Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 42
Grand Line, Shanchá (Final)


Notas iniciais do capítulo

Ana:
Uma ideia simples que acabou se tornando dois anos e meio de trabalho árduo. Eu ainda não acredito que estamos aqui, mas estamos! Prazer em conhecê-los, eu sou Ana, a coautora dessa história e a culpada desse projeto acontecer para começo de conversa — porque, a dois anos atrás, eu já era a chata que aparece com ideias e arrasta os outros para bobagens hahaha.

A princípio, "Prisão de Gato" era para ser uma simples história de Jogos Piráticos, um absurdo que eu idealizei em janeiro de 2020 quando, por acaso, resolvi fazer seis fichas com a Sabrina para uma interativa que nunca foi para frente (é óbvio). Os anos se passaram e cá estamos, dois anos e meio depois, finalizando esse projeto que tanto nos fez sofrer, rir e nos divertir, e afinal dedicamos cada pedacinho a vocês, que nos leem.

Assumo que sempre foi muito divertido criar e pensar em tudo a respeito desse universo, ainda que estivesse bastante desgostosa com a história original (cof, cof). Porém, nada disso apaga as maravilhosas noites sem dormir e todas as milhares de vezes que revisei cada linha escrita. Valeu a pena e por isso estamos aqui!

Não sabemos ao certo quantas pessoas realmente aparecerão nos comentários desse capítulo, mas nesse ponto nem importa, certo? Obrigada por lerem e até a próxima!

Sabrina:
Aqui é Sabrina, uma das autoras e pela primeira vez falo diretamente por aqui. Já fazem mais de dois anos e provavelmente a prisão de gato será o projeto mais desafiador que já participei — por enquanto —, e não consigo colocar em palavras como cada personagem e cada palavra escrita dessa história foi significativa para mim, como autora e como alguém que pretende melhorar na escrita a cada dia.

Dizer que me apeguei ao universo seria um eufemismo, pois sinto que nesses dois anos uma parte de mim viver a Prisão de Gato e, por mais que eu desejasse o fim, agora é duro dizer adeus.

Sou grata a cada um que leu um pedacinho dessa história e ainda mais grata por aqueles que tiraram um tempinho para participar desse universo. Foram muitas mudanças, muitos processos e bastante tempo de nossas vidas com essa história (eu que o diga), mas sinto que esse ciclo se encerra como deveria se encerrar. O final mudou muito, do que havia sido proposto, em abril de 2020, mas a essencial permanece em cada palavra.

Muito obrigada aos que permaneceram, aos que foram e as que virão. Uma boa leitura a todos os navegantes e até a próxima viagem.



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"(...)O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento ao rato vivo,
da noite até seus olhos de ouro. (...)"
— Ode ao Gato, de Pablo Neruda

Já era possível ouvir o vidro cedendo ao calor que se formava quando Yun terminava de despachar seus tripulantes para dentro da própria embarcação, afinal não era seguro que permanecessem por ali, sobretudo com a iminência da chegada da Marinha. Isto é, era fato que estavam chegando; não seria tolo de acreditar que, em todo esse tempo que permanecera calado, Hanzo apenas aceitaria suas ordens e o seguiria em voto de silêncio sem planejar algo por trás, mas de qualquer forma agora já era possível ver a fumaça tomando as altas janelas de Shanchá e, contra o fogo, não haveria arrependimentos que pudessem pará-lo.

Ao longe, era possível ver a carniça se distanciando sob sua ordem, deixando Belka e Poyo para trás, com a missão de atear fogo a cada centímetro da casa de banho para erguer uma cortina de fumaça que os escondessem de Apricot no mar.

Yun não poderia se dar ao luxo de colocar fogo na pousada sozinho; não enquanto era responsável por seus próprios tripulantes, além disso, ainda que estivesse disposto a ajudar, sabia que nenhum dos gatos era merecedor de seu sacrifício, muito menos o de um de seus companheiros.

A boca amargava ao pensar que seu plano poderia ter sido infinitamente mais simples e, talvez ele próprio pudesse segurar em suas mãos os fósforos e o álcool, contudo ainda lhe parecia arriscado demais, sobretudo porque haviam testemunhas demais naquele local e os diamantes que oferecera aos funcionários não comprariam o silêncio de seus empregos serem retirados à força. Eles não diriam nada sobre os serviços médicos, porém não estava certo que se manteriam calados caso vissem um dos cães destruindo a propriedade — além de que Hanzo não poderia saber que eram todos a se revoltar.

Era arriscado demais.

E por isso, quando pediu por voluntários para ficarem para trás, desejou que a capitã fosse egoísta e prezasse pela própria vida, mas certamente era pedir demais que um capitão abandonasse suas responsabilidades dessa maneira. Poyo estava disposta a morrer pela vida de seus companheiros e Belka, por outro lado, parecia simplesmente disposta a morrer. Independente de seus motivos, colocariam fogo abaixo a casa de banho e, saindo silenciosamente pelos fundos, viajariam com um pequeno barco em encontro aos gatos e, a partir dali, estariam por conta própria.

Sentia as mãos tremerem um pouco, algo bastante desagradável para um médico, observando a nuvem de fumaça tornar-se cada vez mais espessa e o ar mais difícil de se respirar. Não havia sinal das gatunas e, principalmente, não havia qualquer sinal de Hanzo.

— Yun, vamos entrar — Fang pediu, apertando levemente um de seus ombros.

Yun o olhou em súplica. Não queria sair dali antes que visse Belka e Poyo.

— Hanzo ficará bem. — O homem peixe franziu a sobrancelha. — Elas também.

Então, olhando uma última vez para o horizonte, de supetão notou uma pequena luz se desenhando em meio a nuvem de fumaça que cobria o mar, na direção oposta a figura esvaecida da Carniça.

Sentiu seu estômago despencar. Não precisava ver mais nada.

— Vamos.

