Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 35
Rotina




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792325/chapter/35

Noah fica uma semana na cama. Durante esse período, saio com Charlie tentando acalmá-la e garantir que o meu sumiço não vai se repetir (principalmente por não ter dinheiro o suficiente para fazer isso). Continuo jantando na casa dela e treinando alguns dias. Ela fala sobre experimentar o soco que dei em Ryder e assusta-se tentando entender como contenho tanta força em um corpo menor que o dela.

—Técnica — aponta Andrea — Essa menina é das ruas.

Solto uma risada virando-me para ela. Está sentada de pernas cruzadas no meio da praça sustentando o sorriso sorrateiro de sempre. Gosto muito mais dela que de seu namorado.

—Os instrumentos pesam bastante.

Charlie me olha de soslaio.

—Daqui a pouco vou fazer flexão de baixo.

—Essa foi muito ruim.

—É o único instrumento que eu conheço!

Na quarta vou para a entrevista. Nate já está nos seus cinquenta lutando contra a diabetes de forma que me faz experimentar seus bolos no primeiro dia. Ele fala que se compromete em fazer todos os pratos do menu ou sua filha, Karen, os prepara contanto que eu saiba fazer o café na máquina estranha que mais parece um transformers e sirva os fregueses além de ficar no caixa.

O lugar é pequeno e aconchegante, tem apenas um andar, as mesas são circulares e de vidro, o balcão é em forma de L deixando os bolos a mostra para os fregueses já dentro e os de fora. São coloridos e confeitados, quase irresistíveis. O salário é bom. Não tenho tanta dificuldade como antes de falar com desconhecidos e ser gentil. Sorrio mais do que o normal, no entanto. Karen consegue ser ainda mais tímida que eu, fala pouco e me acompanha servindo mesas quando não está na cozinha. É miúda, tem cabelos pretos e usa óculos. Gosto dela.

Termino as aulas ao meio dia, almoço no dormitório e vou trabalhar acabando por pegar um expediente inteiro de 8 horas de forma que só volto para meu quarto perto das 22:00 horas. A rotina me detona ao ponto de me fazer dormir imediatamente sem nem praticar algo. Passo pouquíssimo tempo no celular, recebo os elogios de Samir sobre minha criação, os convites de Charlie para treinar com ela e uma única mensagem de voz de Noah questionando se gostei do café levado por Tetsuro.

Penso em diversos momentos lhe questionar sobre Kya, mas tal comportamento é inútil. Quando ele se sentir confortável vai me dizer. Por isso lhe respondo tranquilamente e lhe mando melhoras. Sigo minha vida vagarosamente. No domingo, mesmo o coração batendo de saudade dele, trabalho minhas oito horas e ao chegar no quarto pratico violino.

No intervalo da segunda percorro o pátio e o refeitório procurando Noah. Encontro-o sozinho desfrutando da gororoba da cantina, uma careta no rosto, o nariz ainda avermelhado. Está de óculos escuros, a barba rala, parte do cabelo preso e o resto solto. Fica bonito. Camisa em gola V, calças jeans e chinelos. Quase solto uma risada. Ele detesta sapatos. Sua bengala está encostada na perna. Não vejo Tetsuro por perto e meu humor fica maravilhoso. Aproximo-me sentando de frente para ele.

—Ei — chamo — Ainda me reconhece?

Noah desmancha a carranca para um sorriso.

—Você reapareceu — a voz dele é doce.

Derreto-me.

—Algo assim.

—Como vai a tal amiga de Bishop Hill?

—Grávida. Quer dizer, uma grávida e a outra de coração partido — coço a nuca acomodando-me na cadeira — Está melhor?

—Muito.

—O que aconteceu? Caiu em outra fonte?

Noah tira uma ervilha do seu prato e joga onde acha que estou.

—Erro feio.

—Quer mesmo questionar a mira de alguém sem visão?

—Verdade.

—E você? Foi mesmo pra Bishop Hill?

É tão fácil falar com ele. Meu coração não parece estar em uma corrida apesar de doer levemente pela distância tanto física quanto emocional de nós dois. Continuo interagindo normalmente.

