Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 25
Quarto




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Samir: Meu agente não para de gritar comigo por perder a entrevista.

Sorrio para a mensagem na tela, quase rindo. Tento responder o mais brevemente possível.

Elise: Trouxa.

—Brown!

Ergo a cabeça, Noah na minha frente. Está com meu violão no colo, sem óculos e de cabelo preso. Usando regata no meio de um dia frio, as bermudas cor de areia e chinelos.

—O que foi?

—Escutou alguma coisa do que eu disse?

—Não, desculpe. Pode repetir?

—Hum.... O que tá fazendo que nem mesmo me escuta?

—Só... Respondendo uma mensagem.

—Isso é um insulto — brinca — Ei. Não é do ex-namorado que você bateu, é?

A expressão levemente preocupada. Quase solto uma risada nasal. Fica difícil superá-lo se ele acaba me dando esse tipo de abertura tão tranquilamente. Desvio os olhos, guardando o celular de volta na mochila e inspirando fundo.

—Não é. Só um colega. Agora repete o que disse.

—Ah... Perguntei se quer ver minha obra de arte. Tetsuro me emprestou parte dos materiais dele e acho que eu criei um ogro.

—Ótimo acompanhamento de jantar. Onde deixou?

—Dormitório. Eu te levo lá assim que acabarmos aqui.

Um arrepio nada convencional percorre minha coluna. Trinco os dentes, forçando essas sensações a desaparecerem por pelo menos agora. Sinceramente. Por mais que eu me controle, a cada vez mais Noah parece provocar uma bomba atômica no meu peito.

—Tá, claro — resmungo — Vem praticando os exercícios que eu te passei?

Orgulhoso, Noah arruma seus dedos de acordo com as cordas adequadas e passa a subir gradativamente as casas, descendo no número de notas. Serve para soltar os dedos e o recomendei que o fizesse esperando ter uma melhora significativa, porém não tão grande. Ergo as sobrancelhas, observando-o fazer o caminho inverso e encostar a mão nas cordas silenciando-as.

—O que achou?

—Corda D soou quebradiça. Repita.

Noah faz uma careta.

—Você as vezes parece o Russel.

—Eu não sou tirânica.

—É bem perto disso. Não vai me dar nem um elogio?

Estendo a mão na direção da dele, tocando-a. Como se costume, ele se surpreende com o toque repentino, mas deixa. Viro a palma esquerda dele para cima e encaro os pequenos pontos brancos instaurados ali. Calos.

—Você vem se esforçando bastante, Noah — reconheço — Já toca muito bem para um iniciante. Meus parabéns.

Noah puxa sua mão de volta. Estranhando o comportamento, ergo a cabeça para encontra-lo baixando o rosto fazendo os fios desalinhados do rabo de cavalo minúsculo caírem pela testa e têmpora. Me dá vontade de tocá-lo. Desvio o olhar, encarando as janelas.

—Toca o D menor e o G. —mudo de assunto, constrangida.

—Sabe que eu tenho dificuldade neles.

—Por isso mesmo. Quanto mais tocar, mais vai ficar fácil.

Noah abre a boca, querendo dizer alguma coisa. Se silencia. Devo tê-lo deixado incomodado ao segurar sua mão e elogiá-lo. Mas nem mesmo fiz nada! É idiotice ficar dessa forma por algo tão banal. Pressiono os lábios, insatisfeita comigo e minha interpretação das reações dele. Opto por aceitar que não sei o que Noah pensa, então devo ignorar o acontecido.

Após perceber que nem mesmo ele valia a pena tanto esforço da minha parte passo a sentir quase nenhuma agonia ao imaginá-lo fora da minha vida. Ele está bem na minha frente agora. Se decidir por alguma razão afastar-se, não vou poder ou fazer nada para impedi-lo. É sua escolha. Se doer, tudo bem. Preciso seguir em frente.

Continuo a lhe dar ordens sobre os acordes, ele as segue. Demoramos ainda alguns bons trinta minutos nisso até Noah reclamar da dor na ponta dos dedos e pararmos. Sequestro o violão de suas mãos e começo uma música, o som semelhante ao da que me foi apresentada por Samir.

—Gostei. — Noah sorri massageando a ponta dos dedos, um costume que lhe passei — Qual o nome?

—“Eu te amo” — digo sem pensar — Riopy. Bom, na verdade o título está em inglês, mas é mais fácil de entender. Ela é bem melhor no piano.

Distraio-me, voltando a tocar. Falei algo inadequado? Noah desvia o rosto novamente, escondendo sua reação. Imagino-o rindo do título da composição, considerando clichê. Dou de ombros, mudando para algo popular.

—David Bowie?