≈≈≈

Poyo sentiu um calafrio horroroso no momento em que riscou o fósforo e acendeu uma pilha de trapos embebidos em álcool nos fundos da dispensa dos empregados, no último andar. Era certo que o fogo se espalharia com facilidade, visto que além das paredes de papel, também se encontrava a maior concentração de rouparia e roupas de banho de toda a hospedaria, mas algo não parecia certo. Aquela era a primeira vez em que não sentia-se confortável fazendo pilhagem e, talvez, sentia-se dessa forma pois se tratava da primeira que poderia custar sua vida e a de seus companheiros.

Seus ossos ainda doíam e cada um de seus cortes ardia ainda mais com a iminência do fogo, porém nenhum sentimento era mais urgente que o de sobrevivência. Queria sair dali, mais do que tudo no mundo: desejava viver, por mais que a vida sem a pirataria não tivesse mais o mesmo sabor.

Se perguntada alguns dias atrás, diria que preferia morrer a deixar de ser pirata, mas agora, quando a escolha estava em suas mãos, não reclamaria de viver mais um dia ao lado de Flint e seus amigos. Não retornaria a fazenda, isso estava fora de cogitação, porém a mera ideia de voltar a viver dias comuns com Bertruska e Fionnula enchia seu peito de expectativa, tanta que não poderia contentar-se em apenas imaginar.

A vida poderia ser boa e por isso viveria. Precisava acreditar nisso.

— Fique atenta, isso aqui é um labirinto — Belka a trouxe de volta a realidade e, mais uma vez, Poyo sentia que não havia um caminho para além do fogo.

Desciam as escadas o mais rápido que os machucados de Poyo permitiam, mas não sem antes incendiar cada canto de cada andar por onde passavam, tornando o calor cada vez mais escaldante e insuportável. Mesmo Belka, coberta por pelos, começava a sentir um manto de suor formando-se em sua testa e, devido a espessa camada de fuligem, a respiração tornava-se mais pesada e sôfrega: uma pequena lufada de ar era o suficiente para arder as narinas e a garganta.

Não vou morrer carbonizada nem fodendo, pensava Belka, amarga, ao passo que via a garotinha ao seu lado, trupicando para andar enquanto tentava acompanhar seu passo.

Não sobreviveriam muito tempo naquele local e isso estava claro desde o primeiro momento em que ouviram o plano deixar a boca de Yun. Os riscos sempre estiveram sobre a mesa, entretanto encarar a realidade era muito mais amedrontador do que apenas relatos e, ainda que, ambas tivessem aceito a missão crentes que a morte não poderia lhes assustar, agora sentiam as pernas bambearem de puro terror e desejavam, acima de tudo, estar de volta ao mar, de onde nunca deveriam ter saído.

Ah, o mar! Que saudade que tinham das longas noites em que não podiam dormir e pediam para que Flint lhes servissem uma quente xícara de chá (muitas vezes servida junto de biscoitos caseiros, sem sequer precisarem pedir). Haviam vivido a vida como nunca nos últimos meses e, por mais que sentissem alegria, somente agora notavam o quanto colocaram a perder. Não havia arrependimento de suas investidas; fizeram o que precisavam para sobreviver, com crueldade, sim, mas porque não poderiam fazê-lo de outra forma na vida em que levavam. Para proteger o que amavam, lutaram e mataram sem piedade, como piratas que escolheram ser, contudo…

Contudo.

Se pudesse mudar o passado, Poyo certamente teria poupado cada um de seus subordinados do destino que lhes estava prescrito a partir desse momento; diferente dela, que poderia fugir para qualquer lugar e não haveria ninguém buscando seu nome, cada um deles passaria o restante da vida em débito com a justiça. Tinha noção que nenhum deles era um bom samaritano e, por mais que discordassem de seus métodos, jamais se opuseram às investidas que liderou no passado, entretanto conheceu o caráter de cada um que convocou para fazer parte de seu bando e nada colocaria em sua cabeça que eles mereciam a morte. Naquele ponto, ninguém merecia.

Ninguém, além dela mesma, isto é.

— Pare de suspirar e vamos logo! — A gatuna ralhou.

E Belka. Talvez apenas a gata merecesse padecer ao seu lado, mas se tivesse a chance, lutaria por ela até o fim também.

Estavam finalmente chegando ao primeiro andar e o som das tábuas estalando preenchia completamente o ambiente junto de sonoros e pesados passos.

A este ponto, deveriam estar sozinhas ali. No instante em que queimaram o último andar, aguardaram até que todos os funcionários tivessem tempo de fugir, antes de iniciar a queima do próximo, este havia sido o combinado com Yun; não teriam baixas.

Então, de supetão, o som de passos cessou e, em seu lugar, ele foi substituído por uma pausada salva de palmas.

— Ora, ora.

Belka reconheceria aquela voz presunçosa em qualquer lugar. Não lembrava-se se era uma característica gatuna, ou se carregava isso desde de sua vida humana, porém guardava com muita facilidade o tom de voz daqueles que lhe causavam asco. E Hanzo certamente era um dos primeiros de sua lista.

— Fico grato de não encontrar um de meus traidores por aqui. — Seu tom parecia bem humorado, ainda que sua postura fosse a de um homem destruído.

Não saberiam dizer por quantos andares ele havia lutado pelo fogo, mas certamente não foram poucos; sua roupa estava inteira chamuscada e, antes bem alinhada, agora o tecido caía pelos ombros, combinando com seu cabelo, igualmente queimado e bagunçado. Sua pele parecia manchada com carvão e seu tapa-olho havia se perdido na caminhada, deixando à mostra sua cicatriz no lado direito da face.

— O que quer? — perguntou Belka, empurrando Poyo para trás de si. As intenções estavam muito claras ali e, sabendo que o capitão almofadinha gostava de conversa afiada, a imediata esperava ganhar algum tempo antes de ser atacada.

— Já desejei muitas coisas, mas todas foram me tiradas à força — disse ele, o olho semicerrado em uma expressão congelada no mais puro ódio. — Por ora, sua cabeça me é o suficiente.

A gata revirou os olhos.

— A troco de que? Por que não vai viver sua vida e nos deixa em paz? — Poyo quem falou, sentindo as mãos tremerem e o choro engatar em sua garganta, não compreendia o que aquele homem fazia ali e, tampouco as razões pelo qual ele insistia em persegui-los.

— Justiça.

