Cornelia Street escrita por MaeveDeep


Capítulo 1
Cornelia Street


Notas iniciais do capítulo

Quando eu ouvi Lover pela primeira vez, tive uma série de músicas favoritas. Cornelia Street foi uma delas, mas foi só nos últimos meses que ela simplesmente tomou raiz na minha cabeça de uma maneira que eu não conseguia tirar de jeito nenhum. Acho que tem algo nela sobre aceitar um risco e saber que, se der errado, aquilo vai te destruir inteira, e simplesmente também não conseguir dizer não. Um tipo de vontade (olha eu usando um anglicismo à toa:), um longing por algo muito real e também bem ali na sua frente. Espero que vocês gostem.



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We were in the backseat

Drunk on something stronger than the drinks in the bar

"I rent a place on Cornelia Street"

I say casually in the car

We were a fresh page on the desk

Filling in the blanks as we go

As if the street lights pointed in an arrowhead

Leading us home

 

A comparação era gentil demais com os mortais, Atena achava às vezes, nos dias em que tudo o que deixava escapar de si eram suspiros emburrados e olhares de relance, desinteressados por já terem visto muito. Estrelas, imagine. Perder um deus de vista, no meio de uma multidão, por pressupor que ele seria como os outros, quando se tratava na verdade de um planeta — a poesia de Apolo era embaraçosa com muito mais frequência do que era bonita de verdade.

Encontrou seu olhar de novo, o céu alaranjado, e pensou em Netuno, e em como era um nome pesado e emprestado, distinto, uma transfiguração roubada; pensou em como as pessoas transitando naquela praça quase vazia não poderiam jamais ser estrelas, e em como Poseidon jamais se perderia entre elas, não enquanto Atena estivesse procurando.

 

And I hope I never lose you, hope it never ends

I'd never walk Cornelia Street again

That's the kind of heartbreak time could never mend

I'd never walk Cornelia Street again

 

Poseidon a observou de volta, desafio mudo. Estava longe demais para que Atena visse seus olhos, mas a deusa sabia como a encaravam; sabia o tom revolto de verde, sabia o contorno de suas sobrancelhas escuras e grossas, sabia como ele conseguia, mais do que ninguém, demonstrar arrogância e zombaria em partes iguais, deus dos mares e também um homem muito teimoso.

Aquele já era um encontro antigo.

 

And baby, I get mystified by how this city screams your name

And baby, I'm so terrified of if you ever walk away

I'd never walk Cornelia Street again

I'd never walk Cornelia Street again

 

Ventava muito, e o cabelo claro de Atena estava quase preso para que não caísse sobre seus olhos. Aquela praça era um espaço abandonado e ao mesmo tempo guardado em seu providencial descuido: quando a deusa permaneceu em silêncio, o concreto entre eles permaneceu sacro, o céu calmo.

Era uma cidade que havia sido invadida para ter sido erguida, em que uma igreja simples, de porta de madeira escura, lançava uma sombra indiferente pela grama mal cuidada. Era branca e azul, com uma cruz antiga erguida alto, distante do Mediterrâneo, distante da Europa, distante de onde todo aquele sangue havia começado — muito embora ali muito dele houvesse sido derramado.

Como se espelhados, Olimpo e Atlântida eram também uma realidade distante. 

 

Windows swung right open, autumn air

Jacket 'round my shoulders is yours

We bless the rains on Cornelia Street

Memorize the creaks in the floor

Back when we were card sharks, playing games

I thought you were leading me on

I packed my bags, left Cornelia Street

Before you even knew I was gone

 

Poseidon estava apoiado na murada que permitia a vista do mar, suas costas contra o ferro batido e seus olhos em Atena, e mesmo sua desconfiança não fazia com que a deusa quisesse se afastar. Pelo contrário, de maneiras delicadamente perigosas, parecia convidá-la, cada passo lento um comprometimento que poderia ser, também, um escorregão do qual não haveria muito retorno. Atena o alcançou com mais facilidade do que poderia ter imaginado um dia; ergueu o rosto um quase nada para olhá-lo nos olhos e sentiu o cheiro do mar.

 

But then you called, showed your hand

I turned around before I hit the tunnel

Sat on the roof, you and I

 

“Esteve me procurando de novo?”, Poseidon perguntou, como se achasse graça; como se guerras não estivessem sendo travadas a cada minuto, como se tudo não fosse terrivelmente insignificante. E Poseidon nunca dizia o que queria dizer de verdade, mas Atena também não tinha o hábito — desviou sua atenção para o mar, ao lado do seu ombro, e sentiu o olhar dele escorrer sobre si, pensativo e lento.

O lugar inteiro tinha cheiro de mar.

 

I hope I never lose you, hope it never ends

I'd never walk Cornelia Street again

That's the kind of heartbreak time could never mend

I'd never walk Cornelia Street again

 

“É claro que não estive”, Atena disse, séria, mas também dando um passo adiante com cuidado, esquivado para a lateral apenas para que pudesse apoiar as mãos sobre a murada de ferro morno. O mar estava esverdeado, escuro e calmo; se ela talvez relaxasse um pouco os ombros, seu braço encostaria no de Poseidon, que permanecia ainda observando a cidade pequena, seu cabelo revirado pela maresia.

“Faz algum tempo”, ele comentou, a voz lenta. “Desde a última vez que nos vimos. É uma série de coincidências engraçadas. Como está seu tear?”

