Junto com o resto escrita por Biazitha


Capítulo 2
Nos dias 02 e 05




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Daehyun não conseguiu pregar os olhos, entregue aos sentimentos e pensamentos ruins que o deterioravam. Nunca havia sentido aquilo antes; ódio puro, ansiedade latente e vazio na alma. Sentia-se abandonado por todos aqueles que mais amava e confiava. Como poderia se sentir diferente?

Resolveu tomar o seu primeiro banho depois das últimas quarenta e oito horas, tentando lavar junto com o fedor repulsivo a míngua do espírito. Esfregava o sabonete de carvão vegetal na pele de maneira mecânica, os olhos opacos e vermelhos miravam através da parede visualizando o que não estava ali. Quando começou a lavar os embaraçados cabelos com o shampoo de mel, culpou a grande quantidade de sabão pelas lágrimas grossas que começaram a escorrer por seu rosto e enfiou a cabeça toda embaixo dos jatos potentes para se limpar. Desligou o chuveiro quando os dedos das mãos estavam tão úmidos e enrugados que não os sentia mais. 

O homem desceu as escadas de mármore com os pés descalços, encontrando o vazio e o escuro. O pijama curto de algodão não esquentava-o o suficiente, mas pelo menos servia de breve distração enquanto reclamava do frio e movimentava os braços para se aquecer. O dia amanhecia lentamente, como se quisesse estender seu sofrimento.

Caminhou pela cozinha de azulejos vermelhos e armários de vidro preto, perdido frente tantas possibilidades; poucas foram as vezes que precisou preparar o próprio café sozinho e não estava com disposição para o fazer naquela hora. Decidiu assistir ao nascer do sol sentado em cima da bancada, balançando os pés distantes do chão como uma criança.

Não sabia definir se não haviam notado sua ausência — talvez imaginassem que passaria a viagem na cabine de Moon Jongup — ou se somente não se importavam. Chegou a pensar que sua família e Jongup montaram um plano para que fosse abandonado, mas o que ganhariam com isso? 

Daehyun não era muito próximo dos pais e dos outros parentes com quem morava, entretanto não conseguia imaginar que o odiavam. Não tinham uma relação tão carinhosa, mas amava-os. O único motivo pelo qual não se mudou, mesmo tendo 25 anos e uma renda própria, era a insistência dos mais velhos de manter todos por perto. Quando — e se — casasse, continuaria ali com o cônjuge. A vida que levava era tranquila e não tinha muito com o que esquentar a cabeça, então continuar ali parecia um destino natural. 

O pai, Deputado Jiyoung, passava os dias úteis no duplex de Seul e aos finais de semana exigia que todas as refeições fossem feitas com todos à mesa. A mãe, Doutora Eunji, era igualmente ocupada no dia a dia, mas tentava estar presente durante toda a parte da manhã para o que fosse preciso. Os avós mandavam e desmandavam nos empregados, treinando e cuidando dos detalhes que achavam relevantes. As duas tias que tinha — uma viúva e outra solteira — eram professoras universitárias de Geomorfologia. 

Analisando com frieza a situação, Daehyun não sabia mais do que o básico sobre a própria família. Nunca teve interesse demais em perguntar quais eram os gostos, desgostos, medos, sonhos e desejos. Estavam preocupados com a vida e opinião públicas, zelando pelas aparências. Sendo filho único era muito mimado, contudo não conseguia lembrar da última vez que havia recebido um abraço sincero de algum familiar, um afeto que não fosse forjado para alguma foto ou vídeo. 

Mesmo assim, sabia que não o odiavam. 

Nem o amavam, portanto. 

Talvez sua presença fosse apenas... indiferente. Dispensável. Trivial. Irrelevante

— Não, não, não, não! — Começou a repetir a negativa até o ar em seus pulmões acabar, restando só a voz falha. Nunca havia tido aquele tipo de pensamento antes, um tipo que causava tanta insegurança que não sabia mais o que era real. Reconhecia que o estresse das últimas horas poderia estar alimentando aqueles medos. Porém pareciam não faltar motivos para que fossem verdadeiros. 

Afinal, ele estava ali sozinho e eles não o procuraram em momento algum. 

Até mesmo a mansão ficou para trás apodrecendo aos poucos. Era de se estranhar que houvessem largado mão de tudo o que construíram com tanto esforço para que o tempo deteriorasse como se nada valesse. Não sabia de verdade quem eram aquelas pessoas com quem vivia e chamava de família. 

Segurando novas lágrimas, Daehyun tombou a cabeça e grunhiu no vazio. Quando voltou a posição original, o seu coração quase voou para fora da boca e seus olhos secaram no mesmo instante. Havia uma figura comprida mexendo no jardim, o corpo agachado em cima de um arbusto verde e uma tesoura de poda brilhante na mão. 

Desceu do balcão sentindo o corpo de repente quente e abriu uma das gavetas buscando por algo que pudesse usar como defesa. Não era para ter ninguém ali, era alguém disfarçado vindo roubá-los? 

Abriu a porta de vidro da cozinha com força, segurando o garfo de prata entre os dedos pronto para usá-lo. Quando o estranho se virou, também assustado com a movimentação repentina, Daehyun o reconheceu brevemente, porém não relaxou a postura. Era um dos jardineiros, o nome bordado de forma elegante no macacão verde: Yoo Youngjae. 

