Dê-me a sua mão escrita por Mary


Capítulo 7
7. Bárbara




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 – Ô Lety, liga essa câmera...

— Não tô afim...

— Eu vejo você com cara de sono sempre, qual é?

— Chorei tanto que estou um bagaço, guria. Os olhos estão ardendo, a cabeça latejando. Estou o bagaço da laranja. Parece que misturou tudo: essa quarentena, esse disparo de casos por aqui, TPM, cólica e mais essa dos embustes.

— Porque eu corri te ligar, já que você disse que faria uma live hoje e tratando-se de você, Lety, imaginei que você faria uma live cortando o cabelo, revoltada nível Lulu.

Ela não me respondeu e eu fui mais incisiva.

— Você não fez merda com o seu cabelo, fez?

— Não, mas foi por um triz...

— Ah amor, você acredita que esses embustes estão importunando até a minha mãe?

— ATÉ A SUA MÃE?

— O safado desavergonhado não disse nem um "oi, tudo bem" ou "oi linda", mandou a foto do pau e estava querendo fazer videochamada.

— Para a sua mãe?

— Para mim, a minha mãe e para a Wal.

Waléria é minha prima e ela é três anos mais velha que eu. Até boa parte de nossas vidas fomos muito próximas, porém ela se casou e depois foi morar do outro lado do Brasil, portanto as redes sociais são nosso único meio de contato.

— Coitada da Wal, isso lá é coisa que se faça?

Fico imaginando a Tia Porfíria revoltada. Não são erros de português propositais para irritar nossa querida crítica, minha tia tem problemas para articular algumas letras, faz uma troca danada, mas é entendida quando não tromba com imbecis.

(áudio da Tia Porfíria) Esses safatos não têm nada pra facer. Perfertitos canalhas, fou excluir do peu Facepook. Faléria, pinha filha, que horror! Pando de dessocupatos. Cassatos, e facento isso com a pulher dos outros, que pouca ferconha!

Imagina que disparate, a Tia Porfíria ama o Tio Valdecir (ou Faltecir) desde criança, nunca que se apaixonaria ou daria conversa para um sujeito que mandou um nude. Wal é fruto de um amor e personagem da minha infância feliz.

— Ela não gostava dos governos de esquerda, mas nem por isso a gente parou de se falar. Ela votou no presidente, mas não pensa como ele e já viu que foi pura ilusão acreditar que ele resolveria todos os problemas do Brasil... poxa, a Wal é casada, o cara falou pra ela que não tinha problema em se envolver com mulher casada, que gostava... até a Tia Porfíria recebeu um nude indesejado...

— Que nojo! Para se ver até onde vai o atrevimento desses caras!

— Imagino que trauma deve ter sido ver... — aticei.

— Ah Babs, não me lembre disso senão eu desfaço nosso noivado... — bronqueou Letícia. E ela estava tão magoada pelo que escreveu nos stories do Instagram que eu imaginei que ela tosaria os cabelos em tempo real para quem quisesse ver. Depois, bateria o arrependimento.

— Então é sério mesmo que você nunca teve nada com caras?

— Outra Letícia Vaz sim, mas essa aqui, não. Não e nem.

— Eu nunca me canso de dizer que você é corajosa e eu te admiro demais, amor.

— É, você vê a cachaça que eu bebo, mas não os tombos que eu levo, Babs. Vai sonhando que sair do armário foi só maravilha, Lady Gaga tocando bem alto e eu me sentindo a diva das caminhoneiras, a rainha das fanchas, montando meu harém, tendo até uma série de temporadas na RPN sobre a minha vida... se não fosse a Lana, eu teria me suicidado antes dos 15.

Lana é a madrasta (ou boadrasta). Não quero dar spoilers sobre a história da minha amada, mas o nascimento dela foi bem complicado porque a mãe biológica já tinha outros dez filhos e não tendo condições de criar a mais nova, deu-a para um casal, que nesse caso seria o Odair Vaz e a primeira esposa.

Odair contou à Letícia sobre as origens dela e nunca mais se falou no assunto. Ele é o pai e ponto.

Odair e a esposa se divorciaram, porém ela não fez questão de lutar pela guarda de Letícia. Lana viria a ser a figura materna forte e influente. O casamento deu certo por tempo suficiente e acabou, entretanto, a amizade entre os membros da família não arrefeceu.

Um indício de que o OTP da vida de Lety possa ter reatado o relacionamento é Lana passar a quarentena com Odair. Ela está cortando o cabelo dele, os dois aparecem juntos nas videochamadas, quem diria? Enquanto tem gente esperando a pandemia passar para pedir o divórcio, eles vão na contramão, só love...

