Momentos escrita por Nat King


Capítulo 1
Capítulo 1 - Margosha


Notas iniciais do capítulo

Rapaz que eu nem sabia mais como se postava história nesse site LOL xD

OLÁ, VOCÊ! Eis-me aqui mais uma vez para postar mais uma de minhas ideias, dessa vez não tão mirabolante, porque foi pensada e escrita para uma das melhores amigas e pessoas que eu conheço, Mileh Diamond, um presente de aniversário singelo, mas feito de coração ♥

"Momentos" trará capítulos não necessariamente conectados entre si, contando um pouco sobre - adivinha só :v - momentos vividos por Lilia e Yakov em sua juventude, lá por volta dos anos 70. Ou seja, tudo que tem aqui é 200% headcanon, com OC's emprestados da própria Mileh, afinal, foi ela que começou tudo isso aqui com Philia.Aliás, vocês já leram Philia?? Acho bom. Boa parte da gangue de Yakov, que estreia esse capítulo, vem de lá ;)

Mileh, eu queria tanto poder te falar palavras infinitas de apoio e paparicos que tu não imagina. Ainda não acredito que o mundo das fanfics novamente conseguiu o feito de me apresentar uma pessoa tão incrível. Seu nome do meio deveria ser Orgulho, porque é tudo o que você inspira desde que te conheci. Sei que o tempo atual não anima muita coisa em nossas vidas, sociedade ou conquistas pessoais, mas saiba que por pior que esteja, eu continuo a acreditar em você e em seus sonhos. Vai ficar tudo bem ♥ Felicidades, mocinha! E guarda um pedaço de bolo, pra mim! :v

Sem mais delongas e açúcares, boa leitura!



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Margosha

 

Era mais um dia comum em Moscou, tão tranquilo quanto o mês de agosto poderia ser. Exceto num rinque ali perto onde um pequeno grupo de patinadores aguardava sem disfarçar o entusiasmo, a visita de um amigo de longa data. Já fazia algum tempo que Yakov Feltsman dava as caras em Moscou — ou em qualquer lugar —, então para eles, o reencontro já era motivo de festa. Irina Lagutina tinha até tirado sua garrafa de champanhe francesa de dentro do armário. Era dia de festa, afinal.

Até Yakov atravessar a entrada do rinque com uma criança nos braços.

Não era como se eles pudessem se confundir, aquela era definitivamente uma criança, uma que não era daquele lugar, ou eles saberiam. Principalmente a se julgar pelo tamanho. Também não dava para dizer que Yakov a encontrou no caminho até ali, ou dava, vai saber? Só na comuna em que Lev Batalov vivia, ele conhecia uma família que dos oito filhos, três vieram das ruas.

— Essa criança pode ser do Yakov? — Anatoly Ganshin foi o primeiro a falar em voz alta o que todos ali pensavam em apavorado silêncio.

Criança? Tipo, vocês têm certeza que é uma criança mesmo? — A ideia de que um deles já era pai causava um estranho repuxar no estômago de Dimitri Nabiyev. Não era avesso a crianças, mas ser responsável pela vida de uma o fazia temer pela integridade física do inocente. — Vai que é, sei lá, um saco de batatas.

— Com pernas, Nabiyev? — Irina estava a um comentário idiota de surtar.

— Nunca se sabe, eu não vejo muitos por aí pra saber como se parecem...

Suas palavras foram interrompidas por um tapa nada discreto por parte de Efimiya Koziminskaya, que trazia em seu interior o pânico de não saber o que fazer. Yakov já estava perto o suficiente para ouvir qualquer comentário imbecil para arriscarem piadinhas de cunho político.

— Pelo jeito as coisas aqui não mudaram muito. — Yakov os cumprimentou, não contendo o sorriso. — É bom rever todos vocês.

Cinco pares de olhos passaram do rapaz à criaturinha adormecida em seus braços. Embasbacados era a palavra que descrevia todos eles. É, Yakov imaginou mesmo esse tipo de reação. Era impossível não achar graça da cara que estavam fazendo. Queria poder ter tirado uma foto.

— É, no fim não é mesmo um saco de batatas — Dimitri, por algum motivo, achou que deveria falar alguma coisa. A reação reprovadora dos amigos, com exceção a Yakov, o fez perceber a escolha errada de palavras. — Não que eu preferisse um--!

