Cinzas escrita por Shalashaska


Capítulo 3
O Titã




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Não houve questionamentos sobre decisão de irem todos para a aeronave dos Vingadores Secretos. Sam ajudou a levar Visão até lá, enquanto Bucky carregava Wanda em seus braços. Depois poderia se preocupar com seus pertences ainda no hotel, pois existiam questões mais urgentes ali, como o ferimento na coxa da Feiticeira. Colocou-a quase deitada nos assentos laterais do interior da nave, inspecionando a gravidade da ferida. O pedaço de tecido da blusa que havia amarrado nela para estancar o sangue já estava empapado, portanto ele trocou a bandagem e cortou um quadrado da calça jeans de Wanda para que pudesse manejar melhor a situação. Para diverti-la enquanto ela fazia uma careta de dor, Bucky refletiu em voz alta:

— Será que Natasha guarda alguma garrafa de vodka aqui? Seria algo para desinfetar esse machucado.

— E também para você tomar uns goles, huh?

Ele não negou.

Com a nave já no ar e rumando para fora da área onde a luta se desenrolou, Natasha aproximou-se com um bafejo irritado, jogando o kit de primeiros socorros no colo do soldado. O motivo de seu estresse, porém, não era o gracejo tolo de Barnes sobre álcool. Na realidade, Natasha fixou seus olhos em Wanda, enquanto ela usava de sua própria magia para atenuar o ferimento para um corte superficial.

— Achei que tínhamos um acordo. — Disse. — Ficar perto, reportar. Não se arriscar.

— Eu esqueci.

Wanda baixou os olhos, um tanto envergonhada. Custava-lhe admitir que havia esquecido do combinado devido as aventuras em países diferentes com o Soldado Invernal. Isso a fazia se sentir uma adolescente tola e apaixonada, mas ela já tinha passado dessa fase. Comemorara vinte e quatro anos no mês passado.

Ainda que acanhada, não sentia culpa. James Barnes podia distinguir tal coisa em seu meio sorriso.

No entanto, não foi a voz de Bucky que se interpôs ao favor da feiticeira. Foi uma voz mais cadenciada e polida, desprovida de toques humanos: Visão.

— Não a culpe, senhorita Romanoff. — Ele piscou, sentado do lado oposto onde estavam. Próximo de seu corpo sintético, estava o Falcão; que lançou um olhar um tanto cauteloso à James Barnes. — Wanda só ficou em risco por minha causa.

Afinal, algo que Bucky poderia concordar com aquele sintozóide de cores natalinas. 

— É, exatamente.

Para quebrar o frio gélido que a afirmação do Soldado trouxera, Sam optou por continuar falando; oferecendo em seguida uma explicação para justificar a razão para os três estarem ali exatamente numa hora tão necessária:

— Viemos o mais rápido possível. Já estávamos estacionados acima de Glasgow. Depois que soubemos o que houve em Nova York, decidimos conferir como estavam… e fizemos bem.

— É. — Nat concordou. — A notificação de alerta veio logo em seguida.

Wanda soltou um suspiro, seus ombros enfim relaxados.

— Chegaram na hora certa.

Houve um momento de quietude, quebrado somente por Steve Rogers. Ele tinha ajeitado os comandos da aeronave até então, mais silencioso do que Bucky o conhecia. Algo o incomodava, isso era claro. E talvez seu amigo já soubesse o que era - ou quem era - antes mesmo de ouvi-lo falar:

— Visão. Alguma notícia do Tony?

— …Não.

Ele inspirou fundo, passando as pontas dos dedos levemente na barba e depois apoiando as duas mãos na cintura. Engoliu seco, ensaiou um pensamento na boca e em seguida se calou. Ninguém disse nada e não era necessário. Todos sabiam o que Tony significava para Steve - ou para a equipe inteira! - e como ainda partia-o por dentro não ter uma conversa decente com seu amigo após o que houve na Sibéria, depois de descobrir o que houve com… Maria e Howard Stark. Céus, tinha sido terrível. Bucky se recordava de forma recorrente o rosto de Stark ao assistir o vídeo do assassinato de seus pais, o horror pungente em seus poros e o brilho da traição em seus olhos. Steve sabia o que tinha acontecido e não tinha lhe contado.

O máximo que conversaram após tal episódio foi em Zurique, numa emergência, mas tal ocasião não era própria para discutirem assuntos mais sérios. E, ainda assim, Steve ficou tão grato por aquele seu amigo egocêntrico e simultaneamente altruísta ter atendido o maldito telefone.