O que podemos adiantar é que Lana salvou a vida de Lety e sambou na cara desses moralistas que adoram postar versículo da bíblia na internet como se Papai do Céu tivesse uma conta no Facebook e fosse reagir com um "uau" a cada compartilhamento religioso, mas será que Jesus não colocaria um "triste" quando visse postagens homofóbicas, vídeos violentos, estupros, assédio, pedofilia, zoofilia, tantas abominações?

Já não basta a laia de energúmenos que se apropriou do verde-e-amarelo (acreditem, eles estão zicando a seleção) como se quem não é de extrema-direita é comunista por discordar. Esse pessoal aí gazeou muita aula de História e, se duvidar, acreditam que a ida do homem à lua foi uma montagem daquelas de deixarem os produtores do Chaves com inveja. Pioneiros. Nem a Marvel faria melhor. Vai por mim.

Porque passar dos limites comigo é uma coisa, mexer com a minha mãe é outra. Podemos ter nossas divergências porque ela ainda acredita piamente que "é só uma fase", que me traumatizei com os embustes cujos detalhes vocês saberão conforme eu for contando a história, entretanto, agora que a própria verdade se mostrou, quem sabe eu não precise mais me desgastar tanto.

Estranho tudo isso acontecer logo no Dia do Orgulho LGBTI.

Ou esses caras desconfiam e perseguem de propósito ou são convencidos e imbecis mesmo. Não sei. Sinceramente, quem inventou esse tal de orgulho hétero deve ser algum enrustido porque a coisa deve estar muito feia, a masculinidade é tão frágil quanto meu humor na TPM. Babs e as teorias da conspiração.

— Você sabe que meu pai é bicho do mato, não gosta de internet, não quer ter rede social e só tira foto em data comemorativa porque a gente implora, mas minha mãe é casada. Se não poupam nem uma senhora casada, imagina quem é adolescente...

— E é capaz de muitas dessas meninas que vivem o que você viveu acharem que é normal um velho pervertido mostrar a foto do pau dele, que curtidas definem o valor de uma pessoa e caírem na teia de embustes.

— Sem falar que muitos se apresentam como os cavalheiros, nem a bunda limpam... não lembra do post de um cara que tinha um orgulho tremendo de ser hétero e dizia não limpar a bunda porque era coisa de boiola?

— Aposto que se paga de machão, hétero top, tira selfie no carro ouvindo sertanejo universitário, defende o presidente e adora tretar com feminista no Facebook, mas de noite pega o carrinho e sai com travesti. Esses são os maiores caga regra em cima do corpo de mulher. Tem que ser assim, tem que ser assado. Eles dizem gostar tanto de mulher, mas não gostam de fazer um oral bem feito porque um oral bem feito vale mais que um papai e mamãe meia boca, se bem que nunca fiz e nem quero fazer. Sério, essa gente não é normal. É uma implicância doente. Por isso os meus pais não dormiam quando eu saía com os meus amigos, enquanto eu não mandava uma mensagem dizendo que estava chegando, eles não pregavam os olhos, isso quando não iam me buscar na balada e convidavam meus amigos para dormirem lá em casa.

— Seria perfeito viver num mundo onde cada um ama a quem quiser, vive a sua vida sem perseguir os outros e respeita a singularidade de cada um, mas enquanto esse mundo perfeito não existe, a gente é obrigada a temer, pois eu frequentei balada na época em que tentei ser hétero e quando não me preteriam totalmente, me passavam a mão na bunda como se eu fosse maçaneta de porta, era foda ter que mentir que algum rapaz era meu namorado pra não vir tarado algum querer me passar conversa. Se você diz não, eles não aceitam, mas... pedem desculpas para o seu namorado. 

— Esses escrotos que mandam foto da genitália no chat são como aqueles imbecis que buzinam para dizer que você é gostosa. Aff, eles acham mesmo que uma moça vai dizer: "gostei da sua mamadeira, vamos namorar?" ou "fiquei apaixonada pelo jeito que você buzina, casa comigo?". Pelamor, né?

Apesar de tentarmos rir, só Deus sabe o tamanho da dor. Pode não ser tão brutal quanto um estupro, mas não deixa de ser assédio, importunação, uma cerceação grave ao direito de uma mulher ser livre para ir e vir, postar o que quiser e reitero minha observação porque independe da orientação sexual. 

Inseri a Wal no contexto para contar sobre a minha família. Meu pai era filho único, meu avô morreu quando ele era criança e apesar de minha avó ter partido quando eu já estava com seis anos de idade, não me recordo dela senão pelo fato de ainda guardar um ursinho de pelúcia que ela me deu numa ocasião qualquer. 