E então atacou. Não a gata, mas sim a garotinha, desembainhando sua espada e atingindo diretamente uma das caudas de Belka, que cortou o ar em um estalo de chicote antes de cair no chão para protegê-la.

Um grito ficou preso na garganta de Poyo, que encarava a imediata atônita; Belka não mostrara sequer uma reação e parecia não se importar que uma de suas caudas já não fazia mais parte de seu corpo. Seus olhos encontravam-se semicerrados e a respiração ainda mais pesada, ainda que queimasse as narinas, as garras projetavam-se afiadas para a fora, assim como suas presas. Como naquela vez no East Blue, ela parecia uma mãe disposta a proteger sua prole.

— Finalmente terei a chance de lutar contra o Bakeneko! — O tom de Hanzo era arrogante, parecia certo da própria vitória, mas ninguém esperaria o contrário de alguém como ele.

Belka não conhecia o significado daquelas palavras e, mesmo que soubesse, não daria a mínima. Se fosse assim que ele desejava chamá-la, faria-o ter certeza que essas seriam as últimas palavras que sairiam de sua boca. E então o atacou.

A batalha poderia parecer injusta, sobretudo quando um dos lados preocupava-se não apenas em cuidar de si próprio, mas de uma criança indefesa e ferida, entretanto Belka nunca havia perdido uma luta. Preferia não lutar na maior parte das vezes por pura presunção, mas isso não a tornava menos cautelosa e até então, somente entrara em batalhas do qual sabia que seria vitoriosa e, por mais que seu oponente discordasse, essa não seria diferente de todas as outras.

Atacou-o sem pensar duas vezes, mirando na mão que havia lhe cortado anteriormente, porém não conseguiu acertá-lo dessa vez. A irritação passava por suas veias e não era apenas o fogo que esquentava seu corpo: fervilhava de ódio, uma vez que o desgraçado não apenas negava-se a atacá-la, como insistia em mirar suas investidas na sua capitã.

— Eu estou aqui, filho da puta! — avisou, antes de acertar-lhe o meio do rosto com a cauda que restava, lançando o corpo do homem em meio aos entulhos e ao fogo.

A casa de banho não deixara de cair nem mesmo por um momento, mas Hanzo pareceu notar a grandeza do fogo somente no momento em que levantara, buscando por sua espada que havia sido fincada na madeira durante a queda. Havia esquecido quem era o inimigo por um instante, assumia o erro, afinal havia se proposto a lutar primeiramente com o gato.

Enfrentaria a capitã mais tarde. Teria todo tempo do mundo para matá-la, depois de que terminasse o que havia começado.

— Resolveu lutar comigo? — a gata perguntou, mas sabia que ela apenas queria ganhar tempo.

Hanzo deixou sair um riso nasalado — aquela situação toda era absurda demais para não ver ao menos um pouco de graça — e então apertou a empunhadura da espada recuperada, sentindo o calor do couro em suas mãos. Avançou em direção a gata, cortando o ar algumas vezes antes de acertá-la de raspão no rosto, marcando-lhe a bochecha. Mas Belka não ganiu de dor; na verdade, ela sequer reagiu ao corte, imediatamente investindo outra vez contra o espadachim, que começou a se defender. Seus golpes eram rápidos demais para ele.

Porém, Hanzo não poderia perder, não para eles, não quando havia perdido tudo em nome da justiça.

A cada golpe recebido, ele devolvia outro na mesma intensidade, buscando encontrar uma abertura na defesa da gata, embora por outro lado uma parte de si já aceitara que não finalizaria aquela luta. Sua missão era ganhar tempo, afinal parecia ser a única forma de livrar a si próprio e também seus traidores de toda a bagunça que Kaze havia criado, entretanto seu orgulho não lhe permitia enxergar a situação com tamanha amplitude.

Foda-se Apricot, suprimia o pensamento, desviando das investidas animalescas do bakeneko. Internamente, sabia que precisava finalizar isso com as próprias mãos, como não teve coragem de fazer outrora. Precisava finalizar isso por si mesmo e por Lennard.

— Se acha um herói, não é mesmo? — Cada palavra dita por Belka vinha entre rosnados, não importando-se com a baba que escorria pelo queixo. Não assumiria, até porque não haveria ninguém para ouvi-la, mas naquele instante, queria matá-lo também. — O herói da pátria livrando-se do mal pela raiz. Como se nos matar fosse o bastante para trazer paz nessa sua vida de bosta.

Hanzo não respondeu, prosseguia atacando calado.

— Pois venho te informar, seu merda. Pode nos esquartejar, se quiser, ninguém vai lhe dar os parabéns por isso. — Retribuía os ataques, sorrindo de orelha a orelha, os olhos arregalados um para cada lado. — Sabe por quê? Sua vidinha é tão patética que seu próprio subordinado nos escolheu. Ele preferiu armar um plano para nos salvar a ficar do seu lado.

Dessa vez, o golpe de Hanzo mirou o pescoço da gatuna, que desviou por um triz, não recebendo o impacto, mas caindo diretamente no fogo. Ela logo se levantou, em fúria.

— ‘Tá putinho? — perguntou ela, ainda sorridente, secando a saliva de seus lábios com o punho. — Aproveita esse sentimento enquanto ele dura. Daqui a pouco, você não vai sentir mais porra nenhuma.

Mais uma vez, os dois avançaram, a cauda dura estalando no ar enquanto o som cortante da espada preenchia o ambiente. Haviam se passado poucos minutos, mas era possível observar claramente o cansaço em seus corpos, castigados pelo calor e pela fumaça. Completamente estática, por fim, Poyo assistia a briga com a mão sobre a boca, respirando entrecortada a cada investida que o espadachim dava no ar, sem nunca acertar Belka.

Ela venceria. Sabia disso bem no fundo de seu peito. Sabia porque, bem, Belka jamais perderia para alguém como ele. Mas então, quando o golpe de misericórdia fora dado e a espada de Hanzo voara longe para o meio das chamas, uma voz sussurrou em seu ouvido e, enfim, como se uma luz se apagasse, Poyo sabia que não havia mais esperança.

— Achou que iria fugir? — trateou divertido, a voz que Poyo sabia ser a de seu irmão mais velho.