A criança finalmente se remexeu no colo do pai e Yakov chiou baixo, tanto para ampará-la de volta ao mundo dos sonhos, quanto para pedir silêncio. Quietos e curiosos como uma criança que ganha um irmão novo, eles a olhavam com atenção; agora de perto, podiam ver no rostinho adormecido que se tratava de uma menina.

Aquilo era tão doido e inesperado que todos ali estavam esperando o momento em que seria revelado que tudo não passava de uma pegadinha.

— Bem…? Alguém me ajuda com a mala?

Só então eles notaram o tamanho do trambolho que Yakov trazia na outra mão. Bom, era de se esperar que alguém de viagem marcada trouxesse bagagem, principalmente quando se tratava de duas pessoas.

— Claro, deixa que eu… — Lev se prontificou a apanhar a mala. E o cobertor. E o casaquinho de lã. E o ursinho de pelúcia. Cristo, todas as crianças vinham assim, cheias de acessórios? — Tem onde colocar tudo isso, Irina?

— Tem, claro, eu consegui um cômodo no dormitório para você- vocês, Yakov. Vocês — fez questão de logo arrumar. Tinha uma pessoinha a mais naquela conta. — podem me seguir, por favor. — Apontando o caminho, eles seguiram pelos corredores. Não era um lugar estranho aos jovens, mas àquela altura eles estavam gratos que Irina os estivesse guiando. suas cabeças já estavam com coisa demais para raciocinar, maquinando explicações e teorizando resoluções tão rocambolescas quanto a novidade que era um deles já ter um filho.

Efimiya estava inconformada. Ela nem tinha entrado em uma faculdade ainda e já era tia?!

— Achei que fossem estar mais falantes que isso. — Yakov também parecia desconcertado. — Vocês podem me perguntar qualquer coisa, sabem disso.

Todos acenaram em concordância, mas o silêncio ainda se manteve por alguns lances de escada.

Ninguém ali estava vendo a menina com maus olhos, pelo contrário. Em outra situação, uma em que estivessem mais familiarizados, a coitada da criança seria passada de colo em colo, acordada ou não, certamente sob protestos — ignorados — do pai. Acontece que o último ano e meio para Yakov havia sido uma avalanche de situações adversas, portanto, nenhum deles sentia-se confortável em cobrar detalhes daquela paternidade inesperada.

As Olimpíadas de Inverno de 1964 foram a glória e o declínio do maior patinador da União Soviética. Responsável por catapultar o rapaz de ascendência alemã para o topo do pódio, aos dezoito anos de idade, Yakov fez história ao carregar no pescoço uma medalha de ouro, batendo a nota de competidores de bem mais experiência e recursos do que ele com folga assombrosa na pontuação. Contudo, o primeiro e último ouro olímpico cobrou um preço bem alto: sua carreira.

Ferido no programa curto, Yakov acabou forçado pela própria equipe a continuar competindo, mesmo com o tornozelo fraturado. Não bastasse a negligência médica, o terror psicológico o acompanhou até o dia seguinte, a vitória nauseante que fez uma equipe que não o apreciava, comemorar em cima de sua saúde fragilizada. Dois dias de competição, apenas dois, foram responsáveis por levar para sempre o trabalho de uma vida. O que ele ganhou com isso? Tapinhas nas costas, um “que pena” não muito crível da equipe e a generosa oferta de um trabalho como instrutor no mesmo local em que costumava treinar. Isso se quisesse. Seus amigos quase deixaram Moscou para cometer um crime de ódio quando souberam disso, mas de nada adiantaria. Aquilo poderia colocar até Yakov em risco e ninguém ali queria acabar seus dias em uma prisão, ou pior, ter suas carreira arruinadas.

Porque ter uma carreira arruinada era pior que a privação da liberdade.

Depois do ocorrido, ninguém tentou tocar no assunto, geralmente trocando correspondências sobre suas rotinas e uma ou outra ligação para parabenizações e coisas do tipo. Quando Yakov viajou à Moscou para visitá-los em agosto do mesmo ano, ele até parecia menos abatido, mas não ao ponto de qualquer um ali cogitar que tivesse encontrado uma namorada tão rápido e já tivesse um filho a caminho. Logo Yakov, simpático como uma porta, careta e reservado como um padre — padre, como o tio-avô que o criara. Era difícil imaginá-lo dando esse tipo de salto na vida sem as devidas bênçãos do velho Alfonse, embora fosse tão descrente quanto qualquer russo era em relação ao possível fim da URSS.

