Do meu coração de cacto nasce flor de cerejeira escrita por GTavares


Capítulo 2
CHICO | Selva de Pedra




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Acordei já com as malas prontas para viajar para São Paulo, meus pais diziam que os cursos preparatórios para vestibular eram melhores no estado visto o número de aprovados, entretanto, sempre achei que isto tinha mais a ver com a qualidade das escolas e com a quantidade de gente matriculado em escolas particulares a qualidade efetiva dos tais cursinhos.

Levantei e pude sentir o cheiro do Rio São Francisco passando próximo de casa e, quase no mesmo instante, meus olhos marejaram da saudade que eu já estava sentindo de mainha e painho. Cresci ouvindo que a tal da saudade é o amor que fica e, aparentemente, eu tinha muito amor no coração pela minha família.

Viver no interior da Bahia não foi tão difícil como muitos imaginam, apesar de minha cidade ficar a pouco mais de 400 km da capital Salvador. Aqui até novela já foi gravada. Crescer brincando no Rio São Francisco foi é muito massa. Vou sentir saudade da minha cidade. Até meu nome eu ganhei por causa do rio não fosse maior homenagem. Minha terrinha está no sangue que eu carrego e no orgulho de ter sido feliz aqui.

Desço para a cozinha e mainha está preparando o café do jeito que eu gosto, nunca vi nessa Terra tanta coisa para comer quanto hoje.

— Oxe mainha! mas para que tudo isso de comida? Eu não vou morrer de fome em São Paulo não – disse rindo enquanto colocava o café no copo, mas percebi que mainha estava com o olho todo cheio d’água, tem vezes que a saudade transborda mesmo – Fique assim não, eu vou ficar menos de um ano lá e volto nas férias. Além disso, a senhora sabe que meu objetivo é fazer faculdade por aqui.

— Eu sei, meu filho! É que a mãe vai ficar com saudade. Com quem eu vou gritar de madrugada para desligar o computador e ir dormir? – e um rio de lágrima começou jorrar enquanto mainha tentava limpá-las com o avental – É difícil para mãe ver que o bichinho dela está crescendo.

— Eu sei, eu sei, mas eu sempre continuarei sendo o mesmo, jamais deixarei de ser o seu Chico, seu bichinho – disse com um leve aperto no peito. Naquele momento eu fiquei numa mistura de ansiedade (com uma nova vida) e saudade (de mainha que não iria comigo). Dei um abraço de urso para que ela pudesse sentir todo meu amor.

O sonho de meu pai era que eu me formasse em direito para que eu pudesse ter uma vida mais estável que a deles, apesar de que meu pai trabalhava na Hidrelétrica e sempre tivemos certo conforto. Quando meu pai faleceu há quatro anos de um ataque súbito nosso mundo mudou. Eu era filho único – continuo sendo – e a perda de meu pai fez abrir um buraco dentro de mim, as vezes parecia que estava tudo vazio como se minha vida fosse cheia de amor e de esperança e, de repente, metade dela foi tirada sem anestesia. Sempre vai haver essa parte que falta, não importa o tempo, não importa o lugar, eu não sou preparado para lidar com as perdas de pessoas que eu amo e, talvez eu nem queira estar preparado para isso. Acho que isso tem a ver com estar vivo.

Apesar de “ataque súbito” ser um termo que eu não concorde muito, porque meu pai sempre queixava-se de dores próximas ao peito, era sedentário e adorava um churrasco e uma cervejinha, não estar com ele nesse momento que ele tanto queria que acontecesse era um pouco mais difícil do que eu imaginaria que fosse. Eu não sabia como minha mãe ia ficar sozinha, apesar de sentir que ir para São Paulo seria o melhor caminho a seguir.

— Seu pai sentiria muito orgulho de você Chico – olhou minha mãe ainda com lágrimas nos olhos – eu estou muito orgulhosa do homem que você está se tornando.

Mesmo meus pais tendo “planejado” um futuro para mim, eu nunca fui pressionado de forma direta a fazer o que eles quisessem que eu fizesse de curso. Na verdade, eu sempre fui muito bom em humanas e tinha bons argumentos que já me livraram de algumas enrascadas na escola. “Bom diretora, o fato de ter jogado a cola no olho dele não foi intencional – tinha sido, sim – acontece que ele estava tirando onda de minha cara e eu quis fazer com que o ataque psicológico que eu estava sofrendo se tornasse dor física nele”. Com certeza ela deveria pensar “meu Deus, o que esse garoto está falando”, mas, apesar disso, eu sempre me saia ileso, talvez por eu ser bom aluno e não um bom argumentador.