Já minha mãe teve uma irmã, a Porfíria, que se casou com Valdecir, tendo dois filhos: o Val Júnior e a Waléria.

Minha prima herdou da mãe a dificuldade para se articular, porém melhorou bastante depois de frequentar a fonoaudióloga e hoje em dia é mais raro que se embanane tanto com as palavras, mas quando éramos crianças, eu não entendia por que ela estava na mesma série que eu se tinha a idade do meu irmão.

Éramos boas amigas, brincávamos juntas, conversávamos bastante, eu gostava muito das férias de verão porque sempre passava uma semana na casa dela e depois ela vinha pousar em nossa residência. Bons tempos aqueles de criançada correndo, jogando bola, vidrada no videogame.

Eu herdava algumas roupas da minha prima mais velha e minha mãe ajustava na máquina de costura porque Waléria era alta, tinha a ossatura larga e eu era miúda.

Tia Porfíria sempre ganhou o dela com trabalhos manuais, sua especialidade é o tear, já o Tio Valdecir era mecânico. Na verdade, continuam sendo. O Val Júnior seguiu os passos do pai e a Waléria se casou.

De todos nós, a Wal surpreendeu por ter se casado tão jovem. Ainda assim, terminou a escola, se graduou depois dos 30 e hoje em dia ganha a vida com festas infantis, prepara toda a decoração temática, o bolo, os docinhos, tudo. Ela tem uma conta no Instagram, onde expõe seu portfólio e, acreditem, em tempos de quarentena, minha prima não para de trabalhar.

O distanciamento social pode impedir abraços e reencontros (digo isso daqueles que mesmo entristecidos com as limitações impostas pela pandemia, têm senso de coletividade e compreendem que o isolamento neste momento é a maior declaração de amor que se pode dar, afinal de contas, haverá o tempo em que poderemos nos abraçar novamente), porém jamais o espírito festivo. A festa rola, os convidados participam por videochamada e os presentes chegam pelo correio.

Às vezes eu escuto uma música e me bate forte no peito o sentimento de nostalgia, primeiro um nó na garganta sobe, eu me recordo que nunca mais terei aqueles anos de volta, depois a memória de algum momento divertido me faz rir por entre as lágrimas.

Wal e eu caímos na mesma sala na quinta série e éramos inseparáveis. Nunca me esquecerei da Tia Porfíria chorando de emoção no primeiro dia de aula porque a filha estava indo para o ginásio. Foi uma época de bastante diversão, aprendizado, minha autoestima estava nas alturas porque eu não andava, desfilava, as merdas que Larissa me fez se esfumaçaram totalmente, era como se eu nunca tivesse passado por nada daquilo. 

As únicas velhas conhecidas a estudarem lá eram a Ana e a Karla. A Ana reprovou a quarta série, as duas caíram na mesma sala e quando eu estava na sétima série, eram fortes os babados de que as duas namoravam e não era fofoca de corredor.

De novo, Ana ficou na rua da amargura, Karla saiu do colégio sem mais nem menos e pelo que fiquei sabendo, as duas estavam proibidas de manterem contato, por isso procurei-as nas redes sociais recentemente. A Ana privou tudo, não tem como saber se ela é ou não passava de maldade do pessoal. A Karla mora junto com um rapaz. Seja como for, elas não mantêm mais contato.

No colégio novo eu era prima da Wal, conhecia todo mundo de vista porque a maioria morava bem perto da minha casa e eu também fiz muita amizade porque o que tinha de menina que não suportava a Larissa não estava escrito. Ela era popular e amada lá naquela escola sucateada pelas comadres que queriam se perpetuar na Associação de Pais e Mestres, mas não promoviam nenhum projeto de integração para a comunidade.

Anos bons assim passam num piscar de olhos e aí a vida prega uma cilada. Minha mãe recebeu uma proposta de emprego melhor e eu precisei mudar de bairro. Odiei deixar o lugar onde passei os melhores anos da minha vida para morar num apartamento onde mal podia se pregar algo na parede que já vinha a síndica encher a paciência. Transferir-me de escola, recomeçar tudo como novata num lugar onde as panelinhas já estavam formadas, isso sem falar no transtorno que foi.

Estrutura decadente, violência comendo solta nas imediações, descaso total do governo porque não me limito aos problemas estruturais, a exemplo de calçadas quebradas, lâmpadas estragadas, fiação exposta, caixa de água contaminada. As meninas mais velhas já se drogavam e falavam de sexo com uma devoção ímpar, não tinham o menor respeito pelos professores, os meninos tampouco, isso quando tínhamos aulas e algum docente representando a disciplina. No meio da desgraça, um alento e também um susto: apaixonei-me pela primeira vez. Por uma mulher. 