— Bom dia, senhor Jung. — O homem de cabelos castanhos e olhos amendoados cumprimentou-o. As bochechas tingidas pelo esforço recente faziam os olhos se destacarem ainda mais, eram quase como dois potes de mel derretidos sob a luz do sol. 

Youngjae trabalhou ali por três anos e sabia bem das regras que a velha Jung impôs, mas não precisava segui-las agora. Não via mal nenhum em ser educado. 

— O que faz aqui? Os meus avós mandaram todos embora.

A forma hostil como foi respondido não diminuiu em nada sua calmaria. Por tal, ofereceu um sorriso aprazível e foi respondido com um suspiro profundo. Pelo tempo que conviveu naquela mansão pode perceber como — apesar de cheia de gente — era vazia de vida terna. 

— Esse jardim é um dos meus maiores feitos, não posso abandoná-lo — ilustrou sua fala mansa apontando para as grandes árvores cheias de frutos que faziam sombra sobre deles, depois para os arbustos floridos próximos ao chão. Desde quando foi contratado como auxiliar de jardinagem, Youngjae quem plantou, cultivou e mimou cada semente daquele lugar, tomando a rédea da situação. Ia muito além de cumprir as tarefas que lhe eram demandadas, fazia isso com muito carinho pois trazia cor para os muros cinzentos da cidade. A natureza trazia de volta toda a essência pura que o mundo egoísta tentava destruir. 

— E cuidará de graça?

A pergunta desdenhosa desencorajou-o por um momento, definitivamente não tinha como conversar com os gigantes de gelo. Os Jung pareciam não ver a mesma coisa que Yoo via. 

Daehyun até nutria certa admiração pela flora majestosa, mas não entendia como alguém poderia perder tempo cuidando do seu jardim sem receber nada em troca; não via maldade na pergunta, era uma curiosidade genuína e incrédula. 

Sem respondê-lo, o jardineiro levantou a mangueira do chão e jogou água nas flores amarelas que cresciam tímidas por entre as folhagens verdes. Relanceou os olhos para trás, vendo o outro encolhido com os pés na grama úmida e as olheiras fundas observando a água refrescar o jardim. 

— O senhor não deveria ter partido ontem?

— Eu... — Daehyun deixou a fala engasgada na garganta. A descrença curiosa foi substituída pela escuridão interior. — Eu irei no próximo daqui alguns meses. 

— Haverão mais? — Foi a vez do Yoo parecer desacreditado nas palavras do neto dos ex-patrões. Abaixou a mangueira até ela molhar as próprias botas pretas de borracha, esperando pela explicação daquele ser humano que soava perdido. 

— Na verdade, esse assunto não lhe diz respeito. Termine logo o que veio fazer e volte para a sua casa.

— Como quiser, senhor Jung — murmurou. 

 

Daehyun não comia direito há cinco dias. Não fazia nada além de esquentar as embalagens da sopa congelada de legumes e ferver água para jogar em seu macarrão instantâneo. As noites na suíte eram cruelmente silenciosas, onde ele encostava as costas na cabeceira da cama e suspirava até o cansaço vencer, permitindo que seus olhos estivessem tão pesados que dormiria um sono vazio. 

No entanto, naquele final de dia, a dor de estômago insinuava como a mudança na alimentação estava o arruinando demais. Resolveu sair para comprar uma comida que o deixasse tão cheio que o corpo ficaria mole tentando digerir, assim a sonolência viria. Não queria apelar para remédios ou álcool. Ainda.

Vestiu uma roupa confortável, deixando perfume, anéis e relógio intactos na pia do banheiro. Passou um pente molhado no cabelo escuro — mal se importando com os fios que escapavam do topete — e calçou um tênis de corrida. Com as mãos no bolso do shorts azul marinho, andou até a garagem no subsolo. Haviam oito carros à sua disposição e se a situação fosse outra ficaria alucinado para colocar as mãos no sedan preto do pai, entretanto destravou a própria caminhonete cabine dupla e pulou no banco do motorista.

Apertou o botão para que o portão da garagem abrisse, revelando a rampa que o levaria até a entrada principal e a rua. Quando apareceu na parte da frente da casa com a caminhonete, uma sequência de flashes o fez pisar no freio com força. 

Fechou os olhos por um instante, sentindo-os lacrimejar com as luzes brilhantes repentinas. Logo, gritos e clamores começaram a ser ouvidos por ele: 

— Secretário, senhor Secretário... 

— Aqui! Aqui! Aqui! 

— Por favor, uma palavrinha.

Daehyun apertou o botão de travar as portas, estava mais vulnerável do que nunca. Não haviam mais seguranças garantindo o seu bem-estar e espantando os jornalistas oportunistas. Era incrível como as notícias corriam rápido. 

— Senhor Secretário, por que não foi com a sua família?

— Secretário, quais são os planos para a cidade daqui pra frente? 

— Quando ocupará o lugar do seu pai? 

— O Prefeito já conversou com o senhor? 

As perguntas ecoavam em sua cabeça fazendo estrago, indagações que nem ele tinha resposta. Se antes gostava de ser alvo das câmeras impiedosas, agora queria ser esquecido por elas. 

Acelerou para longe sem olhar para os lados, tentando fugir não só da situação, como também de si mesmo.


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