Olhei para o relógio e já estava na hora de ir ao aeroporto, respirei fundo e fui buscar minha mala. Entrando no carro pensei “uma nova vida, vai dar tudo certo” no que mainha segurou minha mão e disse “vai dar tudo certo”. Entretanto, ali naquele momento, eu estava mais preocupado em chegar até São Paulo vivo a ficar pensando o que o futuro a longo prazo me reserva.

Eu nunca tinha andado de avião, vamos começar por aí e, sim, eu sei que a chance de partir dessa para uma melhor num acidente aéreo são pequenas, acho que li em algum lugar que são 1 em 11 milhões. Mas e se Deus, injuriado com o Brasil, olhar para aquela pequena aeronave que nem cheia vai estar e pensar “Bom, hoje estou a fim de derrubar um avião no Brasil” e, por infeliz coincidência, eu estivesse lá dentro e nem chegasse a conhecer São Paulo. Talvez eu devesse ter medo de morrer picado por uma aranha? Sim, já que ocorrem 1 morte assim em 500 mil. Mas não teriam aranhas no avião, talvez cobras como naquele filme famoso.

Despedi da minha mãe chorando e, quando digo chorando, quero dizer que nós dois estávamos assim. Entro para o embarque – não sei nem como me comportar dentro de um aeroporto – e fico com medo de perder o voo por algum motivo, como ser desatento demais. Vejo que estão chamando para entrar na aeronave.

— Este é o embarque para São Paulo? – perguntei ao funcionário incrivelmente novo que estava no portão de embarque, ou essas pessoas estão demorando a envelhecer ou as empresas estão explorando menores porque eu passava tranquilamente por alguém de 20 anos.

— Boa tarde, senhor. É sim, aguarde na fila que o ônibus já vem buscar o senhor – disse com um sorriso malicioso no rosto.

— Não moço, mas eu não vou de ônibus, vou de avião – respondi meio confuso porque eu não sabia que o aeroporto também funcionava como rodoviária.

— Isso mesmo senhor, mas o ônibus levará o senhor até a aeronave – respondeu dessa vez rindo do mico que eu tinha acabado de pagar.

Eu esperava mais da viagem, sendo bem sincero, a decolagem foi muito tranquila e, lá em cima, parecia que eu estava numa estrada sem buracos num carro desconfortável porque, com 1.85 m de altura que eu tenho, sentar no corredor seria mais vantajoso para as minhas pernas. Outra coisa que eu acho que poderia ser repensado é o serviço de bordo nos filmes, porque eu imaginei que iria consumir uma refeição com direito a champanhe (se eu tivesse mais de 18 anos) mas, na real, ganhei dois pacotinhos de bolacha e um suco porque não gosto de refrigerante. Depois disso, fez todo sentido o café que minha mãe preparou.

Aterrizamos em Guarulhos, por volta das 15h e eu estava com os joelhos doloridos precisando esticá-los. Achei engraçado o fato das pessoas se levantarem rapidamente para ficar aguardando a mala naquelas esteiras. Falo isso porque as minhas malas foram as primeiras a aparecerem após aquela cortininha e eu fui um dos últimos a levantar pois não vejo sentido no tumulto.

Saindo do desembarque vejo um senhor baixinho e magro com um óculos grande de acrílico preto acenando para mim com uma folha escrita CHICO, com certeza era o amigo de mainha. Eles estudaram juntos durante a graduação, mesmo minha mãe tendo que trancar porque tinha engravidado de mim e não conseguiria me manter sem um trabalho fixo que pagasse minimamente bem comparado as bolsas acadêmicas daquela época. Além disso, de imediato, meus avós ficaram totalmente indignados pelo fato de mainha ter engravidado durante a faculdade, visto que eles que a mantinham lá. “se tem idade para engravidar, tem idade para cuidar da criança” lembro de mainha dizendo isso imitando a voz de meu avô.

O fato dela ter abandonado a faculdade e voltado para a Bahia nunca foi um tabu dentro de casa. Ela sempre me dizia que eu era um presente para ela e que todas as dificuldades que ela tinha passado, serviram para ela se tornar a mulher de quem ela se orgulha ser hoje. E eu tenho muito orgulho de mainha também, nunca vi alguém mais guerreira que ela.

— Senhor Masanori? – perguntei mesmo sendo óbvio que era o senhora Masanori com aquela placa escrita Chico bem no horário que eu iria desembarcar.