—É.

Vejo o rosto dele novamente, mais relaxado e contente ao escutar a música.

—Gosta dele?

—De algumas músicas. Não tenho cantor favorito. E você?

Volto a olhar os acordes.

—Também não. —minto impedindo-me de falar dele.

—Vai me ensinar essa música, não vai?

—Depois. Vamos logo pro piano.

Ele assente. Pega a bengala encostada na sua cadeira e ergue-se virando de costas pra mim. Segue seu caminho na direção do instrumento e guardo o violão na capa estranhando estar tão bem afinado. Sequer lembro de ensinar a Noah como afina-lo. Relaxo a expressão, deixando esse questionamento para outra situação.

Arrumo-o nas minhas costas antes de seguir ele. Sento-me ao seu lado avisando que deixei o violão de pé encostado na lateral dele do piano. Começamos devagar. Ensino Etude de Joep Beving. Dando pontos sobre como ele precisa terminar uma nota já pronto para pressionar a outra, deixando tudo mais fluido. Quando se cansa, pede que eu toque Jazz. O faço. Ele parece gostar mais de Bill Evans de forma que começo com April in Paris.

—Você... É incrível, Elise.

O elogio me deixa feliz. E isso me faz notar outro fator. Não fiquei feliz por ser Noah que me elogiou. Fiquei por ser um conhecedor do ramo elogiando meu trabalho. Quase rio, impressionada comigo mesma. Consigo finalmente ver Noah por quem é, não por quem imaginei. Não deixo minhas antigas fantasias embaralharem minhas emoções.

***

O quarto que ele divide com Tetsuro é menor que o meu. A sala é maior do que a minha, um quadrado espaçoso contendo duas portas, uma mais próxima da saída e a outra na lateral próxima da janela. No local em si estão duas camas de solteiro, baixas e de cobertas azuis padronizadas do próprio dormitório. Paredes claras, piso em carpete cinza.

Na lateral esquerda de cada uma das camas encontra-se uma cômoda onde suspeito guardarem suas coisas. Na mais próxima da porta há um livro pesado com o marcador curioso saindo fora das páginas. Uma escura. O espaço entre as camas divide-se entre algumas partituras em braile, pacotes de salgadinhos e sapatos espalhados, no outro lado resumindo-se a quadros de diferentes materiais posicionados em pé. Abstratos, de cores vivas e ainda alguns jarros feitos de barro (ou seria argila? Não conheço muito sobre, então passo a duvidar sobre meu reconhecimento dos materiais) estrategicamente colocados próximos de cantos para não atrapalharem o caminho.

Seguindo no lado de Tetsuro, encontro uma mesinha pequena feita de plástico preto resistente. Está encostada na parede e sustenta a máquina curiosa, sua base é bastante semelhante a de um abajur, erguendo-se alguns centímetros até conectar com outro material, dessa vez branco, circular e plano igual um prato senão pelas linhas nele desenhadas.

—Deve tá bem na nossa frente se o Tetsuro já não tiver jogado fora.

—O em cima da coisa esquisita?

—Minha obra de arte deve ser a coisa esquisita em si, na verdade.

Não me impeço de rir, aproximando-me do que ele se refere. A criação de Noah é confusa, de uma cor entre cinza escuro e o verde. Uma bola de argila em cima do prato branco inteiramente sujo. Ao chegar mais perto, noto as ferramentas espalhadas pela mesa, todas concentradas nesse tipo de trabalho. Alguns pacotes de argila na lateral da mesinha, uma tigela cheia de água bem no canto e um quadro pendurado bem no meio da parede. Reconheço a tonalidade dos olhos de Andrea, ela de costas com seus cabelos envolvendo grande parte do rosto deixando-a misteriosa.

Tetsuro, apesar de não gostar dele, o babaca realmente presa por Andrea e Noah. Cuida do amigo e venera a namorada. Não parecia ser do tipo que faria isso.

—Ficou muito ruim? —Noah interrompe meus pensamentos.

—Depende do que estava tentando fazer. Parece uma briga entre duas criaturas de lama.

—Era pra ser o Tetsuro.

Solto outra risada, mais alta ainda. Pelo canto do olho vejo Noah sorrindo também, contagiado. Passo minha atenção a ele, observando-o passar a alça do violão pela cabeça conforme meu riso vai diminuindo. Noah sai da porta caminhando pelo quarto tranquilamente, sem precisar da bengala. Localiza sua cômoda e tira o óculos escuro que costuma usar ao sair em público para deixar em cima dela. Apoia o violão no canto da parede perto da sua cama, tira a fivela do cabelo e deixa-o solto. Fica confortável também se livrando dos sapatos, relaxado. Passa uma sensação de... De...

