Do meu coração de cacto nasce flor de cerejeira escrita por GTavares


Capítulo 1
KEIKO | Mandacaru e Cerejeira




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792426/chapter/1

Eu sempre fui meio antissocial, desses que preferem passar o intervalo sozinho a ficar ouvindo as bobagens que os grupos, tanto dos meninos quanto das meninas, ficam dizendo. Para mim, tudo não passa de uma perda de tempo. Se considerássemos a hora do intervalo como uma disciplina da escola, com certeza eu não me sairia bem no final do bimestre e já teria reprovado algumas vezes.

Toda essa comoção de fim do Ensino Médio e “início da vida adulta” não faz sentido. Primeiro que eu não aguento mais o professor de Educação Física chamando minha atenção em toda aula porque não quero jogar com o restante da sala. Mas veja, desde o Ensino Fundamental sempre fui o último a ser escolhido, então depois de um tempo, parei de jogar para ajudar os meus colegas. Tipo, eu não preciso passar pelo constrangimento em ser o último escolhido e nem eles precisam ficar raciocinando mentalmente em que time eu vou cair. O que seria muito fácil, sabendo que são dois times, se o número de alunos for par, eu sempre ficarei no segundo time a escolher e, se for ímpar, eu ficarei no banco de reserva.

A minha vida escolar inteira eu fui considerado o oriental inteligente que gosta de animes e mangás e que, provavelmente, será um grande CEO de alguma grande empresa de tecnologia. Se existe algo mais xenofóbico que esse pensamento, por favor, não precisa nem me falar porque eu sempre reviro os olhos quando alguém vem dizer coisas desse tipo. Eu ser inteligente não tem nada a ver com a minha descendência oriental, pelo contrário, meus avós são semianalfabetos e mal falam o português mesmo tendo vindo para cá há mais de 30 anos. Acontece que, aparentemente, a maior parte dos alunos da minha sala nasceram com falta de neurônios e não eu quem nasci com excesso, e eu acredito que posso provar isso justamente com as brincadeiras idiotas que eles fazem junto aos demais. Quem em sã normalidade, com os seus DEZESSETE anos de idade tem a brilhante ideia de fazer guerra de bolinha de papel no meio da aula de História sobre a Queda da Bastilha? Olha, se isso é um tipo de metáfora, talvez eu não seja tão inteligente quanto pensam.

Mas, em relação aos animes e mangás, sempre tentei me conectar a minha origem porque eu só nasci no Brasil devido a vida difícil que meus quatro avós tinham no Japão. Então, desde pequeno, eu vivi essa cultura morando na Liberdade, maior reduto da comunidade japonesa do país. Além disso, esse lance de ser CEO de uma grande empresa de tecnologia é colocar muita expectativa em alguém que tem vergonha de falar na frente das pessoas e, essas esperanças – porque eu realmente não vejo isso acontecendo um dia –,  só faz com que aumente a minha ansiedade do futuro.

Eu ainda não sei o que quero da vida, tanto que prestei os mais diversos tipos de cursos: arquitetura, engenharia da computação, estudos literários, medicina e ainda tem mais um monte que eu nem lembro os nomes. Apesar disso, meus pais sempre dizem que está tudo bem se eu entrar em algum curso, ver que aquilo não é o que eu quero e tentar mudar depois. Acho que toda essa questão de vestibular, para nossos pais, conta muito mais o fato de entrar numa Universidade a realmente fazer o curso que você ama, justamente porque eles viveram um período em que ser qualificado era fundamental para você ter “sucesso” na vida.

Ouço o sinal tocando e um frio percorre desde o cóccix até o topo da minha cabeça, vejo aquele conglomerado de gente correndo e grupos apressados para voltar para sala como se aquilo fosse uma savana. Mesmo com toda inteligência humana e nossos polegares opositores, muitas vezes agimos por instinto, eu observo toda aquela selva de crianças do fundamental pingando de suor entrando no meio dos alunos maiores como se sua vida dependesse de quem fosse chegar primeiro na sala e penso “é por isso que algumas mães na natureza comem os seus filhos”.

— Keiko, não ouviu o sinal? Para sala já – vem aquela voz grossa de quem fuma e bebe café há anos da inspetora.

— Já estou subindo Dona Fátima, só estou esperando esses animais entrarem nas suas respectivas aulas – o “animais” não era para ter sido falado em voz alta, mas eu também tenho esse problema de falar antes de pensar.

— Keiko, o que é isso? É dessa forma que se trata as pessoas? – soltou em meio a uma risada, até que a Inquisidora Fátima, como era conhecida pelos demais alunos, não era tão má assim, na verdade, eu a considerava minha melhor amiga dentro daquele colégio tenebroso – suba, porque sua professora já deve estar em sala.

A aula era de Geometria Plana, mas como estávamos no último bimestre do terceirão os professores já estavam passando conteúdo de revisão para aqueles que fossem prestar o vestibular e, por conta disso, estava mais prestando atenção na graphic novel que eu estava desenvolvendo. Eu sempre gostei de ler, tenho muito orgulho de dizer que leio – em média – três livros por mês e, devido ao gosto que tenho pela leitura e o dom que tenho para o desenho, acabo criando histórias de ficção científica que já foram até premiadas em concursos da escola.