— Oi Chico, vem cá me dar um abraço – ele praticamente me abraçando pela cintura – rapaz como você cresceu, a última vez que eu te vi deveria ter uns três anos de idade – num esforço grande em bater com a mão no meu ombro.

— Olha, vou confessar para o senhor que eu não estou me lembrando mas eu acredito em cada palavra que diz – respondi num tom amigável porque, apesar de ter registros fotográficos daquela época, não me recordava mesmo dele.

— Primeiro, deixa de me chamar de senhor e comece a me chamar de você, eu não sou tão mais velho assim – e realmente não era, o senhora Masanori deveria ser uns cinco anos mais velho que minha mãe só – Então vamos que Keiko daqui a pouco está em casa.

Eu sabia que o Senhor Masanori tinha um filho pouco mais novo que eu e estava ansioso em conhecê-lo porque na minha cidade eu não tinha muitos amigos homens, a maioria eram as meninas que eu estudei desde o Jardim de Infância e que eram praticamente minhas irmãs.

Mandei mensagem para mainha dizendo que cheguei e que já estava morrendo de saudade enquanto entrava no carro do senhor Masanori que parecia um transformer de tão grande. Durante o caminho ele foi me mostrando algumas coisas e me explicando outras, reclamando dos prefeitos e governadores, do presidente. É engraçado como as pessoas reclamam de política, mas na maioria das vezes, elas só se importam com os nossos representantes depois que eles estão no poder. São poucos que pensam e estudam as propostas dos candidatos.

São Paulo não é nada demais, pelo contrário, é triste de ver um riozão como aquele Tietê todo poluído em meio a uma Selva de Pedras, fiquei até com um medo de um dia aquilo acontecer ao meu amado São Francisco onde eu brinquei tanto quando era mais criança. Chamar essa cidade de Selva de Pedra é outro absurdo, numa selva você tem várias espécies de animais convivendo de forma equilibrada, ar puro, diversidade de plantas. Aqui, na cidade, é um grande aglomerado de pedras com a mesma espécie que destruiu tudo em nome da industrialização e globalização. Eu fico pensando as vezes como seria o Brasil se não tivéssemos sido colonizados por europeus fedidos.

Apesar do transformer do senhor Masanori, o prédio em que eles moravam não me surpreendeu tanto, minha casinha era muito mais bonita com pé de laranja no quintal, mangueira para banhar e o rio correndo perto mostrando que tudo é um ciclo e que o tempo não passa igual no mesmo lugar.

Entramos no apartamento, cumprimentei a senhora Masanori que conseguia ser ainda menor que seu marido, mas de uma simpatia tremenda. Ela me mostrou o quarto que eu iria ficar. Era espaçoso com uma cama de viúva – ao que ela dizia complementando que não sabia que eu era tão alto – tinha uma grande escrivaninha, uma parede com papel de parede em listras verticais em tons de cinza e as outras paredes pintadas em um tom de branco, mas nem tanto. Deixei minhas malas ao que ela me disse que seu filho já estava chegando.

— Espero que você e Keiko se deem bem, ele é um adolescente difícil, introspectivo sabe? – disse ao que eu não entendi se era um aviso ou uma reclamação sobre o filho – Pode tomar banho, essa porta aqui dá direto para o seu banheiro – era uma porta falsa do guarda roupa que me levava até um banheiro privativo, fiquei aliviado porque é difícil chamar um lugar de “lar” que você nunca nem viu as pessoas.

Tomei meu banho morno, coisa que não era comum de se fazer na minha cidade. Por muitos anos nem chuveiro elétrico a gente tinha devido o calor que faz lá. Senti o peso nas minhas costas e um alívio grande de estar dando meu primeiro passo ao futuro. Coloquei uma roupa confortável e arrumei meu cabelo, foi quando eu ouvi a senhora Masanori me chamando.

Saí do quarto e me deparei com um garoto franzino, claro que seria devido aos pais, com olhos curiosos me olhando fixamente dos pés a cabeça. Entendi o que a senhora Masonori quis dizer mais cedo sobre o filho, ele parecia ser meio estranho, tipo aqueles nerds que a gente está acostumado ver em seriados, mas não tanto.

— Então você que é o Keiko – disse enquanto segurava seu ombro antes de dar um abraço. Senti o rosto dele se afogando no meu peito e senti um calor subindo meu corpo quase num estado febril, ele não mexeu seus braços e, ali naquele instante, eu prometi a mim mesmo que não importava o que fosse acontecer, eu iria protegê-lo.


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