No More Secrets: Terceira Temporada escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 8
Asa de morcego, olho de monstro, coração de Dipper.


Notas iniciais do capítulo

FELIZ ANIVERSÁRIO DE 5 ANOS DE NO MORE SECRETS!!!

Pois é, gente. Cinco fucking anos.
Isso é metade de uma década. Imagine ainda estar escrevendo a mesma história por todo esse tempo.

Ainda me lembro do momento exato em que eu decidi escrever o prólogo da primeira temporada e postar. Eu tinha 16 anos -- estranhamente a mesma idade que o Dipper tem agora, no final da jornada dele (ironia poética, eu acho) --, estava no ensino médio, assistindo uma aula, mas não conseguia tirar Gravity Falls da minha cabeça. O desenho ainda tava naquela época antes do Weirdmaggedon, com todo mundo teorizando, o episódio “Dipper & Mabel vs. O Futuro” tinha acabado de sair, e eu não conseguia parar de admirar a química que Stanford tinha com o Dipper. Foi aquele episódio em que o Ford pediu pro Dipper ficar com ele em Gravity Falls e ser seu aprendiz. E, de repente, eu comecei a fantasiar mesmo sobre isso se tornando real.

E se o Dipper ficasse mesmo morando com Ford? O que aconteceria dali em diante?

Por eu ser uma pessoa com leves problemas mentais, a minha cabeça logo já pulou pra um romance entre os dois (Eu era muito fanfiqueiro na época. Ainda sou, mas antes era mais). E logo eu tinha uma ideia incrível que eu precisava colocar no papel. No meio da aula mesmo, comecei a escrever os três primeiros capítulos no bloco de notas do celular.

Foi só depois de postar o terceiro capítulo que percebi que estava acumulando alguns leitores. E isso me impulsionou demais. Não só em terminar a temporada, mas expandir a história, seu universo, sua mitologia. Muita gente me falou na época que NMS era a história mais diferente que eles já tinham li numa fanfic, e essas palavras me emocionam até hoje toda vez em que eu lembro. E até hoje ainda sigo por estas palavras: sempre dou meu melhor para garantir que NMS seja uma experiência diferente e marcante.

E por isso, eu tenho que agradecer àqueles que ficaram: vocês.

Muito obrigado por não terem desistido da história. Muito obrigado por ainda acreditarem nesse projeto. Eu literalmente não seria o mesmo se não fosse pela atenção, pelo carinho e pelo reconhecimento.

Embora os tempos tenham mudado, muita gente tenha esquecido que NMS existia, alguns desistiram, outros provavelmente nunca vão encontrar a fic de novo porque o Spirit deletou minha conta onde tinha mais leitores... Nossa, quantos altos e baixos. Mas eu agradeço por tudo mesmo assim, até pelos leitores fantasmas e os que sumiram. NMS é com certeza um dos períodos mais marcantes da minha vida. Fez parte da minha formação. Agora eu sou um adulto que tem que manter meu emprego, e ainda assim continuo vendo essa fanfic como uma das minhas maiores responsabilidades.


Obrigado de verdade. E desculpem a demora pra postar. Não é fácil, entendem? Estou tentando recompensar vocês pela espera com esse capítulo especial. 16 MIL PALAVRAS! Isso era pra ser, tipo, 3 ou 4 capítulos separados, mas eu decidi juntar todos em um só e fazer uma mega postagem

Não vou falar mais para não estragar as surpresas que vêm por aí. Só digo que esse capítulo cumpre um avanço na narrativa e também acontece uma coisa que muitos de vocês queriam que acontecesse... cofcof Lemon cofcof

Enfim, recomendo que tenham sempre em mente os acontecimentos passados da série (estamos chegando ao clímax). Para quem não pode reler todas as temporadas, aqui eu deixo uma recapitulada básica do que ocorreu no capítulo anterior:

— Dipper e Tom invadem o Exílio para resgatar Bill;
— No Exílio eles conhecem uma facção de monstros. Os personagens mais relevantes são Bauer, o troll, e Narigudo, o tamanduá;
— Dipper vê como os Índigos são feitos (Milo perde a mãozinha, que vai parar no corpo de uma garota humana);
— Dipper reencontra Bill à beira da morte e revive ele com os seus poderes de Índigo;
— Em troca do favor, Dipper aceita entrar no plano da facção para desativar o sistema de segurança do Exílio;
— Ele e Tom sobem na área de comando (Dipper camuflado na capa de invisibilidade), vemos um pouco da relação comandante/escravo de Seth com Tom;
— Dipper entra na sala de controle para desativar o domo, lá o leitor de DNA o confunde com Time Baby, o que o leva a especular se Time Baby já foi alguma vez humano;
— Dipper descobre que Blendin Blendin era um aliado da Rebelião
— Dipper desativa o domo do Exílio, os monstros invadem a sala de controle, Tom atira Seth de uma janela, uma revolta começa no presídio;
— Blendin morre com um tiro, mas não antes de revelar a Dipper que Time Baby fechou todos os portais do tempo. Ou seja, ele não poderá mais alterar o passado nem o futuro desta vez. Dipper só terá uma chance de fazer as coisas darem certo;
— Dipper consegue invocar suas armas mágicas pela primeira vez (uma katana e um escudo), Time Baby aparece fazendo Bill de refém.

Boa leitura!



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— Apenas resolvi passar por aqui quando fui notificado sobre o disparo de um dos alarmes. Resolvi checar se as coisas andavam bem e encontrei essa bagunça. Fique tranquilo, ninguém pode nos ver nem nos ouvir sob este feitiço — disse Time Baby, sem nem tirar os olhos do alcance de Pines.

Toda a musculatura de Dipper se tensionava, preparada para receber o pior. A respiração engrossava; as pontas dos dedos se esfriaram mesmo ao redor do cabo flamejante da sua katana; e o seu ritmo cardíaco bateu o recorde de palpitações naquele segundo. Time Baby estava tranquilo. Muito tranquilo para o gosto dele...

Rearticulando as pernas como um gato arqueando para o bote, Dipper usou do fluxo que ainda saía da sua magia e explodiu na direção de Time Baby feito uma bola de canhão. “Eu consigo pegá-lo!” Corria tão rápido que Time Baby nem teve tempo de mudar o rosto para a função choque. “É só perfurá-lo direto no pescoço e isso tudo já acaba aqui!”

Mas, quando a ponta afiada da espada atravessou a traqueia do Governador, o corpo de Time Baby tremeluziu e, como se fosse um holograma ou névoa, desapareceu por um instante; Dipper passou direto por ele, não acertou nada e ainda tropeçou no ar, indo de cara ao chão.

Time Baby riu à cena, com o corpo espectral ainda tremulando, dando interferências na realidade.

— Você achou mesmo que eu iria vir em pessoa? Falo direto da minha base, meu corpo está à salvo, descansando no conforto do meu trono. Acho que a sua magia não chegou neste nível de artimanha, não é? — Ele se virou e abriu os braços. — Ainda estou com a magia que drenei de Gravity Falls. Resolvi usá-la para mandar uma mensagem. Mas não posso ficar muito tempo, senão irei gastar tudo. Como estou lhe sendo bonzinho, vou te dar mais uma chance por esta sua gracinha e poupar a vida de Cipher por ora. Acho que você precisa escutar o que eu tenho a dizer, pode ser do seu interesse.

— Ah, é?! Ouvi dizer que na última vez em que esteve aqui você dizimou com todos os prisioneiros num estalar de dedos. Se é tão poderoso assim por que não faz o mesmo agora? Por que não me mata?

— Porque assim eu não conseguiria o que eu queria. — Sorriu, mas, em seguida, revirou os olhos. — E porque vim por meio de projeção astral. Para provar que não vou brigar com você.

— Eu... eu não entendo. Se você não quer se vingar por eu ter atrapalhado os seus planos mudando o futuro, então o que quer de mim? Por que me manteve vivo? Por que levou Mabel e Ford para longe de mim?