Foi no ano passado, quando a escola propôs que fizemos um projeto na disciplina de artes para resgatar a importância do Folclore Brasileiro. Claro, a maioria dos meus companheiros de classe, escreveram sobre o lobisomem – um personagem do nosso folclore que não tem nem origem brasileira – talvez ele deva ter vindo junto com as caravelas em 1500. Mas a minha ideia foi criar um romance proibido, a la Romeu e Julieta não só enaltecendo as riquezas e a força do povo brasileiro, mas também trazendo a cultura oriental para a discussão. Surgiu, assim, a história de “Mandacaru e Cerejeira” o amor entre duas espécies nativas – uma do Brasil e outra do Japão – e seu amor proibido.

Mandacaru, para quem não sabe, é uma espécie de cacto que suporta grandes períodos de estiagem e tem forte identificação com o povo nordestino, não apenas por isso, mas por sua adaptabilidade e beleza mesmo em lugares de difícil sobrevivência e, sempre que vem a chuva, mandacaru floresce. Enquanto Cerejeira, é uma árvore símbolo do Japão que representa o amor, a felicidade, a esperança e a renovação e o ciclo da vida.

Mandacaru cresce sob os galhos de Cerejeira e se apaixona por ela assim que esta floresce, porém, conforme suas flores caem sobre Mandacaru, elas são feridas por seus espinhos e morrem presas a ele. O cacto não entende o porquê de machucar as flores de sua amada que se entristece, perde todas as flores e cai num sono profundo. Mandacaru chora até a primavera que traz a chuva e de sua dor nasce uma flor branca. Então, Cerejeira desperta e ouve de seu amado “eu sou um cacto que machuca todos que me apertarem, mas desaguo se ferido sou. Por isso, nosso amor será sempre impossível, mesmo que um dia eu também dê flor”. Então Mandacaru morre aos pés de sua amada e, então, no próximo ciclo da flora da cerejeira, nasce uma única flor branca entre todas as outras que permaneça até o último respirar de Cerejeira.

Fechei meu caderno e corri para o metrô, minha casa ficava a sete estações e uma baldeação do colégio. Ligo o celular e vejo mensagem de minha mãe “Keiko, passe na padaria e traga pão pois temos visita”. Reviro meus olhos e solto um suspiro forte que até a senhorinha que estava vindo em minha direção percebe e desvia o olhar com medo da minha próxima atitude.

Passo na Itiriki Bakery que tem os melhores pães e doces de todo bairro, apesar da mistura de nome com japonês e inglês, só faltando o logo em português para representar a grande miscigenação cultural e populacional que é o Brasil, imagina “Itiriki Bakery: o melhor pão do Brasil”. Vou tendo os pensamentos aleatórios enquanto caminho para casa. Apesar de não ser muito social no colégio, estar na rua do meu bairro faz com que eu me sinta confortável para ser eu mesmo, sorrio para o moço preparando o Lámen na porta da loja e até aceno para o dono da banca que sempre reserva as edições dos meus mangás antes que outras pessoas o comprem.

Desço a rua, passo pelo porteiro e desejo “boa tarde” pois sou uma pessoa educada, subo o elevador com os meus fones de ouvido enquanto escuto Likey do Twice, entro e tiro o meu calçado deixando-os no genkan— local destinado para deixar os sapatos mesmo – cumprimento minha mãe na cozinha, deixando os pães em cima do balcão.

— Nossa como você demorou Keiko – disse minha mãe com sua voz calma, ela tinha essa voz que não subia de tom nem mesmo em uma discussão – a visita deve estar morrendo de fome – eu nunca gostei muito desse termo “morrer de fome” porque realmente tem gente que passa por isso e, nós, com todos os privilégios que temos, jamais passaríamos tanta necessidade.

— O metrô estava lotado e a fila da padaria estava grande – ela não precisava saber que passei nas galerias para saber o preço do álbum do Red Velvet que eu havia encomendado há mais de um mês, mesmo sabendo que a loja entraria em contato e, também, não estava muito a fim de fazer sala para a visita.

— Chico! – chamou minha mãe, mas não tinha ninguém com esse nome em casa e nosso cachorro se chamava Elric – o Keiko chegou, vem aqui conhecer ele.

Foi então que eu vi, saindo do quarto de hóspedes um menino que deveria ter seus 1,85 de altura, com um bronze brilhante de uma pele hidratada, os cabelos tão pretos quanto o céu na lua nova, com um topete arrepiado com gel e um sorriso que faziam seus olhos de jabuticaba fecharem. Pisquei algumas vezes desorientado e então ele falou com uma voz grave e calma, como se você estivesse em uma meio de uma tempestade em alto mar protegido nas mãos de Poseidon:

— Então você que é o Keiko – segurou meu ombro me puxando para um abraço que amoleceu meu corpo, ele era tão grande que eu me senti sendo entrelaçado por uma cama king size ao mesmo tempo que eu conseguia sentir o seu cheiro de lar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!