E, a julgar pelo tamanho da menina, a conta com certeza não batia.

— Como ela se chama? — Dimitri perguntou primeiro, o porta-voz da curiosidade do grupo.

— Margosha — respondeu sorrindo. Reagindo ao próprio nome, a menina se mexeu ainda de olhos fechados, não despertando totalmente. — Desculpem por isso, ela passou a maior parte da viagem acordada.

— Ouviu isso, Irina? Até um bebê aguenta uma viagem acordado, e você aí dormindo escorada em qualquer canto.

— Pelo jeito o Nabiyev aqui não vai beber com a gente, hoje — respondeu atravessada. As pessoas precisavam aceitar melhor a importância dos cochilos espaçados e sua manutenção para uma sociedade mais equilibrada. Uma Irina com sono prejudicado era uma ameaça pública.

— E qual a idade dela, Yasha? — Efimiya continuou com as perguntas. Embora uma criança miudinha, ela já parecia crescida o bastante para estar engatinhando, quem sabe até arriscando alguns passinhos.

Ele hesitou em responder, mas ninguém perguntou o motivo.

— Oito meses.

— Ela é muito bonitinha. — Tentando disfarçar o esforço feito para carregar a mala, Lev elogiou a menina. Aquelas palavras pareceram ampliar o sorriso apertado de Yakov, orgulhoso de sua garotinha. — Você roubou essa criança, Feltsman?

Para aquela piadinha, a cara de Yakov voltou a fechar. Endurecido pela pergunta, todos puderam ver quando o bom e velho Yakov Feltsman se fechou em sua já conhecida couraça de aço.

— Não, claro que não. Que tipo de pergunta é essa?

Reconhecendo-o naquele jeito meio carrancudo, todos riram baixo, entrando naquela brincadeira subentendida..

— Porque é muito bonita para ser sua filha — completou Efimiya, aumentando a risada do grupo. Visivelmente mais relaxado, Yakov esboçou algo parecido com um sorriso.

O limite da piada, é claro, parava ali. Não havia sinais de uma mãe ali por perto para falarem que a menina teria saído a ela, então era melhor deixar qualquer pergunta sobre isso para um momento mais oportuno.

— Precisamos mandar uma carta para a Lukerya, ela vai morrer quando descobrir que não foi ela quem começou a nova geração da gangue.

Aquilo era verdade e todos riram com bom humor. Bem, ninguém tinha mandado Yakov ser o precoce da turma.

— E aqui está, Yakov Feltsman, um quarto todinho seu — anunciou Irina, parando de frente para a última porta do corredor. Eles haviam chorado muito para conseguirem um quarto com vista para os fundos do ginásio, onde algumas árvores e um pequeno espaço verde se concentravam. Tudo para paparicar o amigo que vinha de longe.

Contudo, se soubessem que Yakov traria uma miniatura de gente a tiracolo, eles teriam providenciado um quarto no térreo. Nunca se sabe quando crianças podem escapar pela janela ou sair rolando escada abaixo. Não gostavam nem de pensar.

— Acho que vamos precisar arranjar um colchão extra para a menina — observou Efimiya. Aquelas camas estreitas dos dormitórios eram desconfortáveis até para crianças, imagine acomodar um adulto junto.

— Estou acostumado a dormir no chão, isso não é necessário.

— Na verdade, esse é o principal motivo de te arranjarmos um leito decente — interviu Lev, colocando os pertences dos visitantes para dentro do cômodo. — Visita a gente tem que tratar como se fosse gente.

— E deve ter algo não tão empoeirado assim no depósito para você deitar — completou Anatoly. — Anda, Yasha, você tá de férias, pode sair um pouco desses seus hábitos destrutivos por uma semana.

— É, e além disso, a menina não merece ouvir seus roncos direto no ouvido — insistiu Irina. —, deixa a gente te arranjar uma cama extra.

Meus roncos, Irina, olha só quem fala. — Finalmente deitando Margosha na cama de solteiro, Yakov se alongou, o estalo de sua coluna audível o suficiente para convencê-lo a aceitar. — Eu aceitarei para não fazer desfeita.

