Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 14
Interesse




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Ao término do nosso horário o dia já acabou e uma parte significativa da área do campus de música já está emergida em sombras. Saímos da sala caminhando juntos com o único som sendo o da bengala de Noah batendo no chão algumas vezes. É um tom seco, estalado e de alguma forma me acalma.

—Que horas amanhã?

Ponho as mãos nos bolsos após arrumar a mochila na minha lateral.

—Pode ser ás 3? Tenho horário reservado no piano logo depois. Você pode até praticar um pouco se quiser.

Está muito escuro, não consigo enxergar sua expressão. A demora da resposta me perturba e passo a entender sua agonia com o silêncio.

—Posso, mas não sei dizer se vou conseguir ficar pra treinar violão — Noah vira na direita e o sigo na direção do dormitório — Preciso acompanhar minha irmã na compra de um presente pro Tetsuro.

O nome me provoca uma careta. Não entendo muito minha antipatia pelo cara cheio de gel de cabelo, porém não questiono muito meus próprios instintos preferindo formular meu desgosto em silêncio.

—Não gosta muito dele, não é?

Olho para Noah na baixa luz. Os olhos estão desfocados, porém o meio sorriso em seu rosto é um misto de sarcasmo e comédia.

—Como sabe?

—Você sempre grunhe quando eu falo nele.

—Eu faço isso?

Noah ri.

—Não percebe isso?

Junto as sobrancelhas.

—Nem um pouco.

Diminuo o passo, Noah, atencioso, faz o mesmo até estarmos parados na frente do exterior do campus, próximo da quadra do dormitório. Ele apoia a bengala na sua frente usando as duas mãos.

—O que estamos fazendo parados?

—Vou esperar a Charlie. Ela vai jantar no meu quarto.

—Charlie é? Muito bem. Acho que a partir daqui nos separamos.

Desvio o olhar dele.

—Você... Fica no dormitório B, não é?

Noah troca o peso de um pé para o outro, os olhos diminutos e suspeitos.

—Quem te disse isso?

—Eu moro nele também.

—Oh.

—Quer... Acompanhar a gente até lá?

Encolho os ombros. Quero passar mais tempo com ele, mesmo após meu pequeno episódio de ansiedade e nervosismo. De alguma forma quero provar que não sou o tempo inteiro daquela forma sem tocar diretamente no assunto. Espero, e na verdade torço, para ele aceitar e ficar ainda alguns momentos ao meu lado.

—Claro — Noah dá de ombros.

Quase suspiro. Tinha uma visão de mais outro episódio de seus acessos de raiva achando que o havia convidado por pensar que ele não conseguiria ir sozinho. Sei muito bem que ele consegue. Só... Quero mais tempo. Quero mais da sua voz. Mais da sua presença.

—Então — ele começa. — Quando aprendeu piano foi assim também?

—Não. Meu professor era meio mala. Ele me fazia descobrir os acordes das músicas sozinha, anotar e depois repetir até a perfeição.

—Ele era rigoroso, não mala.

—Quer que eu seja rigorosa também?

—Cristo, não. Já demoro pra abstrair tanto Ré que se me falarem pra dar a ré em um carro vou começar a tocar Bethoveen.

—Seu humor é muito estranho.

—Pelo menos eu tenho.

Pressiono os lábios, tentando não sorrir.

—Uma questão de ponto de vista.

Vejo o momento em que Noah formula um sorriso. Os cantos dos lábios esticando-se sobre os dentes, o canto dos olhos repuxando. Mesmo em um padrão de normalidade, acho-o muito bonito. Desvio o olhar, prometendo que iria parar de encará-lo.

—Aprende rápido, hein Brown?

—Talvez.

—E violão? É mais difícil que piano?

—Hum... Não sei dizer. Depende de cada um. No piano você precisa das duas mãos pra alcançar todas as teclas necessárias. No violão é mais pra uma destreza na troca de acordes.

—Acho que não entendi.

—Vai entender amanhã.

—Tá me dando desespero.

Solto uma risada.

—Não é tão ruim quanto pensa.

—Falaram a mesma coisa sobre fazer uma tatuagem e doeu como um inferno.

Inclino-me, sem resistir a espiar a imagem atrás de sua orelha.

—Por falar nisso, o que é ela?

—Essa? — ele aponta a região — Flor de lótus. Era... A favorita da minha mãe.

—É muito bonita.

Noah procura momentaneamente a parede até conseguir encontrar o contato do tijolo e apoiar suas costas nele.

—Eu sei. Você tem alguma?

Quase rio da possibilidade.

—Eu pareço alguém que teria tatuagem?

Noah solta um muxoxo.

—Parecer ou não nem é importante pra mim — ele aponta os próprios olhos — Se me disser que tatuou uma doninha pegando fogo saindo do seu peito eu vou simplesmente acreditar.