A briga cessou. E, a fuga, também.

— Ora, não parem por mim, só estou de passagem — afirmou, sorrindo cínico ao passo que brincava com a faca no pescoço da irmãzinha, fazendo-a de refém. — Só não mate ele, eu gosto do meu cachorrinho. Além disso, seria muito difícil adestrar outro igual.

Belka engoliu em seco. Decerto não finalizaria Hanzo ou fugiria dali; não havia mais tempo. O fim da linha havia chegado e restava apenas uma escolha para a imediata: padecer ao lado de sua capitã.

≈≈≈

Uma onda de mau agouro tomava os gatos, que seguiam viagem em completo silêncio, assombrados pela enorme nuvem de fumaça que cobria a silhueta da ilha onde estavam anteriormente. Merin não estava capacitada para navegar, da mesma forma que Flint mal conseguia se manter em pé por muito tempo, mas mesmo assim estavam ambos acima da cabine, tomando o leme para o mais longe que pudessem, antes que Apricot chegasse para buscá-los.

— Não devemos ir tão longe assim… — disse Morgan, receoso e com o cenho franzido de preocupação. Bertruska concordou com a cabeça, fora a primeira a discordar do plano de Yun e, ainda agora, detestava a ideia de deixar suas duas companheiras sozinhas.

— Não, ainda estamos perto, consigo ver as chamas daqui — esclareceu Flint, também com as sobrancelhas juntas e os olhos apertados. Ele cuidava do leme, enquanto Merin lhe dava ordens, alheia ao que acontecia, talvez por conta de sua própria dor.

Estavam todos ali, defronte ao oceano, tentando futilmente enxergar o que acontecia por detrás da cortina negra que subia aos ares, mas não havia nada para ser visto. Mesmo Bertruska, que mirava o que restara do horizonte com a luneta, poderia enxergar algo, tampouco ter certeza de que as duas estavam bem. Por via de regra, estavam mortas — e não havia nada para ser feito, ao menos não com tantos feridos e Fionnula no barco.

— Elas não irão nos alcançar. Não mais — Bertruska soprou de repente em um tom amargo de aceitação.

Era xeque-mate, ela sabia disso. Mas por que era tão difícil de aceitar?

— ‘Que fazemos, então? — perguntou Fio a mulher, a cabeça tombando em confusão, afinal de contas, não poderia entender o que acontecia ali naquele instante; era apenas um bebê. — Alguém tem que voltar para buscar elas — completou com um sorriso confiante.

Nesse instante, Bertruska sentiu sua cabeça pesar e o corpo inteiro murchou em si mesmo. Perdida, olhou de soslaio para Flint, que comprimia os lábios, e então voltou-se à garotinha, sentindo vontade de vomitar ao ver seus olhinhos, tão brilhantes, agora metidos naquela merda toda. Não haviam palavras para respondê-la.

— Fio, o que acha de ir cuidar da Merin no meu consultório? — Morgan perguntou a garotinha, engolindo em seco — Preciso que seja minha enfermeira hoje, pode ser?

Os olhos da garotinha brilharam, mais do que qualquer coisa, ela adorava fazer parte dos planos. Era notável sua vontade de mostrar-se prestativa à tripulação e, então, aceitou sem pensar duas vezes.

— Você pode descer sozinha, Merin? — Morgan a olhou compadecido, porém a navegadora apenas sorriu pequeno, levantando-se e segurando a mão de Fionnula. Sabia o que seu morceguinho estava fazendo; estava poupando as duas da conversa que viria a seguir.

O silêncio se fez e, nesse ínterim, depois de avançarem mais mar a dentro, direcionaram-se à cozinha.

Tal qual em um dia corriqueiro, Flint aguardava o som da chaleira avisar que a água estava aquecida, enquanto Bertruska e Morgan encaravam as próprias mãos, cabisbaixos, esperando pelo café. A cozinha nunca havia parecido tão fria quanto naquele momento. Estavam habituados ao caos, as vozes constantes, as risadas infindáveis de Poyo e as reclamações de Belka; haviam se acostumado com o extraordinário dos dias em uma tripulação tão incomum e, sobretudo, aprenderam a apreciar a rotina como nunca antes.

Cada hora de cada dia, guardava uma memória singular e eterna. Algo que não poderiam esquecer e, tampouco, deixar para trás.

— O que faremos? — A pergunta, quase retórica, havia sido feita por Morgan, mas ninguém se deu ao trabalho de responder.

Todos sabiam a resposta, mas fechavam os olhos perante o óbvio, agir como tolos certamente seria menos doloroso. O café foi servido. Quente e amargo, porém com um incomum sabor de saudade.

— Daremos um jeito. Sempre damos, não? — O olho de Bertruska brilhava, segurando novamente o choro. Sentia que não poderia fraquejar naquele momento, afinal havia sido forte durante toda a vida, não era justo que ali restasse tão pouco de si mesma.

Ser forte era a única coisa que sabia ser, logo, se perdesse isso, o que iria restar?

E, mesmo assim…

Soluçou baixinho. Quem queria enganar?, pensou, segurando a xícara quente entre as mãos. Havia conquistado tudo que sempre desejou, mesmo que por pouquíssimo tempo, pudera viver a experiência de ter uma família ao seu lado e, ainda que essas palavras nunca fossem ditas em voz alta, o sentimento era recíproco por todos que compartilharam os dias na Carniça.

Não era justo. Nada em sua vida parecia seguir o caminho da justiça e, por mais que tentasse trilhar o caminho correto, sempre se deparava com o mesmo desejo sórdido que tanto queria abandonar: a vingança. Estava destinada a uma tortuosa e solitária vingança.

Mas, se retornasse ao caminho da vingança, aonde iria chegar? Poderia buscar — e, por que não, caçar —, cada um dos culpados pela sua dor, mas o que restaria depois? Haviam pessoas ao seu lado agora e, por mais que tentasse protegê-las, elas não precisavam de sua força. Os gatos nunca exigiram sua força, ou sequer cobraram por perfeição, eles apenas esperavam que ela estivesse ali.

Ao lado.

— Eu… — começou Flint, finalmente, colocando o pano de prato sobre a mesa.