— “Para não fazer desfeita”, Yakov envelheceu vinte anos desde a última vez que veio para cá, que tipo de formalidade é essa? Leningrado te faz mal. — Dimitri provocou, puxando Lev e Anatoly pela manga da camisa. — Fique aí estalando esses ossos de velho que já voltamos.

— A verdade é que esperávamos te levar pra encher a cara, mas ainda não é nem três da tarde — Efimiya brincou, olhando para a garotinha. Mas era mesmo bonitinha a filha de Feltsman… — Quem sabe mais tarde, quando vocês dois estiverem mais dispostos?

— Eu realmente sinto muito, ela estava animada durante grande parte do trajeto, eu juro.

— Não precisa se desculpar, é até bom que ela descanse agora, não daremos sossego para essas bochechas, mais tarde — tranquilizou Irina. Ou não. Vai saber o tipo de super proteção que Yakov costumava dispensar sobre a filha.

— Agradeço a compreensão. Acho que eu cansei mais do que esperava dessa viagem.

— Nada que a gente não possa te dar uma mãozinha. Ou dez.

— Será de boa ajuda — ele riu baixo, sentando-se com cuidado na beira da cama. Ele temia que até o rangido fosse capaz de despertar a filha. — Obrigado por estarem me recebendo.

Tinha um quê meio culpado na voz de Yakov e elas já imaginavam o porquê.

— Olha só, Irina, Feltsman está falando como se a gente não estivesse fazendo mais do que nossa obrigação.

— Não vá se emocionando, Yakov, quando menos perceber estaremos te colocando num trem de volta à Leningrado sem essa fofurinha, aí. — Ele sorriu, um pouco mais calmo com a boa recepção de seus amigos.

— Acho que isso não será possível.

— Nada que os meninos não te apaguem quando você estiver distraído — Efimiya irrelevou, dando de ombros. — Vai, Yakov, descanse que logo mais temos a fofoca de um ano para colocar em dia.

— Verdade, você precisa saber da última encrenca em que Efimiya se meteu.

— Inverdades, Yakov, todas elas! — A moça tratou de se defender antes que Irina começasse a falar. — Você não pode acreditar em nada do que essa víbora disser sobre mim!

Víbora, Koziminskaya, você me respeite! Esse seu espírito anarquista aí ainda vai comprometer a todos nós, sua traidora!

Cuidando para que a exaltação alheia não passasse dos limites e acordasse sua filha, Yakov se deixou relaxar pela primeira vez desde que deixou Leningrado. Era bom ver seus amigos de novo. Melhor ainda era ver que eles continuavam sendo seus amigos.

.:.

Três horas depois, Yakov dava as caras com a filha devidamente acordada e vestida com um vestido que facilmente custaria um salário. Curiosa em ter acordado num lugar tão diferente, a menina olhava ao redor com interesse, quem sabe procurando um dos vizinhos de comuna por ali? O lugar, pelo menos, era barulhento como tal.

Não demorou muito e logo Irina, a primeira a avistá-los, estava acenando e chamando o resto dos amigos, que se aproximaram em uma velocidade que faria Lidia Skoblikova se impressionar.

Acostumada com o ambiente de um rinque e a agitação que o acompanhava, Margosha não pareceu incomodada com a bagunça, apenas curiosa com aqueles rostos novos e de sorrisos nervosos.

— Olha só, Margosha, você tem alguns fãs.

A menina não entendeu muito bem o que aquilo significava, mas aqueles novos rostos sorridentes a provocou a sorrir também. Isso provocou um extenso “owwwn” por parte das moças e risadinhas extras as quais ela já estava habituada. A similaridade das reações a fez aplaudir bem humorada, as perninhas balançando de empolgação.

— Fiquem felizes, ela aprovou vocês.

— Fico feliz, Margosha, você é muito bonitinha! — Anatoly se inclinou para a menina, apertando de leve a bochecha macia. O semblante brilhante fechou-se e por menos parecida com o pai que ela fosse, ela pareceu muito com Yakov.

— Muito bom, Ganshin, ela acaba de perder a simpatia que tinha por você.

Se a expressão “sua cara caiu” precisasse de uma definição mais precisa, ela teria como significado Anatoly Ganshin no dicionário. Ele estava quase tombando para o chão, isso literalmente.

— E agora, o que eu faço? — pediu desesperado.

— Evite as bochechas dela e você ficará bem.