Reviro os olhos. As vezes ele se torna bem ácido sobre a própria cegueira.

—Acredita assim tão fácil em outras pessoas?

—Todo mundo merece um voto de confiança. Pelo menos é o que dizem.

—E o que você pensa?

Noah junta as sobrancelhas.

—Não penso. Se eu pensar vou me decepcionar ou desconfiar de tudo e de todos.

—Acho que faz exatamente isso por reflexo.

—Não faço isso.

—Tem certeza?

—Acredito em você no momento. Isso não valida meu argumento?

—Falou a chave do problema. No momento.

Ele respira fundo e me aproximo um tantinho mais querendo quietamente perceber o seu cheiro de novo.

—Desculpe por ontem de novo. Eu só... Não gostei da ideia de ter mais alguém me fazendo de palhaço.

Mais alguém? Quero questionar. Quero saber o que aconteceu com ele, preciso de mais informações suas. Sinto-me sedenta por conhece-lo mais, por ter mais da sua presença. Não parece ser o suficiente. Trincando os dentes, me recuso a sucumbir tanto aos meus desejos optando por apenas continuar ao seu lado sem provocar nenhuma reação extrema.

—Tudo bem. Desculpa ter ficado te olhando.

Noah dá de ombros novamente.

—Falando nisso, o que achou de tão interessante no meu rosto?

O calor chega ás minhas bochechas e encaro meus pés como se fossem os elementos mais interessantes do mundo.

—O quê? — consigo até adivinhar o sorriso brincalhão e sarcástico pendurado em seu rosto apenas pelo tom de voz — Andrea acertou? Me achou bonito?

—Isso... Isso... Charlie! Finalmente!

A vontade é de abraçar minha salvadora. Ela sorri, ainda no fim da esquina, vindo do campus de seu curso. Suspiro de alívio, retirada de uma enrascada onde poderia ou irritá-lo ou me envergonhar ainda mais.

***

Conto a Charlie tudo desde a saída de sua casa, o encontro com minha antiga banda, meu ex-namorado e o ocorrido com Noah apenas escondendo alguns poucos detalhes.

—Noah te pediu desculpas?

Assinto. Sentada na cadeira de frente para mim, Charlie arqueia uma sobrancelha, questionadora. Parece desacreditar seus olhos desde o momento em que me encontrou junto de Noah esperando por ela. A expressão de espanto continuou perdurando até ele sumir no elevador.

—É raro ele fazer isso?

No meu interior desejo ser uma exceção, ser uma das poucas pessoas a quem ele se perdoou devido o comportamento inadequado. Me dou um beliscão ao notar que tento monopolizá-lo dessa forma. Preciso me lembrar que o Noah das minhas fantasias não me dá o direito de ter algo do Noah real.

—Não —Charlie desmancha minhas esperanças — Ele só não costuma fazer isso tão rápido.

Viro-me de volta para o fogão baixando a chama da panela esquentando o macarrão.

—Ele fez isso pra me pedir um favor — as palavras tem um gosto amargo na boca, contudo, não dá pra negar que é verdade — Ajudar ele a aprender piano e violão. Eu meio que comentei isso antes, sobre ensinar ele na primeira aula... Mas acho que ele só levou a sério agora.

—Ah, então foi interesse. Esse é o Noah normal.

—Se conhecem faz muito tempo?

Despejo o macarrão quente em outra vasilha para escorrer a água fervente.

—Desde o primeiro dia dele aqui. Faz uns dois ou três anos. Ele morou com a gente até abrir uma vaga pra esse dormitório.

Concentro-me no molho. Posso imaginar o Noah do ensino médio em seu primeiro dia aqui, doce como sua voz.

—Ele mudou muito?

Charlie não responde. Viro-me para encontrar seu olhar analisador e desconfiado. Já até posso imaginar o que está pensando.

—Você por acaso não tá interessada no...?

—Não, não, não! — nego movendo o molho rapidamente — Só é curiosidade. Curiosidade. Não tem nada de errado em querer saber mais sobre o meu colega de sala.

A desculpa é absurdamente esfarrapada. Sou uma idiota pra mentir sobre alguma coisa tão óbvia. Decido simplesmente ignorar o fato de que Charlie está inteiramente convicta sobre meu interesse por Noah, apesar de não ser no sentido suspeito por ela. Desligo o fogão e ponho todos os elementos feitos em dois pratos ralando queijo por cima em uma apresentação pobre da macarronada caseira.

—Pronto. Servida? — mostro minha obra de arte.

Charlie suspira.

—Vou te fazer queimar todas essas calorias amanhã de manhã.

Meu espírito cai.

—Não me lembra disso, por favor.


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