Meu peito comprime. Tem algo muito diferente ao ficar sozinha com ele agora. O que sinto por Noah já é muito diferente de antes. Não entendo completamente, apenas deixo essas emoções subirem lentamente pretendendo entende-las aos poucos.

—Saiu igualzinho — comento desviando os olhos.

—Pode repetir isso sem a ironia, por favor?

—Ainda bem que não levou isso pro campus, iam achar que era algum tipo de arma.

—Cego e armado. Parece até o começo de uma piada.

—Você é um idiota. E não tem jeito com as mãos.

—Por isso que te chamei.

Semicerro os olhos. Noah ergue-se da cama jogando os sapatos debaixo da mesma. Ele move-se sem hesitação dando a volta no móvel e direcionando-se para a mesa de Tetsuro. Afasto-me um passo, dando-lhe passagem.

—Senta aqui — Noah puxa um banquinho de debaixo da mesinha — Preciso de um favor.

—Que favor?

—Encostar no Tetsuro é vergonhoso. Achei que você seria uma melhor opção.

Junto as sobrancelhas.

Eu?

—Isso. Vou tentar te esculpir.

Solto uma risada. Noah procura meu braço onde imagina que estou e deixo que ele o alcance. Toca o cotovelo que fez curativo alguns meses atrás e sobe até meu bíceps me dando um beliscão.

—Ai!

—Qual é! Só precisa ficar bem parada e talvez suje o rosto algumas vezes, não dá trabalho nenhum.

—E o que eu ganho com isso.

Noah pressiona os lábios, pensativo. Parece realmente estar levando a sério essa opção. Mesmo ele pedindo dessa forma, imagino que para conseguir me esculpir ele vai precisar me reconhecer e isso resulta logo em Noah me tocando. É perturbador que seja ele a tomar a iniciativa nisso, não gosto de ser pega de surpresa com os toques de outras pessoas. A expressão dele se ilumina.

—Já sei! Uma música. Te mostro uma música.

—No violão?

—Mais ou menos. Faz anos que crio ela e talvez no violão fique muito boa.

De momento, empolgo-me. Se ele pode criar algo, talvez acabe me inspirando para fazer a minha própria. Ainda não tive nenhum progresso mesmo Samir enchendo meu saco quase todos os dias sobre meu acorde favorito.

—Tá. Pode ser.

Noah sorri. Evito olhar muito seu rosto. Algumas vezes o associo a lua. Brilhante em meio a tanta escuridão, mas ao mesmo tempo, ofuscando estrelas. A fantasia que criei dele me provocou isso. Sua voz brilhou tanto que me fez voltar a tocar, mas também foi responsável pelo meu desconectar emocional de tudo não referente a música e só agora sinto as consequências: saudade, arrependimento, tristeza. E ainda sim, ele, mesmo após desvencilhar-me de tudo que já imaginei, continua a me dar esperança.

—Preciso sentar ou é você que faz isso?

—Calma, calma. Senta rapidinho na cama do Tetsuro enquanto eu preparo a argila.

—Eca. Preciso mesmo fazer isso?

—Ele não tem nenhuma doença, sabe?

Sei.

Tiro a mochila, segurando-a perto e passo por Noah sentando-me na beirada da cama de Tetsuro, minhas pernas servindo de apoio para a mesma. Passo a mão pelo cabelo já chegando na metade do peito. Deve ser o mais longo que consegui desde os meus doze anos. Quero cortá-lo. Noah sobe as mangas da camisa e acomoda-se no banquinho ficando de costas pra mim.

Pego o celular no bolso e dou uma olhada tanto nas redes sociais quanto as mensagens exageradas de Louis sobre a urgência de ir vê-la em Bishop Hill. Hoje é quarta, não teria nem como sonhar em pegar três horas de ônibus até a cidade só para descobrir a sua novidade. Ela vai ter que esperar pelo menos o fim de semana.

—Pronto! — Noah seca as mãos na bermuda jeans e vira-se puxando o banquinho mais para perto de mim.

—Tetsuro não vai se incomodar com você usando esse material todo?

—Não vai, não.

—Ele faz Artes Plásticas, não é?

—É.  Chega mais perto.

—Quer que eu te mostre onde meu rosto está?

—Isso evitaria a possibilidade de eu tocar onde não deveria, então sim, por favor.

Sorrio, uma mão no celular e a outra estende-se para pegar a dele repousada em sua coxa. A pele dele é macia sob os meus dedos e constato ainda mais no momento exato do contato entre sua palma e minha maçã do rosto. Solto o pulso de Noah engolindo o seco com a proximidade e baixo o rosto para o celular tentando distrair-me.


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