há, boneca? Existe mais algo em seus olhos.

— Eu tive um pesadelo na aeronave. Não me lembro muito bem o que era, na verdade. Sei que vi a cor verde e… — Ah, como ela detestava parecer tola com medos infundados. Sentia que algo iria acontecer, só não estava certa do que se tratava ou como impedir. Teria que destruir Visão? Falharia nisso também? Em nada ajudava ter tantos poderes se o perigo de tornar as coisas piores era uma possibilidade vertiginosamente real. O que sabia era que o sentimento de tensão não era novo e ela se recordava de algo semelhante quando… Quando encarou Stephen Strange. Teria ele visto algo também? — Eu tô com medo, James.

— Uma sensação, huh

— Sim.

Ele apenas a abraçou mais forte e Wanda enterrou sua face no peitoral dele, mesmo que o toque não fosse tão macio pela roupa de tecido mais firme que ele vestia. Inspirou fundo, ouviu as batidas de seu coração, desejando que aquela incerteza dentro de si fosse uma sensação efêmera. Controlar seu próprio medo era uma atividade recorrente e traiçoeira, mas ela se julgava capaz de fazer isso mais uma vez. Precisava confiar em si, em seus amigos e no sucesso da missão. Se não fizesse isso, o que mais teria?

Bucky beijou o topo de sua testa, livrando-a de todos aqueles receios. Depois, afastou-se apenas o suficiente para encará-la fundo nos olhos

— O que quer que aconteça, nós vamos ficar juntos. É o que importa.

— É. — Foi capaz de sorrir. — Não estou mais encrencada sozinha.

— Não mesmo. 

Beijou-a de forma breve e doce, depois partiu.  

Wanda se viu mais uma vez acompanhada pelos próprios pensamentos e decidiu se secar e se vestir logo, invocando seu traje vermelho e longo. Roupas eram recursos interessantes para uma feiticeira se sentir mais poderosa e confiante, sem falar em alguns feitiços de proteção bordados no tecido. Saiu do banheiro e sentou-se na cama, virada para grande janela em que ela tanto observou o céu da madrugada em outros dias. Como tinha mais alguns minutos, decidiu entrar em contato com uma pessoa importante.

Ebony e Agatha estavam fora do ar. Mais uma vez tinham viajado para ajudar outros bruxos e investigavam o paradeiro de Mordo, responsável por problemas com praticantes de magia. Natalya pouco assistia ao noticiário, de tão envolvida com a rotina pacata da loja de bruxa da senhora Harkness, a qual ela cuidava na ausência da mestra. Provavelmente nem fazia ideia da situação e Wanda considerava melhor assim. Fora eles e seus amigos, só existia uma pessoa com quem Wanda Maximoff precisava falar:

Erik Lensherr.

Ela facilmente poderia ter lançado apenas uma carta mágica, assim como fez anteriormente, ou então ligado numa videoconferência através dos hologramas de sua pulseira wakandana. No entanto, não queria assistir sua expressão preocupada pelo holograma, seu olhar deveras pesado. Bastava sua voz. Wanda estabeleceu o contato e não precisou esperar: no primeiro toque, Erik atendeu. Quem falou antes, porém, foi ela:

— Ah, oi.

Ela sentiu a pessoa do outro lado inspirar fundo em alívio, em fúria. Soube imediatamente que ouviria seu pai carregado de frustração, cada palavra dita com peso.

— Estou tentando falar com você há horas, onde você está? — Nem houve tempo para responder, pois ele continuou falando. Mesmo sem explodir e gritar, Wanda só franziu os cenhos com aquele tom. O mais estranho de tudo era notar a semelhança com Pietro irritado. — Eu soube o que aconteceu em Edimburgo, em Nova York também. Você tem noção da gravidade de tudo isso, então por que deixou seu comunicador desligado? Algo poderia ter acontecido a você. Mobilizei uma equipe para...

— Eu estou bem, Erik. — Wanda massageou as próprias têmporas. — De verdade, eu e Bucky estamos bem, sem nem… — Não havia razão em explicar seus ferimentos, então não fazia mal mentir um pouco. — Sem nem um arranhão. Escapamos com ajuda dos nossos amigos. 

Uma pausa. Wanda quase conseguia enxergar o rosto dele tenso, a pele um tanto corada por derramar todos os seus medos de pai em poucas sentenças. Ouviu a respiração dele se acalmar aos poucos e imaginou suas narinas dilatadas, os olhos vítreos.

Filha. Me diga onde está.

— Wakanda. Estou segura. — Reforçou. — Sabe como dizem, estou na nação mais avançada do globo.

— Volte para casa.

Ela engoliu seco. Onde era sua casa? A antiga cratera em Novi Grad, em Sokovia? Não, não poderia mais ser lá. Lá agora era um campo de flores gêmeas, vermelhas e azuis. Seu lar seria o apartamento em Bucareste? O quarto em Outer Heaven ou na casa de Agatha? Ou… os seus aposentos em Genosha? Wanda não tinha exatamente um lar como um espaço físico, mas tinha pessoas com quem podia contar. Uma nova família espalhada em vários lugares. E, apesar da dificuldade em chamar Erik de pai, ela o considerava muito em seu coração, só não tinha condições de abandonar tantas pessoas que precisavam dela.