Depois, nenhuma ligação mais. Só silêncio e certa dose de amargo arrependimento.

Steve tentou soar pragmático, desviando de suas questões pessoais para se focar no sintozóide ferido.

— Não sabemos onde Helen Cho está, então é uma possibilidade fora de cogitação para te ajudar agora. Tony… Também não.

Falcão acompanhou seu raciocínio e lançou a conclusão no ar:

— Parece que a princesa de Wakanda estava certa. Sempre precisamos da ajuda deles.

O Capitão América assentiu, tomando a liderança da aeronave mais uma vez. Traçou as rotas no painel de controle, depois logo acionou a velocidade para que a viagem fosse curta. Antes de percorrerem muitas milhas fora daquela charmosa cidade da Escócia, porém, uma notificação surgiu no painel. Era mais do que um alerta, era um chamado importante e assinalado pela cor vermelha, destacando-se entre as demais telas azuis. Vinha do norte do estado de Nova York e o autor da mensagem não era ninguém mais do que James Rhodes.

Por estar um tanto distante das poltronas de piloto e do painel de controle, Bucky não pôde ler o que a tal mensagem dizia, mas enxergou seu amigo trocando as coordenadas para outro local. Natasha afagou os ombros do Capitão América, murmurando palavras indistintas sobre “tudo ficar bem” e oferecendo-se para pilotar por parte do caminho. Ele agradeceu, mas não saiu de seu posto. Talvez precisasse ocupar a cabeça com alguma atividade.

A Viúva Negra, por sua vez, virou-se para explicar o novo roteiro.

— Mudança de planos, pessoal. Nossa primeira parada será na base lá em Nova York. O assunto parece sério e Rhodes garantiu nossa segurança. — Ela inclinou o rosto e acrescentou: — E nossa liberdade.

O suspiro de Sam Wilson foi audível mesmo à distância, enquanto ele desabava o próprio corpo em um dos assentos:

— Para casa, então.

De forma delicada e discreta, sem um único som, James alcançou as pontas dos dedos frios de Wanda com sua mão. Pressionou-a com cuidado, lembrando-a que estava ali, ao seu lado, mesmo que coisas estranhas continuassem acontecendo e mesmo que não tivesse as palavras certas na boca. A Feiticeira apertou de leve de volta, entendendo. Era mais uma não-conversa deles. Na quietude, os dois concordavam que existia algo diferente no ar, algo mais do que uma estranha sensação ao se encarar uma janela de hotel em Edimburgo.

***

23/04/2018 

Complexo dos Vingadores, NY

17:38

A conversa entre os Vingadores se desenrolava já há alguns minutos, mas o cérebro de Wanda não parecia acompanhar muito bem a sequência de eventos. Nem mesmo reagiu ao diálogo nada amigável entre Steve Rogers e o holograma do general Ross, ou ao choque de encontrarem Bruce Banner - que era o motivo pelo qual James Rhodes havia entrado em contato com os Vingadores Secretos.

Tal dificuldade de raciocínio não estava relacionada ao fato de terem mudado o fuso horário, nem mesmo era ocasionado pelo ferimento de sua coxa, agora já um tanto melhor e sem sangrar. Ou talvez fosse tudo isso somado ao fato de que estava de volta a base dos Vingadores, um lugar que desejavam que a sokoviana chamasse de lar, mas que se mostrou tão diferente disso. Inúmeras lembranças desconfortáveis alfinetavam cada centímetro de seu ser, principalmente do ano de 2016:

O confinamento. As aulas, o treinamento… Queriam que ela não tivesse mais sotaque, pelo o que se recordava da equipe tática americana. Na época, a instrução fazia sentido, mas agora apenas soava problemático.

Os comentários de Visão sobre… Sobre não se tratar da segurança dela, mas dos outros. Ela era uma ameaça, afinal. Não era?

A prisão no mar, ondas e ondas sufocando seus pensamentos e sua liberdade.

Uma sensação enclausurada dentro de seu peito de esgueirava para fora, cada vez mais presente, mais ardilosa. Ela tentava transparecer calma, mas a verdade é que suas mãos tremiam e sua boca balbuciaria se tentasse falar qualquer coisa. Durante meses, sentiu o peso de todos os seus demônios sobre os ombros na tentativa de se manter bem, estável e… Feliz. Confrontou o passado horrível de seus pais verdadeiros, carregava o luto por seus familiares e ainda tinha sido obrigada a enfrentar um deus perverso chamado Chthon. E céus, mesmo assim ela conseguia rir e viver. 