Para eu gostar de matemática e tentar me entender com os números, só estando apaixonada pela professora, o que aconteceu, mesmo ela sendo mais velha. Não que eu tivesse esperanças de nada, apenas sentia algo que não sabia nem explicar e hoje compreendo que era paixonite. Das boas. Teresa era a única que conseguia disciplinar aquela turma e impor respeito.

Depois eu me apaixonaria por outras docentes, no silêncio platônico de uma garota nas minhas condições. Eu tinha crush pela Helena Rebouças, do Tempo na TV, uma boa desculpa para assistir um canal de previsão do tempo. Pelas minhas vizinhas mais velhas, que dirá a Michelle, eu gostava de tentar sair para ir à aula quase na mesma hora que ela só para ter a desculpa de cumprimentar. E estava tudo bem, tudo certo...

Nessa época eu não me considerava lésbica, apenas tinha um ranço profundo da pressão que era feita para se começar a ficar. Porque ninguém te perguntava se você queria beijar de língua. Era imposto goela abaixo e ponto.

Mesmo com a mudança de bairro, Waléria e eu não perdemos o contato, porém eu já me senti desconfortável quando minha prima começou a contar sobre os meninos que a atraíam, até sobre os caras bonitos na televisão e eu engolia em seco, assentindo, muitas vezes me perguntando se eu era normal, se estava tudo certo comigo, pois convivia com garotos e não enxergava nada de excepcional em nenhum, via esses galãs de novela sem camisa e não esboçava uma reação que fosse.

Waléria encontrou um namorado e em razão disso passava mais tempo com ele do que comigo. Um tempo depois, a Tia Porfíria foi nos visitar, entregando os convites do... casamento da Wal.

Wal tinha só 16 anos!

— Parece que foi ontem quanto a Fal princafa de poneca com a Párpara, né? Tão ponitinhas as tuas princanto, que sautate tessa época... passou tão rápito... a Fal xá fai cassar... — suspirou a Tia Porfíria e minha mãe disse-me mais tarde que minha prima se casou porque perdeu a virgindade com o namorado. Para o azar do casal, logo na primeira vez, eles foram flagrados e o Tio Val ficou muito chateado, julgava a filha jovem demais para dar esse passo tão grande em um relacionamento, decretando que se o rapaz tinha boas intenções, que a desposasse. E assim foi.

Waléria e o marido eram jovens demais para aquela imensa responsabilidade, entretanto, minha prima não foi mãe logo de cara, como seria de se esperar de um casamento organizado às pressas. Eles moravam num terreno que o Tio Val construiu. Os rebentos vieram depois, ela terminou a escola antes.

Com treze anos eu não pensava em me casar, longe disso, nem beijo queria experimentar, contudo, a angústia que comecei a sentir nessa época foi muito grande porque eu sabia que era diferente das outras e nesse caso não melhor ou pior, eu só não era igual a elas. Eu sempre fui aquela que ao assistir Meu Primeiro Amor, olhava para a Vada, nunca para o Thomas. Numa novela, sempre acabava prestando atenção em alguma personagem, nunca no galã badalado ou nos meninos do elenco infanto-juvenil.

No meu imaginário eu achava que mulher que gostava de mulher era que nem a Ana e eu não queria ser ela, não mesmo, não me agradava ser chacota das pessoas, passar por humilhações, ser excluída de tudo, levada para a igreja sob a acusação de estar possuída pelo demônio.

Eu não queria ser mal vista ou lembrada apenas como "a sapatona da escola", "aquela esquisita", ouvir coisas do tipo: "não fala com ela porque ela gosta de mulher", "o negócio dela é outro", "ela tem um jeitinho esquisito, né não?". Porque eu reproduzia diante do espelho o preconceito que vi as pessoas terem pela minha antiga coleguinha.

Doía. Eu não queria ser obrigada a nada. Eu já via as meninas da 6ª série superando namoros que deram errado, contando histórias de amor que me fariam pensar que elas fossem mais velhas, todas apaixonadinhas por algum ator ou cantor do momento e no lugar de dizer a mim mesma que estava tudo bem eu não gostar, me culpava por tudo, num primeiro instante em silêncio, ressentindo-me sem deixar vestígios.

Que os meninos passavam indiferentes no meu mundo, ninguém poderia saber. Se soubessem, eu seria linchada moralmente como a Ana.

Por isso, quando passei no teste para estudar num novo colégio no ensino médio, meu maior objetivo era encontrar a metade da minha laranja. E tinha de ser um garoto. 

Sem saber, eu estava prestes a cometer um dos piores erros da minha vida.

 

— Babs


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