Morgan e Bertruska automaticamente o olharam, cerrando os olhos.

— Nem fodendo — interrompeu o médico.

— Eu não pedi sua opinião — respirou, pesado.

— Nem fodendo. Preciso ser mais claro? — Morgan bateu os punhos sobre a bancada. — Acha certo dar uma de herói e a gente ficar só olhando? Ninguém aqui quer te ver morrer!

Bertruska trincou o maxilar, sabia que precisava falar algo, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Entendia Flint, isto é, se ele não tivesse falado, não seria ela a próxima a tomar à frente?

— Você não entenderia.

— Como não, porra? — Morgan quase cuspiu, enraivecido. — Você acha que eu não faria o impossível para resolver isso, se pudesse? Sou fraco, não um rato.

Morgan sentia a cabeça doer, embora tentasse manter a postura o mais firme o possível e não se permitisse chorar em frente aos companheiros. Ao mesmo tempo em que sentia-se o mais desesperado, parecia o único que enxergava com clareza o que estava prestes a acontecer; mais do que ninguém desejava que Belka e Poyo retornassem para casa, contudo não era justo que para isso mais um deles precisasse se sacrificar.

Era uma viagem sem volta. Não havia qualquer garantia de que elas pudessem retornar, mas isso não parecia assustar Flint nem mesmo por um segundo e, por mais que ele estivesse pronto para morrer, nenhum deles estava pronto para vê-lo partir.

Flint suspirou novamente. — Eu fiz uma promessa…

— E eu tenho um contrato! — interrompeu outra vez. — Serei o médico dessa tripulação e meu diagnóstico é o mesmo. Nem fodendo!

Os olhos ardiam, porém precisava ser firme.

— Essa tripulação já acabou. Foi ordem dela.

— Estamos aqui, não estamos? — Bertruska se pronunciou, pela primeira vez, batendo as mãos sobre o balcão. — Não ouse dizer que isso não é importante, homem!

O silêncio preencheu o ambiente novamente.

— Preciso de um cigarro.

— Fume aqui. Se decidiu se suicidar, então ao menos se despeça de nós de maneira decente!

A voz de Bertruska era amarga. Compreendia o sentimento de Flint, apenas não era capaz de aceitá-lo. Não depois de tudo que ele havia dito para ela.

Flint engoliu em seco, sentindo-se contra a parede. Mais do que ninguém, ele sabia que sua decisão era egoísta e, por ser ele quem precisava tomá-la, não havia outro que sentiria com mais intensidade as consequências. Não queria morrer. Não ainda. Mas como poderia continuar vivo sabendo que não fez o possível até o último instante?

Poderia chorar, pela primeira vez em anos sentia um bolo em sua garganta e os olhos arderem como o inferno. Em todas as vezes que se imaginou morrendo, em nenhuma delas imaginou que haveria alguém zelando por si e, agora, sob os olhares magoados de Morgan e Bertruska, não restava mais nada em seu coração do que o mais genuíno desejo de estar vivo. De sobreviver para mais um café e, por que não, para mais um cigarro.

Havia descoberto coisas boas demais a respeito de estar vivo, contudo não poderia encarar o amanhã sem a pessoa que o salvou. Poyo. Se não fosse por ela, nunca teria compreendido o quão doce a vida poderia ser.

— Merin precisa de alguém junto a ela, isso é um fato e não aceitaria ninguém além do Morgan. — Sinalizou com a mão, impedindo que o interrompesse. — Fio ainda é uma criança, ela merece uma família.

— E nós não precisamos? — perguntou Bertruska. Dessa vez, ela não conteve as lágrimas.

— Os laços que criamos… — Flint suspirou. — Vamos tê-los para sempre.

Então, com a mão livre, ofereceu a caixa de cigarros em direção ao médico, com um pequeno sorriso torto. Morgan soluçou baixinho, mas não negou.

— Preciso que continuem vivos, porque alguém de mim tem que lembrar. Alguém tem que lembrar de quem foram os gatos até o final.

Terminaram o café e fumaram o último cigarro. E então ele seguiu em direção a porta, as pernas, vacilando a cada passo. Mas, antes de partir, Flint permitiu-se deixar um sonoro soluço escapar e, egoísta, fez seu último pedido:

— Mais uma coisa — disse, de repente. — Por favor, não se esqueçam de mim.

Vilões ou não, pouco importava. A história era cheia de furos e contos malditos, sussurros mal contados e falsos heróis, logo pouco importava como ficariam conhecidos pelo mundo e, sobretudo, se levariam semanas para serem esquecidos pelos peixes grandes. O que havia se criado ali, jamais deixaria de existir. Sobre uma mesma carniça, partilhavam sonhos e nenhum deixaria aquela embarcação da mesma maneira que havia chegado.

Eles não esqueceriam, eram incapazes de esquecer.

≈≈≈

Flint não olhou para trás quando tomou o bote para seguir em direção a Shanchá. Havia dado sorte, se é que poderia chamar aquilo de sorte, pois carregavam consigo um último bote, preso a carniça e que, com a força de seus próprios braços o levaria ao encontro de Poyo e Belka. Morgan e Bertruska não ficaram para vê-lo partir — e nem poderiam, uma vez que o ímpeto era de impedi-lo —, então, quando caiu sobre as águas, estava sozinho como a muito tempo não ficara e, principalmente, sem qualquer arrependimento nas costas. Isto é, não é que deixá-los fosse uma escolha fácil, muito pelo contrário. Sentia, talvez pela primeira vez em sua vida, um aperto no peito tão intenso que mal conseguia controlar a própria respiração; poderia chorar e quem sabe gritar de frustração até que seus pulmões simplesmente falhassem, mas nada disso mudaria seu futuro e, acima disso, lágrimas não consertariam o destino. Havia abandonado muitas tripulações durante todos os anos em que esteve ao mar e certamente não lembrava do nome da metade dos capitães a quem serviu, afinal nada disso nunca lhe importou, entretanto, quando pensava no rostinho de Poyo e no quão assustada ela deveria estar, seu peito doía tanto que sentia vontade de vomitar. Anteriormente, servir bons pratos e dormir em uma rede velha faziam parte de sua rotina e não era de seu interesse quem estava disposto a comer de sua comida, apenas o fazia, pois precisava ser feito, sua sobrevivência dependia de cada receita que criava e dos muitos cigarros que fumava dia após dia, mas, agora…

Agora havia encontrado alguém a quem queria servir, bocas estas que não poderia deixar para trás mesmo que quisesse muito, afinal as memórias lhe traziam hesitação.