— Ih, ela é cheia de frescuras igual o pai — Efimiya se aproximou, apertando o rosto de Yakov. Ele reagiu com a mesma careta, que por sua voz devolveu o sorriso ao rostinho de Margosha. — Opa, já descobrimos como deixar a jovem Margosha feliz, é só encher o saco do Yakov — riu, voltando a apertar sua bochecha. Para confirmar as suspeitas dela, a menina riu mais alto.

— Eu te odeio, Koziminskaya.

— Chega de enrolação, me entrega essa coisinha, aqui — aquilo não havia sido um pedido por parte de Irina. A resistência que Yakov havia apresentado em entregar a filha, não foi compartilhado pela menina. Embora tímida com aquele rosto novo tão perto assim do seu, ela aceitou bem o colo alheio. Logo, uma fila de novos tios esperavam para fazer o mesmo. — Você deve ser o bebê mais lindo que eu já vi!

— E esses olhões? — Efimiya se sentiu derreter. — Você ainda vai conquistar muita coisa só piscando esses olhões pro seu pai, tenho certeza.

— Ah, isso eu quero ver. — Dimitri se uniu às tramoias imaginárias. — Arranque tudo que puder dele, Gosha, até o último fio de cabelo, sei que você consegue.

A menina nada entendeu, mas pelas caretas engraçadas, foi inevitável não gargalhar.

— Ótimo, vocês já estão conseguindo estragá-la. Me devolvam minha filha.

Sua filha, camarada? — Lev fingiu indignação, pegando Margosha no colo. A menina estava adorando aquele revezamento, erguendo os bracinhos enquanto Batalov exibia-se ao erguê-la para cima e para baixo. — Acho que você quis dizer nossa. Sinto muito, mas como você já deve saber, o sentimento russo deve ser o de coletividade, não sou eu quem faço as regras.

— Isso é ridículo e nem faz sentido — reclamou Yakov, não conseguindo sustentar a cara enfezada ao olhar preocupado para todos aqueles movimentos perigosos que fazia Lev. — Pessoas não são propriedade do coletivo, Lev-- por favor, pare de chacoalhá-la assim!

— O que quer dizer que não somos propriedade do coletivo, não tivemos um dia de sossego desde que começamos nossas carreiras — resmungou Efimiya. Assuntos amargos demais para serem encarados sem uma bebida. — Cansei de encher o saco do Yakov aqui, podemos continuar importunando ele em um lugar com cadeira? Sinto como se as lâminas tivessem atravessado o solado e se fundido aos meus pés.

— Claro, vamos lá mimar nossa menina — Lev disse, saindo na frente, com Yakov logo atrás. — Vamos te encher de açúcar e seu pai que se dane depois pra te fazer dormir.

— Eu não costumo encher ela de açúcar o tempo todo.

— Claro que não, você é o pai — Dimitri acompanhou o amigo na piada. — Sua função é a de educar, a nossa é de estragar.

— Eu vou embora hoje mesmo.

— Pode ir. Dá tchau pro seu pai, Margosha! — Ganshin acenou, chamando atenção da menina, que sem entender, o imitou. Margosha adorava gesticular com suas mãozinhas gordinhas e usá-las para pegar as coisas; acenar era provavelmente sua segunda coisa preferida.

Ignorando-o por completo, o grupo continuou caminhando. Yakov bufou, sorrindo discretamente em seguida. Era um alívio indescritível ver Margosha tão à vontade com eles. Alívio maior era vê-los tão à vontade com ela. Yakov queria muito saber como agradecer a cada um de seus amigos por isso.

— Anda, Yakov, ou a gente foge com ela de verdade! — reclamou Efimiya, e pelo olhar dos demais, foi fácil entender que agradecimento nenhum era necessário.

.:.

Não tinha nenhum motorista na rodada, porque ninguém ali tinha meios de possuir um carro. Mesmo assim, Yakov e Dimitri se colocaram como os sóbrios da noite, para se responsabilizarem pela segurança dos demais. Ninguém nunca sabia quando Efimiya poderia sair por aí ameaçando arremessar rolos de papel higiênico contra o Kremlin, o que era imperdoável — papel higiênico custava muito caro.