Nunca havia estado tão próxima, e Poseidon nunca havia formulado qualquer insinuação parecida antes — poderia ser a continuidade do olhar que a chamara para perto, poderia ser um aviso suave para que ela se afastasse. Atena o observou de soslaio, avaliativa e quieta, e não se parecia com aquilo, não de verdade: parecia-se com algo tão novo quanto o sol claro que lhe acariciava a pele, prometendo uma queimadura avermelhada apenas se ela insistisse.

“Bonito.”

Sentia que pesava a mão, às vezes.

 

And baby, I get mystified by how this city screams your name

And baby, I'm so terrified of if you ever walk away

I'd never walk Cornelia Street again

I'd never walk Cornelia Street again

 

Atena encontrou seu olhar, tentando entender se ele sabia, se via em seus olhos o quanto ela não conseguia evitar; o quanto era inevitável que aqueles encontros acontecessem; o quanto, às vezes, tudo parecia transparente demais, ao alcance de suas mãos machucadas de agulhas e linhas.

Poseidon já deveria conhecer tudo aquilo, já deveria ter revirado aquela espécie caótica, ferina e vulnerável de sentimento em suas mãos milhares de vezes antes de Atena senti-la daquela forma, irresistível e traiçoeira — e, mesmo assim, parecia receber seu começo com carinho e também com muito respeito, sua atenção curiosa e quieta.

Às vezes, lhe roubava as palavras com um olhar daquele, compreensivo e silente, que Atena quase poderia sonhar cúmplice; como se houvesse a menor possibilidade de que--

 

You hold my hand on the street

Walk me back to that apartment

Years ago, we were just inside

Barefoot in the kitchen

Sacred new beginnings

That became my religion, listen

 

O quadril contra a murada de ferro, Poseidon estendeu a mão para segurar a dela como se não fosse capaz de fazer com que Atena desencarnasse com o mero ato — ela encolheu os dedos, sem saber o que fazer, o rosto muito quente de algo que nada tinha a ver com o sol do fim da tarde, milhares de mentiras passando rápidas por sua mente. Negativas e defesas, todas escudos muito pequenos.

Poseidon tinha os olhos nos seus, e entrelaçou os dedos com cuidado e com propósito, o gesto muito mais íntimo e confortável do que deveria ter sido, pois era um começo tentativo, era o receio de Atena de tentar (sem conseguir evitar) chegar mais perto dos sonhos incômodos que vinha tendo, das distrações de quando estava acordada.

Da maneira como já não conseguia mais disfarçar, não de verdade; e deveria ser por isso um toque breve, ponta dos dedos contra o dorso de sua mão, e não aquela certeza tão convicta, pele áspera e quente, unhas curtas e quase uma promessa muda. Os dedos de Atena rendidos contra os seus, sua respiração presa.



I hope I never lose you

I'd never walk Cornelia Street again

Oh, never again

 

“Nós deveríamos sair para jantar”, ele disse, porque era horrível mesmo de romance, e Atena já sabia daquilo fazia anos; tanto como sabia todos os milhares pedaços pequenos de informação fáceis de se juntar quando se vivia, inesperadamente e pela primeira vez, uma atração daquelas. A despeito de tudo, Poseidon parecia aguardar por sua resposta, como se ela já não fosse tão perceptível quanto o ar abafado entre eles — como se Atena já não houvesse chegado até ali, embaraço a tingindo de vermelho, contra todos seus melhores conselhos.

“Poderíamos”, foi o que disse, pensando tardiamente se a correção não seria inoportuna; o canto de seus olhos verdes se enrugou, contudo, e talvez Atena o houvesse subestimado; o houvesse lido errado por tempo demais.

 

And baby, I get mystified by how this city screams your name

And baby, I'm so terrified of if you ever walk away

I'd never walk Cornelia Street again

I'd never walk Cornelia Street again

I don't wanna lose you, hope it never ends

I'd never walk Cornelia Street again

I don't wanna lose you, yeah

 

Detestava um risco daqueles, sentia também que era inevitável. Sentiu melhor seus dedos contra os seus, teve de abaixar o rosto por um instante. Confiança e receio. Poseidon aguardou pacientemente até que ela voltasse a lhe erguer os olhos, e havia muito a ver de tão perto — Atena percebeu com atraso que apertara seus dedos de leve, sem querer, ao tomar nota pela primeira vez dos seus tons escuros de verde.

Havia pouco que pudesse lhe dizer, nenhum obstáculo que conseguisse levantar de verdade. Queria, de um jeito que transformava aquele verbo por inteiro: que tornava pálidas e pequenas todas suas vontades anteriores.

Entreabriu os lábios por um instante, e o que saiu foi um sorriso pequeno, aquela tarde inteira cintilando como o sol quente sobre a água do mar.

 

"I rent a place on Cornelia Street"

I say casually in the car


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Notas finais do capítulo

Sim, gente, eu voltei depois de um milhão de anos com uma oneshot sobre esse casal de que não largo mão e uma música da Taylor Swift porque sou irremediável. Uma surpresinha de dia 18 de julho? Um jeito de manter contato nessa quarentena infinita? Só os deuses podem dizer. Tenho sentido muitas saudades. Muitos e muitos beijinhos da Maeve, que está distante, mas continua presente (quase como um fantasma rondando esse site e dando susto nas pessoas de vez em quando).