Lembrava de cada dia que viveu na carniça unicamente e guardava cada memória como um presente — mesmo as ruins. Pois, senão elas, o que levaria consigo para a próxima vida? Era um cozinheiro mediano, dono de uma personalidade igualmente média e, se falassem sobre beleza, certamente não teria seu nome citado, contudo havia aproveitado a grandiosidade da vida por mais tempo do que se considerava merecedor. Após deixar sua ilha natal, havia decidido parar de contar os dias — um antigo hábito —, pois estava livre e não havia motivos para contar sobre a vastidão da liberdade, contudo Poyo lhe trouxera outra razão para pensar em números. Contava as horas para que seus amigos acordassem, mesmo nas madrugadas mais frias e solitárias, sentia-se bem pois sabia que todos ao seu redor em breve levantariam e tomariam uma xícara de café consigo, enquanto discutiam entre si os planos para o dia que viria a seguir. Nunca pensaram em dominar o mundo, já que a vida era curta demais para pensar muito além do que viria na próxima manhã, mas saber que cozinharia por mais um dia era o suficiente, contando que continuasse cozinhando para eles.

Finalmente, um suspiro cansado escapou de seu peito. À sua frente, a ilha de Shanchá se desenhava cada vez mais próxima, engolida por uma nuvem de fumaça escura e chamas que escapavam como feixes pequenos de luz. Flint não saberia dizer quantas horas demoraria para chegar até lá, mas mesmo que seus braços caíssem no processo, continuaria a remar, cada vez mais longe de casa e mais próximo daquela que lhe permitiu o gosto da felicidade pela primeira vez. A garganta ardia e poucas lágrimas caíam sobre seu rosto, permitindo-se chorar baixinho, como um último e silencioso lamento, pois lhe parecia correto sofrer por aqueles que deixaria para trás.

Foram, afinal, oito horas de viagem até que chegasse ao porto, onde pudera enxergar a destruição da casa de banho e, mais do que isso, a sombra do gigantesco navio da Marinha ancorado próximo ao cais. Não havia sido rápido o bastante, concluiu, mas isso não importava: nunca imaginou que conseguiria alcançá-los, de toda forma. Desceu do bote e, caminhando a passos lentos, pôde enfim ver a magnitude de seus estragos; o prédio suntuoso que antes visitaram por pouco se mantinha de pé e, aos arredores, apenas fuligem e cinzas restavam.

Foi quando uma súbita onda de tranquilidade o tomou. Entre os destroços do antigo porto oeste — onde desembarcaram pela primeira vez —, percebeu que o navio dos cães permanecia intocado e que não havia nenhum deles presentes senão o capitão, alguns passos de distância de Hanzo, encarando-o com pesar. Ao menos eles não estavam em maus lençóis, pensou Flint, deixando um suspiro sair de seus pulmões. Esperava sinceramente que Yun resolvesse suas pendências antes que enlouquecesse na presença de Hanzo — mas isso não era um problema para agora.

Um pouco mais a frente, fora do navio, a imagem de Belka e Poyo não fugiu aos seus olhos, muito pelo contrário, fora a primeira coisa que havia procurado e ainda que seu corpo estivesse tomado pela amargura, nada havia o preparado para encontrá-las daquela maneira; presas pelo pescoço e mãos, amarradas a uma berlinda, assim como no dia que elas haviam o encontrado. Estavam indefesas e, pior do que isso, seu algoz aos poucos se aproximava.

— Estão livres para partir — disse Apricot a Hanzo, possivelmente com o mesmo sorriso jocoso de sempre, mas que Flint não poderia discernir por conta da distância. — Todos os civis serão transportados para a ilha mais próxima. Não há mais nada para ser feito aqui. Vão embora.

O silêncio se fez e, por um instante, Flint pensou que Hanzo subiria resignado ao próprio navio, partindo junto à Yun sem dizer mais uma palavra, não obstante depois de um longo minuto de crepitar, ele se virou para Apricot uma última vez e quebrou seu próprio silêncio.

— E as duas? — perguntou, apontando Poyo e Belka, ambas cabisbaixas. — O que farão com elas?

Apricot demorou a responder, divertindo-se com o olhar estarrecedor de Hanzo, que as encarava como se fossem a escória da sociedade. Foi só depois de um longo suspiro e dar de ombros que ele respondeu, pleno: — Sei lá. Forca, Impel Down… O que distrair melhor a população. Estávamos mesmo precisando de notícias chocantes e isso vai cair como uma luva. Agora, se me dão licença…

O marinheiro começou a se deslocar para o navio, mas foi interrompido.

— Se me permite dizer — Hanzo diz, pausadamente, como quem pede autorização para falar. Por sua vez, Apricot parou de andar. — Acredito que elas devessem morrer aqui e agora — explicou, de maneira calma e sucinta, fazendo com que Flint sentisse todos os pelos de seu corpo se arrepiarem. Não poderia estar ouvindo aquilo, não dele e muito menos sobre elas. Fincou as unhas no punho, segurando o arpão ainda mais firme.

— Isto é, — Hanzo continuou —, tenho certeza de que seria uma honra para as duas receber os holofotes pelas mortes que ocasionaram. Viveram nas sombras como ratos até agora. Com todo respeito, Apricot, mas é óbvio que as duas desejam uma morte grandiosa. Acham que merecem reconhecimento e…

— Hanzo. — Súpeto, Apricot o interrompeu, muito sério.

Um sonoro tapa foi desferido em seu rosto e, mais uma vez, o irritante sorriso voltava a face do homem.

— O que não é visto, não é lembrado — ele disse.

E, então, Flint não se conteve mais.