— Eu não quero ter que arrancar o meu poder de você. Por isso eu te deixei sozinho lá no deserto. Gosto de acreditar que as pessoas merecem uma segunda chance, mesmo que a hipotética pessoa seja você. Queria que você vivesse e ficasse apto a me oferecer–não, digo... a me devolver o Poder.

— Claro! — Dipper zombou. — Porque você não fecharia todos os portais do tempo e nem destruiria todas as fitas métricas se não estivesse com medo de que eu fugisse de novo.

— Você precisa passar um tempo no meu mundo — justificou. — O processo é importante para que você consiga enxergar que eu tenho a razão.

Dipper riu, desacreditado. — Eu duvido muito que você consiga me convencer de que genocídio possa ser considerado ter razão.

— É tão engraçado —Time Baby debochou. — O jeito que você gosta de apontar o dedo e julgar a minha moral. Não era você o garoto que estava há uma década tentando esconder o relacionamento incestuoso com o seu tio?

As pernas de Dipper se arrepiaram de um jeito tenebroso que não faziam há anos. Seu lábio inferior tremeu junto com os seus joelhos, suas pernas viraram argila. Era a presença de um ataque de pânico, ameaçando penetrar nas redondezas da sua mente. “Então ele sabe.”

— E quando você sair dessa, Dipper? Hein? O que vai fazer em relação a isso? Acha que Ford e Mabel vão estar do seu lado? Que Ford vai assumir pro mundo um relacionamento com você, o próprio sobrinho menor de idade dele?! Acha que a sua sociedade irá vê-los como os heróis?! Sua moralidade é uma piada, garoto! — Time Baby se aproximou de Dipper, que não conseguia se mexer, com as pernas derretendo de fraqueza e medo. — Você acha que eu não entendo o porquê de você ter se unido a esta confusão dos monstros do Mindscape? Você não liga para eles. Nunca ligou para os outros, não liga pra ninguém. Essa é só mais uma das suas tentativas de se convencer de que você não é um pervertido, um nojento egoísta, sexualmente frustrado! De tentar corrigir pela décima vez as ações das quais se arrependeu, de querer que sua vida e a dos outros seja exatamente do jeito que você deseja, e mesmo assim acabar falhando como um idiota. Mas nada disso vai mudar o passado, Dipper. Não só porque você consegue ser pior do que sua irmã em assumir as consequências dos próprios atos, mas porque nunca vai mudar a aberração que você é!

O punho descontrolado de Dipper readquiriu força, soltou a katana e cortou o vento ao seu lado, tentando desferir um soco no olho direito de Time Baby. A mão dele atravessou, frustrada, o holograma do oponente, que permaneceu intacto. Em seguida, mais outra tentativa de um soco. E mais outra. Dipper desferia golpes no vazio enquanto Time Baby gargalhava à vontade. Após um minuto, Dipper deixou os braços exaustos descansarem, ofegando forte e recusando-se a encarar a face de deboche do oponente.

— Eu ligo. Eu ligo muito — rosnou entredentes. — Eu amo eles. Todos eles. Ford, Mabel, Bill e até mesmo Tom e talvez alguns dos monstros que conheci por aqui. Amo o suficiente para ver que o que você faz com todos é uma covardia. Não se pode pegar os outros e maltratá-los só por parecerem perigosos. Não se pode castigar alguém que não errou sendo o que é. É diferente agora – eu os entendo.

— E você também vai me entender, Dipper. Só está muito cedo para que você enxergue isso ainda — concluiu Time Baby, com o tom de volta ao educado e blasé.

— E se eu não entender? Vai fazer o quê? Matar o Ford e a Mabel, né? Poxa, é muita gentileza e compreensão da sua parte.

— Exatamente. E não só eles como também toda a vida no Multiverso vai deixar de existir. Você não quer ter mais essa responsabilidade nas suas costas.

— Você está com medo de que eu ganhe de você. Meus poderes vêm evoluindo muito nos últimos dias pro seu gosto — Dipper raciocinava de onde realmente vinha aquela aversão de Time Baby a ele. — Veja o que fiz agora. — Gesticulou para se referir ao cenário ao seu redor, a fortaleza de Time Baby totalmente destruída por causa dele. — Acho que são os privilégios de tê-lo roubado da criatura mais poderosa do universo e ainda por cima ser um Índigo, né?