Apenas uma ideia a atormentava, aquela maldita sensação de que aquela alegria tola, a  qualquer momento e sem aviso, iria se esvair por seus dedos sem que ela não pudesse fazer nada. Nenhuma mágica seria capaz de emenda-la de volta. Se desfazer do sofrimento tinha sido um processo longo e doloroso, portanto algumas manhãs ela não conseguia deixar de pensar - e temer - a possibilidade de ser jogada de novo para aquele lugar que tinha batalhado tanto para sair. O quanto demoraria para fazer o caminho de volta? 

E nada naquele ambiente a ajudava se livrar de tal sensação, mesmo que seus amigos e Bucky estivessem ali. Antes, ela não achou que seria tão afetada por tudo aquilo, já que tinha atravessado seus próprios infortúnios, mas lá estava Wanda, encarando ora Visão, ora Bruce Banner. O primeiro tinha uma aura diferente, metade sintética e metade mística devido a Jóia da Mente; o segundo pulsava entre o tom esmeralda elétrico e a calmaria da cor lavanda. O sintozóide era um romance que nunca chegou a acontecer, o cientista servia como um lembrete de que Wanda era capaz de coisas terríveis.

Ainda estava vívido na memória dela quando ela se aproximou de Banner, acompanhada ainda de seu irmão e instruída por Ultron a quebrar suas vítimas de dentro para fora. Parecia ver a si mesma mexendo os dedos, um sorriso sádico em seus lábios, enquanto revirava a mente instável daquele pobre homem que se transformava num monstro. Ela não o culpava quando depois, na torre dos Vingadores, ele a agarrou, achando que ainda obedecia Ultron, e disse: “Eu poderia matá-la sem nem ficar verde”.

Talvez ela fosse um monstro também, apesar de suas tentativas de se livrar do passado. Havia sido tocada por Chthon. Era um receptáculo para o caos.

Wanda piscou em vermelho, sem conter a tensão em seu corpo. Pôs as mãos nas têmporas, querendo ser discreta enquanto o grupo continuava a falar, mesmo ciente de que certamente isso não tinha escapado aos olhos de Natasha, sempre tão observadora. Como a espiã russa não a culpava? Além de Wanda tê-la obrigado a reviver angústias do Salão Vermelho na mesma ocasião em que tocou a mente de Banner, o desaparecimento do cientista em 2015 tinha sido motivo para certas marcas no coração dela. Banner e Romanoff também eram um romance que nunca aconteceu de fato. A russa tinha superado, é claro. Superava qualquer coisa, se bem que… A cor azul da aura de Steve parecia estar relacionada com a cicatrização de suas dores.

Em meio a tantas vozes, auras e cores, a Feiticeira tentava colocar um pouco de juízo na cabeça. Não negaria o passado, suas próprias ações e horrores. No entanto, não estava acorrentada a ele, não mais. 

Talvez o que realmente estivesse exaurindo seus ânimos não fosse sequer seu ferimento, seu cansaço físico ou amarguras, mas sim a história narrada por Banner sobre um titã sedento por poder e alimentado por uma filosofia deturpada: Thanos. Ele estava coletando as Joias do Infinito para pôr em prática seu objetivo de salvar o universo, ou mais especificamente, eliminar metade dele. Já tinha mais de uma, isso o fazia um inimigo mais perigoso ainda. Era responsável por atacar uma nave de asgardianos, segundo Banner, e também era a figura por trás da nave que levou Tony Stark em Nova York, e das duas criaturas - Proxima Meia Noite e Corvus Glaive, segundo Banner - que tentaram matar Visão em Edimburgo. 

Eles voltariam.

E, para derrotá-los, quem sabe Wanda precisasse ser o monstro que tanto esperavam que ela fosse.

Sam Wilson apenas se aproximou da Feiticeira, oferecendo-lhe um copo d'água. Apertou de leve seu ombro com uma das mãos sem dizer muita coisa, ou nada que ela tivesse a capacidade de compreender naqueles poucos segundos. Poderia ser só uma piada para desfazer seu nervosismo, só algumas palavras de encorajamento. Mesmo sem entender, Wanda agradeceu e depois cruzou o olhar com Bucky, do outro lado do recinto. Estava perto de Steve, de braços cruzados, e parecia também notar o seu estado tenso, retraído. Naquele instante, Banner desfechava o pensamento:

— …Olha só, o Thanos tem a maior armada do universo e ele não vai descansar até que ele… — Hesitou. — Consiga a joia do Visão.