A noite, contudo, seguiu tranquila. O verão moscovita alongava o céu claro o suficiente para terem sol alto até tarde, acabando por incentivar mais e mais as conversas do grupo. A passagem de um ano acabou por revelar três namoros de Lev Batalov fadados ao fracasso, Anatoly e Irina que viram seu treinador trocá-los por uma oferta melhor em Leningrado — e ela odiava se lembrar disso — e Dimitri, que quase desmaiou ao ser intimado por alguns guardas por causa da boca grande de Efimiya.

— Alguém soprou nos ouvidos das autoridades que uma certa patinadora havia falado mal do regime soviético — ele murmurou, sentindo o horror daquele dia voltar de uma só vez novo. — Me chamaram no meio de um treino, foi horrível. Todo mundo olhando para mim como se eu fosse ser o próximo nome na lista de desaparecidos.

— Uma criança até chorou — lembrou Lev, que no dia estava assessorando uma turma infantil na pista paralela. — Confesso que eu quase chorei, também.

— Efimiya ainda não tinha chegado ao treino, imagine o desespero que senti, pensei que tinham feito alguma coisa com ela. — Em qualquer outra situação, Dimitri seria bombardeado de piadinhas sobre ser um poço de sentimentalismo, mas não quando o assunto era sério daquele jeito. — Fiquei sozinho na sala da diretoria com eles, eram três comigo, tirando os que estavam do lado de fora.

— Não foram nem vinte minutos, mas pareceu durar duas horas — Irina parecia empalidecer com a lembrança. Ela havia chegado pouco depois e só de ver o Volga estacionado em frente ao ginásio, começou a tremer. Como notícia ruim era rápida em correr, não teve tempo de chegar ao vestiário para lhe contarem.

— Eu nem lembro tudo que me disseram, só sei que perguntaram se era verdade o que Efimiya havia dito e eu neguei tudo. — Virando uma dose, ele continuou. — Lembro de um deles falando: “podemos contar com sua palavra, camarada?” e eu sentindo o suor escorrendo pelas axilas, devia estar sendo uma visão risível, mas eu estava tão apavorado…

Efimiya, calada enquanto ouvia o relato, inclinou-se para apoiar a cabeça no ombro de Dimitri. Ela nunca poderia pagá-lo pela proteção daquele dia.

— Tivemos alguns patrocínios prejudicados esse ano — ela reclamou, voltando a se ajeitar. — Mas eu não havia dito nada naquela época.

Naquela, né, sua bocuda? — Batalov a acertou com o guardanapo. — Ela ainda não entendeu que até reclamar da comida do refeitório é motivo de perseguição.

— O que eles querem é nos ver fora do campeonato, qualquer besteira é motivo para essa perseguição — replicou inconformada. — Cismaram comigo, você sabe disso. E eles tiram de jogo qualquer um que não os valha preocupação.

— Eu sei bem — Yakov suspirou. De repente, todos se lembraram da principal circunstância que colocou Feltsman em uma situação tão infeliz nos jogos do ano anterior; o governo não gostava dele. — Eles mentem e nos manipulam o tempo todo. Seria tão errado assim fazermos o mesmo com eles?

Eles o observaram divagar, distraído com a colher que riscava o fundo do prato vazio. Não tinha ninguém em volta, mas não custava nada olhar com mais cautela antes de finalmente tocarem no assunto.

— Yasha… — foi Irina quem começou. Era um combinado subentendido, o de que a amiga de infância — uma não tão longínqua assim, mas que depois de tantos altos e baixos, parecia vir de décadas — tomaria dianteira sempre que conversar com Yakov se fizesse necessário. — Como foi que aconteceu…?

Não foi preciso falar o nome de Margosha para todos saberem que o assunto era ela. O próprio Yakov havia dado a deixa. Era agora ou nunca.

— Foi em dezembro, bem no dia vinte e cinco — contou, sem encará-los. — Estava voltando do rinque, a cidade mergulhada em branco. Acho que eu nunca passei tanto frio, eu não tinha nem roupa para aquele dia. — Eles sabiam para onde a história estava indo e não gostavam nem de imaginar. — E ela estava lá, dentro de uma caixa, na frente do prédio. E era tão, tão pequena… Eu nem acreditei.

— Como pode existir tanta gente ruim assim? — Efimiya estava inconformada, remexendo-se desconfortável. Saber que aquele bebê rechonchudo e curioso já foi deixado à própria sorte a provocava a chorar.