Time Baby soprou um riso de escárnio. — Nós dois pensamos mais igual do que você imagina. Nós veremos isso, vamos nos encontrar de novo...

— Por que pensaríamos igual? Será porque você também é um humano como eu? — Silêncio. Dipper se deu um tapinha mental de orgulho pela coragem. Sabia que aquela revelação iria desarmar ou no mínimo alfinetar o oponente. — É por isso que você odeia a minha dimensão? É por isso que você quer destruir a Terra? O mundo de lá também não deve ter sido tão gentil com você como não foi comigo, não é?

— Talvez. Talvez não — disfarçou Time Baby, fingindo indiferença. — Veremos.

— Onde você escondeu Ford e Mabel? — pressionou Pines.

— E que graça teria nisso? É importante que você descubra essa parte sozinho.

— Eu vou te encontrar. — Os dentes chegaram a ranger.

— Linda determinação. Está no caminho certo para se tornar um excelente mestre por aqui.

— Eu não sou nada igual a você — reafirmou Pines em ultimato.

Time Baby apenas sorriu onisciente, divertindo-se com aquela frase.

Que bom — respondeu, parecendo estar falando estranhamente com honestidade. E, tão rápido o quanto surgiu, o espectro de Time Baby dissipou-se. No mesmo lugar, agora jazia apenas a tela rachada do grande computador, refletindo para Dipper a sua própria face determinada onde antes esteve a intimidadora do outro.

As coisas retornaram às suas velocidades normais assim que Bebê sumiu. E o pandemônio havia reiniciado! A cacofonia de berros, insultos, urros de socorro, passos e tiros continuava ao seu entorno como se nenhum tempo tivesse passado. Do lado dele, o corpo desmaiado de Bill que Time Baby segurava caiu solto no chão. Só assim, o empenho total de Dipper retornou. Correu para socorrê-lo, colocando a cabeça de Bill em cima dos seus joelhos dobrados. Dipper levantou o escudo, preso no braço esquerdo, para proteger os dois das potenciais balas perdidas que poderiam surgir.

— Bill! — Dipper suplicou, dando leves tapinhas na bochecha de Cipher.

— Que foi? — Bill perguntou, acordando espantado.

— Precisamos ir para um lugar seguro!

Assim que viu uma rota de fuga perto da saída da sala, Dipper avançou, mantendo Bill de pé e próximo ao seu corpo, ambos sob a proteção do escudo e da capa de invisibilidade, que permitia Dipper passar por quase todos os soldados, despercebido à grande maioria da confusão. Andaram até o lugar onde costumava ficar a porta há uns segundos. Já no corredor, os ataques vinham de ambos os lados, direto e esquerdo. Dipper usou do seu Poder para afiar seus reflexos e lançou a katana na direção dos artilheiros. Com o mesmo funcionamento de um bumerangue, a espada passou em volta dos soldados e, ao rodopiar, sua lâmina separou seus torsos das suas pernas. O grupo de artilheiros foi cortado ao meio, cessando boa quantidade dos disparos, e a katana voltou perfeita para a mão de Dipper.

Ele e Bill reencontram Tom dois metros mais adiante, ainda sendo arrastado pelos soldados com a boleadeira. Tom debatia-se em meio aos latidos de aviso e sopros de fogo, que surtiam de pouco a nenhum resultado. Ainda sob a inspiração do Poder, Dipper atirou sua espada novamente. A lâmina zapeou perfeita entre o alcance dos guardas e o pé do capturado, rasgando a corda da boleadeira que prendia Lucitor. Percebendo estar livre, Tom deu um pulo que rebateu na parede ao lado, fugindo agachado por debaixo da linha de fogo, feroz como um bicho.

Quando notou que Tom arrojava-se na sua direção, já havia sido tarde demais. Tom pulou contra o escudo de Dipper, desequilibrando-o com Bill até atingirem o painel de vidro do corredor. Com a força do ataque de Lucitor, que agora, embebido da adrenalina que sua magia lhe dava, parecia ter o dobro do peso, a janela se quebrou e os três despencaram para o pátio do Exílio, a quase dez metros de altura.