Natasha anuiu, mexendo um pouco seu cabelo loiro, e disse:

— Então temos que protegê-la.

— Não, temos que destruí-la. — Visão cortou-a, sua voz analítica e calma. Todos  os olhos daquela sala se voltaram em sua direção: Steve, Nat, Sam; Bucky e Wanda; Rhodes e Banner. A apreensão era geral, mas a da sokoviana era ainda maior. Ela sentia os pensamentos de neurônios artificiais do sintozóide, a conclusão que ele queria chegar. — Eu tenho pensado bastante sobre isso, sobre essa entidade na minha cabeça e sua natureza. E também sua… Composição. — Ainda segurando seu próprio abdômen ferido, ele aproximou-se de Wanda. — Eu acho que se fosse exposta a uma fonte de energia suficientemente poderosa, similar a sua própria assinatura, pode ser que… as moléculas em sua integridade romperiam.

Silêncio. Era isso, então. Aquele pensamento verbalizado, agora uma possibilidade concreta. Ele desejava que Wanda o destruísse, mas a Feiticeira só conseguiu dar um passo para trás. Ninguém mais falava.

— É, e você com elas. — Engoliu seco. — Não quero ter essa conversa.

Ele precipitou seu braço, tocando-a pelo cotovelo. 

— Aniquilar a joia é a única maneira de garantir que Thanos não a pegue.

Bucky, até então apoiado com o quadril em uma mesa, se levantou com cautela. Não era necessário muito tato para qualquer um entender o quanto aquele pedido abalava a sokoviana, prestes a começar a chorar. Visão, não sendo humano, não parecia compreender completamente a situação. O soldado só queria tirá-la da sala, mas Sam fez um sinal para que não fosse imprudente. Wanda conseguia argumentar por si e foi o que ela fez:

— O custo é alto demais. Eu não… Eu não quero ser a responsável pela morte de mais ninguém. Por favor, — Ela sacudiu a cabeça levemente. — Não me peça isso.

— Só você tem o poder de pagar. Thanos ameaça metade do universo, uma vida não pode impedir que ele seja derrotado.

— Mas deveria. — Steve interviu, seus olhos muito azuis naquele instante. Wanda sentiu alívio pela atenção do sintozóide ter sido desviada para o Capitão América, mais grata ainda por ele não submetê-la a algo que ela não concordava. Visão deixou de tocar seu cotovelo e ela recuou ainda mais um passo, agora mais próxima de Sam. — Não negociamos vidas.

— Capitão, setenta anos atrás você deu sua vida para salvar quantos milhões de vidas? Por que agora seria diferente?

— Porque...Você pode ter uma escolha. — Bruce avançou entre o grupo, mais perto do corpo Visão. Sua cabeça jorrava ideias matemáticas, equações resolvidas rápidas demais para que a telepatia da Feiticeira pudesse calcular. De qualquer modo, aquilo soava como esperança. — A sua mente é feita de um complexo construto de camadas. Jarvis, Ultron, Tony, eu, a Joia… todos eles misturados. Todos eles aprendendo uns com os outros. 

Natasha inclinou o rosto.

— Tá dizendo que o Visão não é só a Jóia?

— Eu tô dizendo que se a gente tirar a Jóia, ainda vai restar muito do Visão. — O cientista prosseguiu, reforçando seu raciocínio. — Talvez as melhores partes.

Wanda sentiu o alívio de todos. Finalmente uma saída que não envolvesse entregar a Joia ou o assassinato de alguém - mesmo que esse alguém dependesse de seus circuitos elétricos internos para sobreviver. Bruce não tinha dado muita atenção a Feiticeira desde o minuto que se reencontram, mais focado na história que tinha pra contar e no rosto de Natasha, mas se antes isso provocava desconfiança e desconforto nela, agora Wanda agradecia pela presença do cientista. Tímida e esperançosa, ela questionou:

— Podemos fazer isso?

— Eu não posso, não aqui.

— É melhor achar alguém em algum lugar rápido. — Rhodes finalmente se pronunciou. — Ross não vai deixar vocês terem seus quartos de volta. 

Steve soltou um suspiro, passando a mão na ponta da barba.

— Eu conheço um lugar.

Em resposta, a espiã russa ofereceu um sorriso ao Capitão América e disse:

— Rota original, então. Wakanda.


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Notas finais do capítulo

Sei que o capítulo é menor do que geralmente escrevo, mas sábado tem mais ♥



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