Junto com o resto escrita por Biazitha


Capítulo 3
Nos dias 12, 15 e 21




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Jung Daehyun estava sentado no banco de madeira do jardim, sentindo a grama pinicar e fazer cócegas na sola dos pés descalços. Fazia um tempo que não usava calçados, tinha a sensação de estar sufocando quando os colocava. Não vestia outra roupa além dos pijamas de algodão, porque não saía mais das dependências da mansão desde o encontro com os jornalistas. Sabia que estavam à espreita e não sentia a cabeça centrada o suficiente para lidar com eles. Tinha plena consciência de que uma hora ou outra precisaria encarar o mundo lá fora, mandar alguém comprar algo decente para que pudesse se alimentar bem. Mas não era o momento ainda.  

A dor de estômago não fazia mais diferença e continuava comendo o que tinha disponível nos congeladores, entretanto, se sentia zonzo alguns momentos. Para quem estava acostumado a comer exageros de almoço, café da tarde e janta, a perda de peso brusca estava mostrando seus efeitos.

— Senhor Jung, tentaram pular os muros. — Youngjae apontou para os jornalistas famintos por um furo do outro lado da construção, atrapalhando o momento de silêncio do homem. Os dois estavam na parte de trás da mansão, onde a flora era tão extensa e fechada que pouco podiam ver dos outros ambientes. Haviam duas porteiras, uma de cada lado da casa, que faziam ligação com a parte da frente, e eram usadas pelos funcionários apenas. Para os moradores, o jardim só tinha ligação direta com a cozinha através da grande porta de vidro, e a frente — onde os portões e a garagem ficavam — só dava acesso à porta de entrada. 

Daehyun acreditava que teriam o mínimo de decência de não invadir o seu único porto-seguro no momento através das janelas ou das sacadas. Ou até pelas porteiras. 

— Deixe-os lá. Invasão de Propriedade acaba em prisão. 

— Devo, ao menos, explicar que o senhor não irá recebê-los? 

— Não, uma hora eles cansam. Como eu disse: se tentarem algo mais, chamo a polícia.

Youngjae prendeu o ar no peito, olhando ao redor um tanto perdido; ficou na dúvida se devia ou não falar o que estava pensando. Se antes achava que a família Jung vivia em uma realidade alternativa, agora tinha certeza. Nem os noticiários aquele homem assistia? 

Quando os cientistas mostraram ao mundo que Orisim estava pronto para receber vida humana em seu solo, a população ficou extasiada. Eram diversas especulações e uma esperança fervorosa no geral, entretanto, tudo foi abafado pouco tempo depois: as passagens eram extremamente caras, o que deixava mais do que claro que só os afortunados partiriam da Terra para montar uma nova comunidade distante. 

Alguns grupos de oposição começaram a surgir, fazendo passeatas e manifestações pedindo por oportunidades iguais e respeito, expondo o absurdo da situação. Como poderiam classificar as pessoas como boas ou ruins por suas condições financeiras? Como poderiam montar uma sociedade perfeita só com ricos? E o resto? 

Os trabalhadores não tinham tempo demais para gastar em frente à televisão e começar uma luta que poderia não ter fim, precisavam colocar comida na mesa todos os dias. Essa era a prioridade. 

O primeiro lançamento foi um sucesso, apenas vinte dias depois e os escolhidos chegaram em segurança. A cada meia hora noticiavam como o futuro seria esplêndido naquele lugar e também como as manifestações continuavam firmes na Terra. 

Então, atores começaram a ir embora. Depois os atletas e, por fim, a maioria dos políticos também embarcou nas naves. E foi com a ausência de autoridades competentes cuidando dos interesses gerais que muitos países entraram em colapso, a Ásia ficou por um fio — no entanto, ainda existiam políticos preocupados e responsáveis o suficiente com o seu povo. 

Uma pequena histeria acometeu a Terra e histerias coletivas deixavam tudo mais vulnerável. Algumas almas mal-intencionadas começaram a achar que estava na hora de saquear, queimar e destruir o que encontrassem. Por isso, Youngjae achava que as autoridades policiais não teriam tempo de ouvir o neto dos seus ex-patrões em uma situação de perigo mínimo. 

— A polícia... Acredito que a polícia tenha problemas mais importantes para resolver nesse momento — resolveu responder, saindo do transe em que estava. Escondeu as mãos nos bolsos do macacão, sentia-se desassossegado; ainda podia escutar os gritos dos jornalistas na frente da mansão tentando capturar qualquer coisa. 

Com um risinho de deboche, Daehyun deixou o assunto findar sem explicações em demasia. Ele era o Secretário da Justiça, a polícia jamais teria assuntos mais importantes do que cuidar da sua segurança. 

 

A letargia conseguiu consumir toda a vida do homem aos poucos. Ao longo dos dias notou como estava cada vez mais exausto e sem esperanças, caindo em um buraco de desprezo por si mesmo que parecia não ter fim. Em uma das noites vazias começou a sentir tamanho desespero com a situação em que se encontrava que não conseguia mais ficar parado; precisava dar um jeito. Foi o maior pico de energia que teve em muito tempo.

O seu registro de chamadas ficou atolado de ligações para os familiares, torcia para que o atendessem em algum momento e o ajudassem. Estava há três dias trancado em sua suíte, grudado na tela do celular e acumulando pratos, talheres e embalagens de comida congelada em volta da cama. O aparelho desligava sozinho quando atingia altas temperaturas e em uma dessas vezes, quando finalmente conseguiu ligá-lo de volta, a reposta chegou: 

Depois conversamos melhor, veremos o que podemos fazer nos próximos meses - 03:47 am

 

Uma mensagem seca e vazia da própria mãe. 