O berro de susto de Dipper ficou entalado na garganta; o de Bill foi ofuscado pelo rugido bestial dado por Tom assim que asas pontudas começaram a brotar nas suas costas, crescendo de tamanho e se debatendo para rasgar a blusa de Tom e se libertarem. Os braços do demônio também haviam crescido de tamanho e haviam se fechado ao redor de Bill e Dipper, protegendo a dupla que despencava ao ar livre. Tom parecia se deixar levar cada vez mais pela sua forma demoníaca, com as presas despontando, os olhos felinos, pelos grossos saindo de todas as partes, e uma respiração que mais parecia o rosnado de um jaguar.

As asas secretas de Tom só foram se abrir totalmente depois de caírem uns bons cinco metros, com estilhaços e lasquinhas de vidro nevando em câmera lenta de todos os lados. O bater violento das asas levantou a poeira do lote descampado, que tinha o solo se aproximando cada vez mais. Por alguns segundos, Bill e Dipper planaram nos braços de Tom e, nos próximos, deram em cheio com a terra. O impacto colossal de Tom, possuído pelo seu modo selvagem, abriu uma pequena cratera no espaço onde aterrissaram.

Deram uma rasteira longa pelo pátio, freando a trajetória na medida em que o chão ficava mais lamacento e amortecedor. Bill e Dipper saíram sem um triz graças a Tom, que, infelizmente, não se poderia dizer o mesmo. A queda havia claramente o machucado, já que se contorcia de dor, arfando. Com o corpo em espasmos, Thomas começava a voltar à sua forma natural, mas continuava a estalar o seu dedo, tentando invocar sua magia. Bill e Dipper saíram de cima dele automaticamente. Os arranhões de Tom pareciam aumentar de tamanho no que seu corpo desinflava para se adaptar a sua anatomia normal, virando cortes longos, profundos e mais preocupantes.

— Tom, pare de tentar continuar usando sua magia. Está fraco! — aconselhou Dipper, sem saber mais o que fazer.

— Eu... não estou... fazendo magia. — Dito isso, colocou o polegar e o indicador dentro da boca e assobiou o mais alto que podia. O som repercutiu pelas paredes de pedra encurvada do domo desativado.

Lá de cima, uma revoada de pássaros pretos se reunia. Não demorou muito até que o rebanho já parecesse um enxame de abelhas, tamanha a quantidade de aves e sua densidade, que chegava a tampar o sol, projetando uma sombra imensa dentro do presídio. Foi só quando desceram, mais próximos do trio, que Dipper percebeu que aqueles não eram pássaros.

“Morcegos!”

Os morcegos de Tom se reuniram em volta deles como uma colcha flutuante. O farfalhar de asas incômodo em seus ouvidos. Tom fez um gesto para que Dipper e Bill subissem na plataforma de morcegos. — Eles vão nos levar de volta — explicou Tom, a voz lânguida e arrastada, enquanto debruçava-se nas costas de milhões de morcegos. Bill e Dipper o ajudavam como podiam.

Ao estalar de dedos de Tom, todo o enxame retomou voo e saiu pelo buraco da cúpula desligada. Dipper se sentiu dentro de Aladin, carregado por um tapete mágico. Já no lado de fora, alguns monstros alados fugiam dos limites do Exílio, também ajudando alguns monstros terrestres, levando-os nas costas. Outros corriam deserto adentro, sem medo. Ambos gritavam e emitiam uivos delirantes, comemorando sua liberdade.

Enquanto sobrevoavam o deserto, o edifício da prisão e o seu caos ficaram para trás, e uma duna de areia no horizonte ficava cada vez maior e mais perto. A colcha de morcegos desacelerou quando teve que passar perto do chão de novo, o que deu tempo para que os passageiros vissem um dos seus recém-aliados passando por perto, observando preocupado, a metros do Exílio, a bagunça: Narigudo.

