Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 6
Charlie




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792325/chapter/6

Levanto a parte superior do corpo como se estivesse saindo para respirar após longos minutos submergida em água. Arregalo os olhos, atrapalhando-me com o fino lençol cobrindo minha cintura. Retiro a bolsa de gelo da testa e encaro a veia perfurada com algo pingando de uma bolsa acima de mim.

—Finalmente acordou

Olho para minha direita. Uma mulher a qual chutaria ter quase dois metros de altura está sentado de pernas cruzadas, os cabelos escuros e volumosos presos em um rabo de cavalo alto, olhos verdes brilhantes puxados como os de um gato. Veste uma camiseta exibindo os braços musculosos e um short de malha com as pernas bronzeadas quase brilhando. Mesmo com a imagem impressionante, passo minha atenção nos arredores, vasculhando algum sinal de onde estou.

—É a enfermaria — ela responde sem convite — Como se sente?

Fico em silêncio. Minha garganta está seca. Sentada na maca, observo as outras duas vazias do meu lado e as três vagas na minha frente. A janela atrás da moça, a escrivaninha e o armário com remédios. Não parece ter mais ninguém.

—Ah, de nada por te ajudar — a mulher sorri, os braços relaxados ao redor do corpo — Estava caída no meio do corredor, sabia? Eu que te encontrei e trouxe pra cá. Vi na hora que simplesmente apagou. Se não tivesse segurado você estaria com uma concussão.

Apoio a cabeça em uma das mãos, apreciando a sensação de alívio agora que a enxaqueca se foi. Se a luz da janela está tão laranja significa que deve ser o pôr do sol. Não fiquei apagada por tanto tempo. Decido que caso fique virada outra vez vou me esforçar para descansar ainda no dia seguinte, logo após as aulas.

—Você não é muito de falar, é?

Volto minha atenção para a mulher novamente. Avalio com cuidado seus traços. São um tanto diferentes do que são originalmente daqui. Deve ter alguma descendência islâmica apesar de não usar as vestes típicas da cultura.

—Agradeço pela ajuda — falo baixo, a voz falhando em alguns pontos.

Passo a mão pelos cabelos. Me sinto bem melhor depois de ter descansado um pouco. Sinto como se tivesse passado o tempo todo sonhando com a voz de Noah, do maldito cantando do jeito como está agora, mais grave. Quero escutá-lo. Quero ver ele.

—Qual o seu nome? — pergunto para a pessoa ao meu lado.

—Ah... Charlie Hugo.

É nome de mulher ou de homem? Ah, o que diabos isso importa.

—Como posso te agradecer? — pergunto massageando as têmporas, apreciando a sensação de alívio agora que a enxaqueca se foi.

Charlie se recosta na cadeira, avaliando com cuidado minha proposta.

—Eu adoraria pagamento em forma de comida, mas os restaurantes daqui são caros e gordurosos.

Dou uma espiada no corpo dela novamente. Bastante atlética. Atenta ao que come. Não acho que algo industrializado vá fazer seu tipo.

—Você pode ir comprar os ingredientes comigo e depois fazer o jantar — passo os braços para os ombros, tentando massageá-los sem sucesso. — Tem problema?

Charlie faz bico, ainda pensando.

—Isso na verdade seria muito melhor. Moro com uma estudante de fisioterapia, ela pode relaxar esses seus ombros depois do jantar.

Travo, encarando meus braços. Solto uma risada e concordo com um aceno de cabeça. Charlie se levanta da cadeira, mostrando meu violão cuidadosamente pousado atrás de si. Arregalo os olhos, estendendo as mãos na direção do instrumento. Como esperado de sua altura monstruosa, usando apenas o braço esquerdo Charlie pega o violão e me entrega. Confiro dentro da capa se ele não acabou arranhado de alguma forma quase suspirando ao encontrar nada.

—Minha irmã tem um igual ao seu. Quase me matou no dia que eu derrubei, então como ainda tenho amor a minha vida tomei bastante cuidado com o seu.

Sorrio.

—Obrigada.

***

—Educação Física?

—Quinto período. Metade do curso.

—Uau.

Com o violão atravessado nas costas, empurro o carrinho de compras movendo minhas pernas com pressa. Mesmo com meus bons 1,70m de altura ainda preciso dar certa corrida mediante os passos largos dos 1,90m de Charlie. Ela estica o braço alcançando com facilidade uma lata na última prateleira. Olhando ao redor, noto como ela chama atenção. Também ainda fico admirada em como ela consegue equilibrar força e elegância apenas no seu jeito de andar.

—Você canta?

Volto meu olhar para ela.

—Perdão?

—Deve cantar, não é? Sua voz é boa.

Encolho os ombros.

—Nem um pouco. Sou só instrumentista. Multi-instrumentista, na verdade.

Charlie faz uma careta.

—Saquei.

Engasgo com a risada.

—Significa que eu toco mais de um instrumento. Até agora é violão, violino e piano.

Até agora?

—Pretendo dominar o violino até o final do semestre e talvez aprender um pouco de baixo ou bateria. Coisa que eu deveria ter aprendido no ensino médio quando tocava em bandas.

Ela se volta para mim, erguendo as sobrancelhas.

—Você não tem cara de alguém que tocaria em bandas.

Faço uma careta. Avalio minhas roupas e dou de ombros.

—Deve ser a primeira a me dizer isso. Mas por que não pareço?

—Bom — Charlie se vira, caminhando na direção das verduras frescas — Você parece bem... Introvertida. Não te imagino em cima de um palco tocando frenética fazendo aqueles movimentos doidos dos caras de banda.

Lembro dos outros integrantes podendo até se encaixar na descrição de Charlie, mas eu sempre procurava um dos pontos mal iluminados pra tocar o violão. Aprendi até um pouco de guitarra, mas não me via tão compilada a continuar.

—É meio estranho de imaginar mesmo.

Até recordo sobre como os outros integrantes das bandas faziam certo sucesso na escola, porém eu ficava ás escondidas, participando ativamente de aulas sem entender nada como uma adolescente normal.

—No mundo feminino eu sou quase uma mutante, então não precisa falar sobre ser estranha comigo — Charlie me oferece seu sorriso caloroso.

Pisco. Conforme avançamos pelo supermercado, fico perdida dentro de mim, acompanhando sua conversa ao mesmo tempo em que me questiono como cheguei a ficar tão confortável mediante essa mulher desconhecida. Quase sinto arrepios ao escutar minha própria voz tantas vezes.

Na saída, quando o empacotador se oferece para nos acompanhar até o carro Charlie segura as sacolas pesadas com apenas uma mão e sai, sem sorrir ou expressar agradecimento. Faço isso em seu lugar e apresso-me em passar pelas portas. Admiro ainda mais sua força, invejando-a minimamente.

—Minha colega de quarto vai adorar você — diz tirando de dentro da sacola o pacote de doces estreitos e de cobertura ácida que me comprei.

—Eu... Nunca fiz isso antes.

—O que? Jantar na casa dos outros?

Encolho os ombros.

—Nunca fiz uma amizade tão rápido.

Charlie inclina um pouco a cabeça, me observando até sorrir.

—Não é tão assustador, é?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Amor Cego" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.