—Fui. Desculpe não ter te avisado que não poderia ir treinar piano.

—Não tem problemas — Noah enfia uma garfada de comida na boca — Ainda tá marcado hoje? Precisa me corrigir nos acordes da minha música.

—Sobre isso...

Já havia pensado em transferir nossas aulas apenas para as terças quando tenho minha folga, cronometrei e seria o suficiente para ele aprender ainda o básico de violino e conseguir algo perto de intermediário no piano e violão.

—Noah, desculpe a demora.

Encolho os ombros. Kya apressa-se com um prato das mesma refeição da cantina. Senta-se ao lado de Noah e estranho quase imediatamente o que carrega em suas costas. Fecho os olhos, concentrando-me para não sentir nada negativo do tipo “tire as mãos do meu violão” ao notar que a capa pertence a mim. Ajeito-me na cadeira quase deitando. Giro uma pedrinha na mão distraindo-me com ela quando os dois começam a conversar baixo sobre algo. Não quero saber o quê.

—Ah, Elise, não é?

Assinto e forço-me a cumprimenta-la. Sei que é ciúmes e é irracional, fútil e todos os tipos de coisa, por isso tento me manter neutra quanto a Kya, mesmo meu cérebro ordenando arrebentar o prato na cabeça dela.

—Kya. Isso nas suas costas...

—É o seu — diz sem vergonha, tranquilidade em sua voz e expressão — Passei a manhã ensinando Noah.

Forço um sorriso baixando os olhos para minhas mãos em cima da mesa, as costas apoiadas na cadeira. Não sei como reagir a essa situação. É constrangedora e incômoda. Sinto uma leve dormência na mão direita e massageio seu centro, percebendo o olhar de Kya em cima de Noah.

—Você... Se vira sozinho? — questiona.

Isso me perturba e faço uma careta. Penso em questionar a razão para ela pensar que ele não conseguiria comer por conta própria. Balanço a cabeça em negação. Não é meu trabalho defender Noah e da mesma forma que ele consegue se virar no dia a dia consegue muito bem responder a situações como essa.

—É, Kya. Consigo — a voz dele é neutra.

Desvio o olhar para o alto, quase rindo. Se fosse eu quando nos conhecemos ele teria surtado e me acusado de qualquer coisa que o viesse a mente. Respiro fundo me obrigando a encarar os dois.

—Eu queria te avisar — interrompo antes de Kya comentar algo. — Arrumei um emprego. Não vou mais poder te dar aulas.

Noah baixa os talheres, confuso. Afago minha mochila sem tirar a atenção dele. Queria poder saber o que está pensando. Se sabe as coisas as quais escondo entre as palavras.

—Por que arrumou emprego?

—Gastei muito do dinheiro da minha mãe. Ela achou melhor eu me sustentar por um tempo.

Ele fica hesitante, deixa de lado sua comida, as sobrancelhas juntas. De óculos parece até que consegue me ver. É uma sensação estranha ter esse tipo de atenção em cima de mim vinda logo dele.

—Não se incomoda com isso? Vai ficar bem?

—Tá tudo bem.

A mão de Kya desliza até a de Noah. Fixo minha atenção na coluna na minha direita, ignorando a ambos. Compreendo na pele a diferença entre a paixonite por Noah e o amá-lo. Tinha plena noção de que conseguiria livremente superar os desejos que sentia de tocá-lo e o nervosismo ao seu redor. Amando, por mais que seja dolorido ainda quero sua felicidade, apesar de ter noção de como esse sentimento vai demorar muito para ir embora.

—Pode ficar com o violão. — suspiro ficando de pé, minha cota de coração doído já foi preenchida —Ele já é mais seu do que meu agora.

—O que?

De pé, dou uma última olhada nele. Noah se tornou alguém doce apesar de conhece-lo como um babaca. Pressiono os lábios, assentindo ao pensamento de que talvez tenha conseguido mudar ele, nem que tenha sido pouco. Coço a nuca colocando a cadeira no lugar.

—Elise?

Sorrio ao escutá-lo me chamando.

—Preciso ir, Noah. Te vejo depois.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Amor Cego" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.