— Eu não posso. — Ela tremeu os lábios, encarando a pulseira. Parte dela queria atender o pedido, era verdade. — Não… Não acabou. Existem alguns seres do espaço que querem acabar com tudo e eu preciso ajudar. Talvez… Talvez eu seja a única pessoa capaz fazer coisas importantes. 

O mutante soltou um bafejo exasperado, ácido. 

— Tenho certeza de que Rogers preza mais sua segurança, assim como eu. E ele bem pode arrumar outra pessoa para o serviço.

— Tem a ver com as Jóias do Infinito. — Erik fez silêncio. Ele sabia do que se tratava, tinha se informado bem depois que saiu da criostase, sem falar que Wanda também o atualizou. Era necessário explicar sobre as Jóias para que ele entendesse a parte dos experimentos que moldaram a si e a seu gêmeo. Portanto, o assombro do líder de Genosha era justificado. — Tenho que destruir uma delas antes que caia em mãos erradas. Erik… Isso é importante e tem gente contando comigo.

Ele assentiu, disse algo que ela não pode ouvir direito. Talvez estivesse falando com alguém ao fundo, o que a surpreendia um pouco. Erik costumava ser reservado e preferia absoluta privacidade em sua relação com a jovem sokoviana. O fato é que Wanda não deixou de sentir o temor dele aceso, seu instinto de proteção pulsando por seu corpo. 

— Não saia daí. Eu vou te buscar o mais rápido possível.

— Não, você não entendeu. — Wanda elevou a voz. — Eu tenho uma missão e vou cumpri-la. Depois que tudo isso acabar, posso ir ao seu encontro.

O tom da resposta de Erik Lensherr a desarmou. Era ela que não tinha entendido:

— Você é minha filha. É tudo o que tenho, tudo. E eu não posso vê-la… — A Feiticeira quase ouviu o restante de suas palavras, a mesma entonação de luto e dor que escutou em áudios antigos, recuperados por uma missão de Steve antes mesmo de Erik despertar de sua câmara criogênica. “Eu não posso vê-la partir como cinzas…” Como Anya. Como Lorna. Como Pietro. Como tantos outros que ele perdeu. — Eu não iria suportar. Faço tudo por você, para ficar segura e viva. 

Ela compreendeu, pois também era assim. Talvez os genes de seu pai tivessem transmitido mais do que seus poderes, pois a cor e a intensidade de seus corações eram iguais. Pelas pessoas que amava, Wanda era capaz das mais terríveis violências, dos mais doces amores. Magneto, por ela, domava seus ímpetos de vingança e tentava cultivar mais compaixão no peito. Isso, no entanto, desaparecia como a chama de uma vela ao ser soprada quando a vida e bem estar de sua filha estavam em jogo. Ele retomava a dureza de seu caráter, ao seu rosto severo e até mesmo cruel.

Os dedos de Wanda foram de encontro com pequena estrela de seis pontas no fecho da pulseira. Os dois tinham presenciado mortes demais.

— Eu sei, eu sei…

Volte. Eu te peço, Wanda…

Ah, era raro e absurdo ouvir um pedido, uma súplica daquele homem tão austero. No entanto, a Feiticeira não poderia recuar, não agora.

— Eu vou voltar. Depois. Se você pudesse salvar pessoas, você deixaria passar? Vai contra seus discursos em Genosha.

— Estamos falando de humanos ou mutantes?

Não conteve o meio sorriso pelo deboche. É claro que ele soltaria um gracejo irônico aqui e ali aos humanos desprovidos do gene X. 

— De todos. Erik, eu não tenho muito tempo, mas só quero dizer que… É o meu dever, acho. Posso ajudar as pessoas com os poderes que tenho e a questão é séria, talvez a mais séria de todas que já enfrentei. Não me impeça. Salvar o mundo também envolve salvar você e eu… Me importo contigo.

Uma nova pausa. Havia muito em jogo e ambos estavam nervosos, mas no fim só queriam o bem um do outro. Wanda fechou as pálpebras, segurando o espaço entre os olhos, no alto de seu nariz. Absorvia o silêncio. Pensou que até seu pai tivesse encerrado a ligação quando ele enfim respondeu:

— Você é mais do que esse mundo merece.

Sorriu, agora seu coração morno. 

— Tenho que ir agora. — Murmurou, sem querer encerrar o contato na realidade. — Liguei para não ficar muito preocupado. Mais preocupado, digo.

— Wanda. Fique bem.

— Não estou cancelando nossos planos de ir pra Alemanha e conhecer onde ficava a relojoaria do seu pai.

— Sim, seu avô, Wanda. — Mais uma vez ele a recriminou por não usar as palavras certas para se referir aos seus parentes de sangue. A jovem não fazia por mal, apenas lhe escapava na boca… E com a situação atual, mal lembrava de se atentar a isso. — Você iria adorá-lo. Ele lutou na Primeira Guerra, eu te contei?

— Não. Conte-me essa história… Assim como você me contou a sua. Eu ainda tenho alguns minutos.