 

Uma risada longa se sobrepôs aos som das chamas e ainda gargalhando, o marinheiro limpou o sangue que escorria de seu rosto com uma das mãos: — Sabia que um dos gatinhos apareceria.

O arpão havia voado perfeitamente em direção a face de Apricot, contudo Flint não tivera a chance de arrancar um pedaço considerável do rosto do contra-almirante, pois o desgraçado havia segurado a flecha antes que pudesse atravessar sua cabeça.

Riu amargo, ao menos um olho era melhor do que nada. O erro havia sido seu, os peixes não costumam reagir.

— Esperava por Bertruska, acredito que meu chefinho ficaria feliz em receber sua cabeça — Apricot não parecia se importar com a dor, muito pelo contrário, sua mão permanecia cobrindo o ferimento em seu olho esquerdo, porém seu tom de voz tornava-se cada vez mais jocoso; ainda segurava o arpão em uma das mãos. — Mas não vou me importar de brincar um pouquinho.

Flint travou a mandíbula, o que faria agora? Dar um murro em Apricot e sair correndo certamente não era uma opção viável. Porém, manteve-se sério, evitando ao máximo o desejo de encarar Poyo e Belka; não poderia fazer isso. Ainda não.

— E então, quer sua arma ou vamos lutar igual homens? — provocou, oferecendo o arpão, o sorriso ainda maior em sua face.

Flint apenas levantou os punhos, tragando o cigarro que descansava no canto dos lábios. Estava pronto.

— Bom garoto — finalizou, devolvendo a arma aos peixes e avançando para lutar.

Apricot o atacou primeiro, como o esperado, e apenas o impacto no lado direito da face foi o suficiente para Flint passar a ouvir um irritante e ininterrupto chiado. Se não fossem os remédios e as costuras de Yun, aquele soco seria o suficiente para desmontá-lo como um boneco de pano, mas esse não foi o caso. Contra-atacou, lançando o contra-almirante com um chute em direção aos escombros.

— Ora, ora, alguém está de mal humor? — Levantou-se rindo.

Aquele era o joguinho de Apricot e, se já não tivesse experienciado inimigos tão irritantes quanto, talvez aquela provocação chinfrim entrasse em sua mente, mas deixaria o direito de irritar-se para os vivos — naquele instante, lutava pelos mortos.

Impediu um outro soco de atingir o meio de sua face e, com uma das pernas, conseguiu pela primeira vez derrubar, por alguns segundos, o contra-almirante diante de seus pés. Ele gemeu de dor. O chão permanecia sujo, manchado de cinzas, pedaços de madeiras e sangue, não apenas o de Apricot, mas o seu próprio; as costuras não durariam para sempre.

Afastou-se do inimigo, não era sábio continuar próximo, não quando seu corpo não permitia defender um ataque vindo por baixo; a cabeça doía e os olhos estavam nublados, mas isso não o impediu de cruzar o olhar por um breve instante com Yun. Ele não o olhava, porém a tensão era perceptível em seus ombros, talvez apenas não desejasse encarar o pior e, ao seu lado, Hanzo encarava o chão. Precisou segurar um pequeno riso, aquilo não era exatamente o que o cão tanto buscava? Tic-Tac. Os segundos corriam no relógio e em um instante a justiça seria feita.

Estava enlouquecendo. Seus olhos nublaram-se novamente e, quando percebeu, havia recebido outro soco na cara.

— FLINT! À sua esquerda!

Foi quando percebeu que o conceito de dor já não era algo que poderia assimilar. As luzes e sensações não faziam mais sentido em sua cabeça; tudo havia se apagado, com exceção da voz esganiçada de Poyo, que chorava seu nome e, entre ranhos e catarros, guiava-o para onde deveria desviar. Não tardou em confiar e seguiu sua voz, deslizando para a direita. Não fez questão de saber se ele o acertou ou não, apenas continuou investindo; ao som da voz de sua capitã, a dor, o medo e o arrependimento foram desaparecendo, sobrando a fúria que o fazia dar um golpe atrás do outro.

Ao vê-lo daquela forma, por outro lado, Apricot sentiu seu coração batucar ao receber outro chute certeiro em suas costelas; aquilo estava se tornando ainda mais divertido do que poderia imaginar, sobretudo agora que os direcionamentos estavam sendo dados por sua irmãzinha e, sem perder um deles, o cozinheiro contra-atacava perfeitamente, como se seus olhos não estivessem a milímetros de fecharem-se. Era um talento nato — desperdiçado nos confins do quinto mar. Tanto ódio, tanta vontade de se vingar… Seu peito parecia buzinar. Queria matá-lo, ali e agora, na frente de April para que ela soubesse que nunca havia existido a menor chance, porém…

Porém, era divertido demais para que desejasse parar.

Mais uma vez, derrubou-o no chão, dessa vez montando sobre seu corpo e socando-lhe a face. O cozinheiro sentia o peso de toda uma ilha sobre suas costas e, o cigarro que anteriormente fumava, havia se perdido no chão há alguns golpes. Os olhos pesavam e da boca escorria um pouco de sangue, era fato que estava em desvantagem, mas ao mesmo tempo era um pouco engraçado, afinal estavam lutando por mais de alguns poucos minutos e sentia que uma hora inteira havia se passado.

O relógio não estava a seu favor.

— Quer desistir? Posso lhe dar uma colher de chá — Apricot perguntou, debochado.

Ele sabia a resposta, mas não perderia a chance de debochar.

Poyo precisaria perdoá-lo, mas não havia deixado todas suas armas no cais da tarde do dia anterior. Ainda que soubesse o quão importante era para a capitã que seguissem sua última ordem, nem por um momento considerou deixar sua adaga naquele local; algo lhe dizia que precisaria dela, desde o instante que a recebeu pelas mãos de Morgan, e então a hora chegara.

Esfaqueou-o no estômago.

O sangue quente caiu sobre sua dólmã já suja e por um instante sentiu o gosto da redenção gorgolejando junto do sabor metalizado que jazia em sua garganta. Não venceria, não quando toda a frota de Apricot aguardava pelo final do combate, porém, se levasse-o junto consigo, ao menos seu sacrifício não seria em vão.

No entanto.