Enquanto pedia por mais explicações e descrevia a saudade que estava sentindo — digitando no teclado com as mãos trêmulas e a vista embaçada —, a realidade fez Daehyun parar. Abaixou o celular ainda quente pelo uso contínuo e ajoelhou em cima do colchão, mirando o tapete felpudo da suíte completamente coberto por sujeira e lixo. 

Estava comprovado: eles não ligavam. 

Sua própria família, sangue do seu sangue, sabia que havia ficado para trás e não se importavam com isso; a sua presença não fazia falta. Sabe-se lá quando deram a sua falta e optaram por não checar se estava bem. Ela provavelmente só respondeu porque não aguentava mais ser bombardeada pelas ligações ininterruptas do próprio filho. 

— Uma mala perdida —  sussurrou com a voz machucada, deixando cada lágrima que tentou conter durante os quinze dias encontrasse a liberdade para fora dos olhos castanhos. Desligou o celular e jogou-se entre os travesseiros malcheirosos, soluçando alto. Abraçou os joelhos no peito, tentando encontrar algum conforto em si mesmo, porém não conseguiria isso. Odiava-se, odiava-os. 

— Uma porra de uma mala... perdida. 

Era como se sentia. Ele não ter embarcado era como se a família tivesse perdido uma bagagem em um aeroporto, um objeto que seria substituído com algumas notinhas de dinheiro e assim ficaria como uma história engraçada. 

Lembra daquela vez que perdemos a mala na Itália? 

Lembra daquela vez que deixamos o nosso filho na Terra? 

 

Cinco dias depois da mensagem, a rotina pesada e estagnada continuava. O silêncio só era interrompido por constantes suspiros e murmúrios lamentosos; nunca havia se sentido tão descartado. Ele nem mesmo se sentia mais como Jung Daehyun, era só a carcaça do que costumava ser. 

Despertava às seis da manhã, tomava um café forte e comia algumas bolachas salgadas (que já estavam no fim), dirigia-se até o jardim e ali ficava por horas tomando sol. Às vezes cochilava rapidamente, no entanto, era sempre despertado pela movimetação de Youngjae cuidando da natureza. Há tempos desistiu de tentar entender os motivos para que àquele homem continuasse cuidando de algo que não era seu, e de graça.

Quando voltava a ficar com a sua própria companhia na mansão vazia, esquentava no forno o que tinha disponível e ficava sentado ou deitado no sofá de couro azul até a hora da janta. Novamente, comia o que tinha e tomava um banho quente para atrair o sono. Algumas vezes conseguia dormir rápido, outras não. 

O celular, um objeto que antes considerava quase como um suporte vital, estava sem bateria caído em algum canto. Ninguém ligaria para ele, de qualquer forma. A mensagem que recebeu da mãe foi muito clara nesse sentido: nos próximos meses tentariam resolver. Quem sabe? Talvez? Sem pressa, sem importância, sem problemas. 

Um desconforto leve na barriga fez com que Daehyun tentasse deixar o seu lugar ao sol da manhã para ir ao banheiro, porém, quando levantou com rapidez do banco, foi ao encontro da grama úmida de joelhos. 

Youngjae, que podava distraído um dos arbustos do jardim, largou a tesoura no chão e correu até estar ao lado do homem. Não tinha certeza sobre o que estava acontecendo, só percebeu a movimentação brusca e o outro caído. 

Apoiando uma mão em sua cintura, conseguiu o colocá-lo sentado de novo. Enquanto o ajeitava, notou como o osso da cintura estava saltado na pele da barriga. 

— Está tudo bem, senhor Jung?

— Foi uma tontura passageira.

— Precisa de alguma coisa? — Ainda segurava-o, temendo que tombasse para frente. O sussurro de “água” que ouviu o fez se mexer com pressa, dando grandes passos até a cozinha. Não teve muita dificuldade para encontrar um copo e enchê-lo de água fresca, depois voltou para fora e estendeu-o para Daehyun que tomou tudo rapidamente. 

Ficaram perdidos em pensamentos por um instante, olhando para qualquer lugar que não para o outro. Um grunhido arrastado saiu do estômago do Jung, tão alto e tão forte que suas orelhas ficaram vermelhas. 

— Eu posso deixar o almoço e o jantar prontos para o senhor. — Youngjae propôs sem rodeios, deixando o outro ainda mais desconcertado. Vinha há dias reparando como a figura do homem definhava aos poucos: os cabelos morenos cada vez mais descuidados e compridos, os pijamas amassados e os ossos proeminentes por todo o corpo; não precisava pensar demais para concluir que tinha algo de errado e que tinha a ver com a família indo até Orisim. Não queria saber dos detalhes, só estava tentando conseguir dois resultados bons a partir de uma única ação. — Posso cuidar do jardim na parte da manhã e do restante à tarde. 

— O que está dizendo? — Os olhos estreitos, mas um pouco mais atentos e menos encabulados, miravam Yoo tentando entender suas reais intenções. 

— O senhor precisa de ajuda.

— O que... — não tinha força o suficiente nem para negar o que era dito. Era óbvio que precisava, porém talvez não da companhia de um jardineiro com uma personalidade boa demais para ser verdade. 

— E eu preciso de um emprego fixo. 

Ah, aquela frase fez a nuvem cinzenta sumir dos pensamentos de Daehyun. Ali estava a intenção gananciosa que procurava, a situação onde dava e recebia; estava lidando com o que sabia bem, um terreno conhecido em sua vida. 

— Quem garante que não irá me envenenar?

— O que eu ganharia com isso? — Rebateu aborrecido, puxando as alças do macacão com uma inocência inconsciente. 

— Você cozinha bem?

— Parece que terá que confiar em mim, senhor Jung — sorriu amigável, sentindo um grande alívio por ter sua renda de volta.


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