Ele levou alguns segundos para responder, surpreso. Quando tal episódio ocorreu em Zurique no ano anterior, Wanda e Erik tinham escapado de uma explosão e foram parar entre escombros do metrô, presos. Ele cantou para ela um canção polonesa, a melodia que cantarolou para Anya quando ela era pequena - a mesma canção que povoou os sonhos estranhos de Wanda Maximoff por muitos anos. Mesmo ferida e com a consciência indo e vindo na ocasião, ela se lembrava como ele a segurou com delicadeza, como sua voz era suave e como tudo parecia pacífico e irreal. Ele dissera que só queria um final feliz para a vida deles.

Wanda queria isso também.

— Você se lembra.

— Eu não poderia esquecer.

— Eu prefiro lhe contar mais detalhes pessoalmente, mas o que seu avô disse, antes de… — Ele inspirou fundo. — Partir para sempre, nunca saiu da minha cabeça.

— E o que ele disse?

— Às vezes, nesta vida, a gente só tem um momento. Uma ocasião na qual tudo se alinha….Quando qualquer coisa é possível e de repente, podemos fazer e acontecer. Deus nos ajude se aproveitarmos esse momento… E nós perdoe se não o aproveitarmos.

O tremor da voz dele…. Era, talvez, a pior parte de ouvir suas palavras. Eram lembranças transbordando em cada sílaba, em cada pausa. Algo tinha acontecido ao seu avô de sangue antes de morrer, Wanda cogitou, triste e pensativa. O avô presenciou a Primeira Guerra e, muito provavelmente, morreu na Segunda. Seu pai… Seu pai enfrentou os horrores de um campo de concentração e inúmeras coisas mais. Ela e seu irmão, décadas depois, encontraram a morte cedo, durante um jantar. Era sempre assim, todo esse sofrimento para a família? A tragédia era outra coisa hereditária?

A Feiticeira inspirou fundo. Se, de acordo com as palavras de seu avô, às vezes existia um momento em que tudo é possível, ela torcia que não tivesse gastado sua sorte em episódios anteriores. Precisava da probabilidade ao seu favor, mas prometia dar o máximo de si, seu sangue e alma, para fazer a coisa certa e aproveitar as oportunidades.

— Eu… Eu não sei o que dizer. Acho que estava precisando ouvir isso, Erik. Obrigada.

— Só quero que você viva, custe o que custar.

Sorriu, triste. Ao contrário de seus pensamentos anteriores, ela não desejava estar apenas ouvindo sua voz. Ardia por abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem ao final de tudo, que poderiam viajar juntos, comemorar festivais judaicos juntos e que Erik teria passe livre para atormentar o genro durante os jantares.

— Eu sei, eu sei… Também quero isso. 

A despedida dos dois foi incômoda, cheia de pausas e palavras não ditas até que ela acionou o recurso para encerrar a ligação. Wanda tentaria acertar essas incongruências no futuro, numa ocasião melhor. Usando um pouco mais de magia, ela gesticulou brevemente com os dedos e invocou a sua tiara vermelha para si, um presente de seu pai. Encarou o adereço em seu colo por alguns segundos, numa rápida reflexão sobre sua composição leve, a função prática de acentuar seus sentidos e seu significado pesado. 

Algo lhe deixava inquieta, arrepiando cada poro de sua pele. Haviam motivos de sobra, é claro: As lembranças que a base em Nova York e Visão lhe despertaram; a ameaça iminente do espaço, a possibilidade de ter que matar para resolver a questão; pesadelos e recordações esquisitas envolvendo Stephen Strange…  mas existia também algo mais a fundo, que ela não conseguia explicar além da palavra “sensação”.  

Quando enfrentou Chthon, sabia que tinha que ser sagaz e controlada. Foi difícil e lhe custou boa dose de sua saúde mental, de seu sono e de sua paz. Venceu, afinal. Agora, o caos dentro de seu peito queria correr em suas veias, transpirar em energia e tocar quem quer que lhe ameaçasse para lhe reduzir a nada, a menos que um átomo. Violência pura e reativa. Sentia algo tétrico e inevitável se aproximando, coisas que seus poderes lhe alertavam com severidade. 

Wanda colocou a tiara, ajeitou os cabelos.

Nunca fugiu de seu destino, por mais terrível que fosse. Sendo também inevitável o futuro, carregar seu temor nas costas somente lhe atrasaria e lhe provocaria dores. Engoliu suas dúvidas, optou por acreditar no plano de seus amigos, na certeza de Shuri e no doce apoio de James Barnes. Mais do que isso, Wanda Maximoff sentiu-se injetada pelas palavras de seu pai, de seu avô. Acreditaria em si mesma, pois era infinita e fulgurante. Talvez fosse mais um momento decisivo para sua vida… E ela esperava aproveitá-lo bem. 

Deixou o quarto para se juntar aos demais.


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Notas finais do capítulo

É meio dramático, mas realmente toda essa história que o Magneto contou para a Wanda acontece na HQ "Testamento". É algo que conduz essa hq, uma fala do pai do Erik. Achei interessante colocar aqui.



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