— Todo mundo da comuna ajudou como pôde, Margosha já estava tão fraquinha por ter ficado exposta ao frio… — Olhando para ela, Yakov tocou a mãozinha pequena. Margosha sorriu. — Quando eu penso que se eu não tivesse saído para trabalhar naquele dia, ou se tivesse chegado mais tarde, ela poderia…

Ninguém quis imaginar.

— Então ela não era recém-nascida — Dimitri pensou alto. Para sobreviver daquele jeito ao frio, um bebê muito novinho não aguentaria.

— Temos uma vizinha que é enfermeira. Ela estima que Margosha pode ter de um ou dois meses a mais do que colocamos na certidão de nascimento--

— Não descobriu quem são os responsáveis? — Anatoly perguntou, atravessando Yakov, já sabendo o que esperar da resposta.

— Eu nem procurei. — A resposta era cheia de vergonha. — Quando me perguntaram se eu iria acionar as autoridades, eu só conseguia dizer que ficaria com ela. Ninguém tentou me convencer do contrário, mas duvido que tivesse aceitado qualquer sugestão que não fosse ficar com ela.

— Não é como se desse pra dizer que alguém que coloca um bebê na neve está interessado em reaver ele — murmurou Batalov, incomodado com a história. Sabia que as relações humanas eram complicadas, ele via isso nas famílias disfuncionais de sua vizinhança, muitas formadas por fragmentos de outras famílias, a maioria apenas de olho na contribuição monetária que o governo oferecia para quem tirasse mais crianças da rua, como se tudo não passasse de uma competição. Era horrível pensar que crianças eram parte do trajeto.

— Quando diz “colocamos na certidão de nascimento”...? — Irina prendeu a respiração. Eles estavam para descobrir algo grave, sabia disso.

— Que ela fraudou uma guia médica para mim — confessou, incapaz de encarar nenhum deles.

Eles mentem e nos manipulam o tempo todo. Seria tão errado assim fazermos o mesmo com eles?

— Eu poderia ter entrado com o pedido de adoção, não é tão difícil, mas eu fiquei com medo que eles não me dessem a guarda… — Tentou se explicar, temendo encará-los e ver ali a reprovação de uma vida. — Vocês sabem como eles não gostavam de mim, fizeram tudo que podiam para me humilhar depois que fiquei incapaz de patinar. — O que era culpa deles, valia lembrar. — Poderiam falar da minha idade, alegar que eu não teria meios financeiros de criá-la, me negar algum auxílio, e meu tio-avô! Nós fomos para Leningrado praticamente fugidos de Moscou pelas agitações causadas por ele. As razões poderiam ser várias e eu… — Yakov apoiou a testa em uma das mãos, olhos fechados que tentavam afastar para longe os pesadelos, mas só conseguiam trazê-los cada vez mais vívidos. — Eu sonhava com eles a levando para longe, para algum orfanato que eu não conhecia. E então eu nunca mais a veria, nunca mais…

Uma mão tocou seu braço com leveza; era Margosha. Espiando o pai com curiosidade, ela tentava entender porque ele trazia seu rosto, sempre tão alto e orgulhoso, agora escondido e cabisbaixo. Estaria com sono? Ela fazia isso quando estava com sono.

O impulso de Yakov foi o de pegar a filha, que logo se abraçou ao pescoço do pai, repousando o rostinho em seu ombro. Ela adorava receber atenção de outros adultos, mas aquele sempre seria seu colo preferido.

— E qual história contou? — pediu Efimiya, voz baixa e olhar concentrado.

Yakov os encarou confuso, a guarda alta não o deixando entender o que ela queria dizer e o que mais eles esperavam.

— O quê?

— A história que contou para as pessoas, sobre Margosha.

— Pra caso um dia a KGB bater na nossa porta perguntando, sabermos o que responder. — Lev parecia até fazer piada da situação. Yakov ainda não havia entendido.

— Dimitri aqui já está até acostumado — brincou Anatoly, batidas fortes no ombro do amigo que só conseguiu exasperar uma risada nervosa.

Yakov olhou para cada um deles, meio confuso, meio incrédulo e totalmente perdido.

— Não importa qual for a história, Yakov. — Irina, sempre ela, tomou a direção. — Nós sempre iremos sustentá-la.

Ele piscou algumas vezes, talvez para acordar, talvez para afastar as lágrimas teimando em aparecer. Era isso mesmo? Eles tinham aceitado sua decisão torta e totalmente ilegal sem nenhum julgamento ou...