A resposta ao ferimento foi uma sonora risada. — Trapaceirinho…

Então, sentindo sua boca ressecar e uma sensação de choque passar por seu corpo, quando notou, o punho de Apricot havia atravessado seu tronco. As costuras não aguentaram mais.

— Também tenho meus truques — sussurrou, antes de permitir que seu corpo caísse ao chão.

Os olhos de Flint então passaram pela última vez por sua capitã e imediata e, antes que a luz deixasse sua vista, sorriu largo; permitindo que pela primeira e também última vez, compartilhassem uma sincera gargalhada.

Poyo devolvia o sorriso, ao contrário de Belka que por nenhum segundo deixou de encarar o chão. Todos morreriam, agora ou depois, mas sabiam que, enquanto contassem sua história, nada daquilo havia sido em vão.

≈≈≈

— Ei, você ouviu falar?

A transeunte encarou o feirante que lhe direcionara a palavra, curiosa.

— A respeito do quê? — perguntou.

Feliz por ter capturado sua atenção, as mãos do vendedor apontaram ativamente para o jornal, sua expressão marcada pelas sobrancelhas arqueadas e os lábios franzidos.

— O governo, estão matando crianças no cadafalso! — bradou, mexendo os braços em súpeto, fazendo com que os sons das folhas chamasse a atenção dos compradores que estavam ao lado.

Ao ouvir do feirante tal absurdo, a transeunte quase cuspiu a fruta que comia, arrancando o jornal de suas mãos: — Deixe-me ver isso!

A imagem foi posta diante de todos os curiosos que se agruparam ao redor da tenda de frutas; o movimento estava fraco naquele dia e, talvez por isso, uma possível fofoca seria o máximo de emoção que teriam por aquelas bandas. Na capa, uma criança sorria em direção a câmera — como se não houvesse uma grossa corda ao redor de seu pescoço — e ao lado, uma figura ainda menor encarava o horizonte com uma expressão fria, julgando todos que estavam embaixo. Era um gato, porém havia muito de humano em si. Era orgulhosa, autoritária e tirana; um monstro, mas, ainda assim, segurava firme a mão da garotinha, aguardando o momento final como as líderes que eram. Sobre elas, a manchete gritava:

“Terror dos Gatos Fantasmas Chega ao Fim”

— Esses eram os tais gatos fantasmas? — uma mulher gritou, horrorizada. Chamando atenção de outros que passavam por ali. — Isso é um absurdo, estão acusando crianças!

— Crianças ou não, continuam sendo piratas! — cuspiu outro homem.

Então, um riso seco deixou os lábios da transeunte, fazendo com que todos se calassem. Aproveitando a deixa, ela perguntou: — O que sabem sobre isso?

Foi quando eles pareceram notar seu chapéu e roupas, afastando-se rapidamente, com exceção do feirante que a chamou em primeira instância. Ele continuava firme como uma rocha.

— Você as conheceu? — perguntou, abrindo um sorriso nefasto em seus lábios. — Pieri, a Pierrô.

A capitã riu baixinho, empurrando o jornal contra o peito do vendedor.

— Elas eram piores do que imaginam — disse, sem mais delongas, arrancando um suspiro de desespero daqueles que ficaram.

Partiu batendo os pés, não só da feira, como da cidade, afinal a notícia já estava cravada em sua mente — e, por ali, também já sabiam seu nome. O enjôo de voltar ao mar lhe tomava o estômago, mas tinha de partir, pois sabia que era uma questão de tempo para que um qualquer a denunciasse.

No instante em que haviam separado-se em Woo Pululu, Pieri nem mesmo por um instante imaginou que os dias de seus aliados estavam contados — e, se soubesse antes, sua força seria o suficiente para salvá-los?

Não saberia responder — sentia-se impotente. Fraca.

Havia prometido lutar por Poyo e bastaram poucos instantes para que ela e sua tripulação deixassem de ser uma lenda e, por pouco tempo, ficassem marcados eternamente na história. A primeira criança a ser morta no cadafalso, pensou, sentindo um riso fúnebre deixar seus lábios.

— Espero que você esteja gostando do furdunço que deixou por aqui — riu consigo mesma, encarando a vastidão do oceano.

Estavam ancorados em uma ilha distante, guardando mantimentos pela próxima longa viagem que iriam trilhar e, sobretudo planejando os próximos passos que tomariam em direção ao futuro. Assim como os gatos, agora cada um de seus companheiros era reconhecido pela Marinha e o nome dos pierrôs deixou de ser uma incógnita e passava a ser procurado, sob gordas recompensas, pelas entidades do governo. Mas isso não a amedrontava, muito pelo contrário, no instante em que decidiu desbravar o oceano, Pieri sempre aguardou o momento em que colocaria seu nome na história.

Talvez Hanzo tivesse acelerado seus planos, mas isso já não importava mais. Precisava preocupar-se em viver, o mais intensamente o possível e permitir que cada um dos seus realizasse seus sonhos; tornaria-se grandiosa e, quando seus olhos já não mais conseguissem distinguir o horizonte de seu império, poderia lembrar com carinho de Poyo. Sua primeira aliada. Segurou seu chapéu com força, retirando-o da própria cabeça e, após um sôfrego grito, lançou-o ao mar.

Uma última homenagem aos gatos. Poucas lágrimas deixaram seus olhos.

Seu peito, por outro lado, enchia-se de orgulho, pois estava certa que, em seus últimos instantes, Poyo também não fraquejara.

Mas como poderia, afinal? Desejava estar o mais alto o possível, onde pudesse encontrar a mais bela das visões e, embaixo de si, veria diversos pescoços esticados, todos procurando o limite de sua grandeza.

E sob os olhares incrédulos dos abutres que aguardavam sua morte, viveu.


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Notas finais do capítulo

Em caso de curiosidade, disponibilizamos alguns conteúdos brutos da Prisão de Gato e que passaram por alguns mudanças com o decorrer da história!
Planejamos, no futuro, retornar com alguns epílogos com relação as demais tripulações. Contudo, isso ainda não é certo e não teremos uma data para isso. Se nos acompanhou até aqui, obrigado e até a próxima!

Fichas originais dos gatos: http://bit.ly/3hIFANR



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