— Não acham mesmo que eu a mantive como prêmio de consolação?

Seus olhos se arregalaram de espanto, seus rostos o reflexo da incredulidade.

— Claro que não! Que horror, Yakov, alguém já te disse isso?

— Não, não de fato… — suspirou, apertando a filha que começara a pesar; ela estava facilmente entregando-se ao sono mais uma vez. — São coisas que eu penso que poderiam dizer…

— Pare com isso… — Irina pediu, se aproximando, tal como todos os outros. — Pare de se torturar alimentando esses pensamentos. Não tem nem sentido uma acusação dessas. Quem tem um filho para substituir uma medalha?

Ela tinha razão. Na maioria das vezes ela tinha.

— Eu não sei, eles podem falar qualquer coisa…

— Mas eles não precisam saber de nada — garantiu Nabiyev. — Isso não sai daqui.

— Você confiou em um bando de vizinhos, Yakov, não vai confiar na gente?

Ele riu para as palavras indignadas de Ganshin e foi assim que eles souberam que ele estava melhor. Menos mal. Tinham uma semana pela frente para convencê-lo de uma vez por todas.

E eles conseguiriam, tinham certeza. Não existia nada que não pudessem fazer quando estavam todos juntos. Ficaria tudo bem.


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Notas finais do capítulo

Se você é meu leitor de YoI, sabe que eu sempre preciso colocar uma lista de curiosidades ao fim das notas xD Aqui não será diferente, hehe xD Vem conhecer melhor essa zorra toda!

— A piadoca sobre Dimitri não ter o costume de ver sacos de batatas por aí, vem da época da URSS onde as pessoas não podiam adquirir grandes quantidades de produtos, pois era tudo contado para que todos tivessem acesso igual aos insumos. Na teoria, pelo menos, deveria ser assim :v
— No universo de Carabosse, minha outra fanfic, Yakov teria se aposentado muito jovem, após sua participação nas Olimpíadas de Inverno de 64, dado uma lesão. Essa lesão foi negligenciada pela própria equipe, o que custou sua carreira :'c
— A razão por Yakov não ser muito bem quisto pela equipe, é porque ele, no meu headcanon, é filho de mãe alemã, e a gente sabe que depois da segunda guerra a Rússia engoliu metade do país até 89, né? Rixas de guerra :X
— O tio-avô de Yakov, Alfonse, é um padre católico, tio de sua mãe. Como o estado soviético era laico e a fé predominante é a Ortodoxa Russa, ele teve alguns problemas com missas clandestinas :v
— Yakov hesita em afirmar que a filha tem oito meses porque, na realidade, ela deve ter em torno de nove ou dez.
— Lidia Skoblikova é a maior recordista na patinação de velocidade, colecionando seis medalhas de ouro ao longo de três Olimpíadas (60, 64 e 68). Aposto que Yakov já a viu :v
— Curiosidade: Gosha, além de apelido de Margosha, é também apelido de Georgi. SIM, a personagem é mãe de Georgi Popovich, o que faz de Yakov seu avô :3
— Outra curiosidade, dessa vez sobre papéis higiênicos: ERAM CARÍSSIMOS!! E até meados dos anos 70, não tinha uma fábrica soviética que os fizesse. O papel era de qualidade inferior e os rolos eram limitados por pessoa/família.
— O Volga preto era o veículo utilizado pelo serviço secreto soviético. Dizem que só de perambular por aí a população já ficava apreensiva, pois eram conhecidos por darem um sumiço em qualquer pessoa que se posicionasse contra o regime da União. Claro que existiam falsas denúncias sobre traidores da pátria e nossa Efimiya aqui foi quase vítima de uma delas :X
— Adoções não eram muito difíceis naquele tempo, mais como uma guarda facilitada. Mas é claro que para Yakov seria mais difícil, por isso ele mentiu :'D Mesmo na melhor das intenções, crime é crime né, gente? Não falsifiquem nada nem de brincadeira, pelo amor de Deus, isso é ficção apenas e eu não compactuo com meios ilegais ò^ó

E é isso! ♥ Espero vocês nos próximos capítulos ;)

À aniversariante, novamente, meus desejos de felicidades, anos de vida cheios de saúde, amor, apoio e boas surpresas, que é tudo o que você merece! Te amo muitão, Mileh! ♥



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