— Narigudo! — Thomas chamou. O grito chegou às orelhas do passante, e a criaturinha tamanduá levantou sua cabecinha curiosa para eles. — Estamos indo para um lugar seguro! Junte todos os monstros que precisarem de abrigo! — Gesticulou para o morcego mais próximo, que obedientemente desceu do restante da nuvem até se acomodar no ombro de Narigudo lá embaixo. — O morcego vai levar vocês até uma carruagem escondida aqui perto. Depois que reunir todos nela, os cavalos te levarão até o esconderijo da Resistência!

O monstrinho assentiu e emitiu um chilro alto e contente de quem tinha compreendido a mensagem. Tomas deu o dedão em positivo em despedida, e os morcegos retomaram o ritmo, sobrevoando o deserto à toda velocidade. Lucitor suspirou de cansaço e desmontou nas costas dos morcegos, seu corpo implorando por trégua.

— Dipper — ele gemeu.

Dipper se aproximou para socorrer.

— O que foi? Está doendo? Precisa de ajuda?

No meio da frase, Tom puxou Dipper para um abraço apertado. Primeiro, Dipper estranhou, sem saber como reagir. Seguidamente, o seu tutor começou a rir. Uma risada orgulhosa e honesta que ninguém nunca havia dado para ele antes. Tom apertou o pupilo com mais força, dando-lhe tapinhas confiantes na coluna.

— Parabéns! Você conseguiu! Invocou a sua arma mágica! Duas! — Tom sacudia Dipper, só faltando piruetar com exultação. O menino nunca o havia visto tão alegre daquele jeito. — Você tem duas armas dentro de você! Duas, Dipper! Meu aluno! Uau!

Dipper riu, na indulgência feliz do outro. — Eu não teria conseguido se não fosse pelo melhor professor de magia que já tive!

Tom retribuiu com um sorriso de “obrigado” e, simples assim, desmontou-se de volta na tapeçaria de morcegos. Em menos de um minuto, ele já começara a roncar.

“Tadinho.”

Não foi muito para que todo o pandemônio e revolta sumisse, e a ansiedade e o medo fossem junto. O trio agora planava em paz em meio às dunas. Uma brisa acariciava os seus rostos suados e ainda pulsando quentes com a adrenalina. O clima seco e árido, um bálsamo para eles em comparação ao fétido e inóspito do Exílio.

Pines sentiu os dedos magros e delicados de Bill se fecharem em volta da sua mão, um lembrete de que ele ainda estava ali. Por mais que o Exílio já estivesse a provável um quilômetro de distância, a cabeça de Dipper ainda parecia estar lá, fazendo força para que sua garganta engolisse os intragáveis acontecimentos nos quais tinha acabado de passar. Olhou para o seu lado e convidou a expressão companheira de Cipher a entrar no seu coração.

— Estamos bem — Bill certificou, como se tivesse acabado de ler os pensamentos do menino.

“Como ele sabia o que eu estava pensando? Será que ele ainda tem os poderes? É mais um dos seus truques?” Quando percebeu o que pensava, Dipper fez questão de se corrigir: “Pare já de se questionar sobre tudo, Dipper! Você está bem. Está vivo. Bill está em segurança. Isso é bom. Aprenda a estar bem.”

A verdade era que, para Dipper, era difícil de aceitar até mesmo que a única razão para Bill saber tão bem o que se passava na sua cabeça era porque Bill o conhecia demais. Porque sabia no fundo que Bill lhe amava demais. O mesmo tanto quanto amava Ford, tanto Bill quanto Dipper. O tanto que aquele sentimento era real entre os dois lhe assustava. Aquela intimidade palpável na qual ele nunca exatamente teve anteriormente o assustava. Afinal, havia sido praticamente ontem quando Dipper ainda achava que Bill era um vilão inescapável, uma ameaça pronta para acabar com sua vida, sedenta pelo seu sangue.

Mas o encontro que acabara de ter com Time Baby deveria ter aniquilado todas aquelas dúvidas de vez. O manipulador sádico e terrível que Dipper vinha enfrentando todo aquele tempo não havia sido Bill.

Mesmo assim, Dipper havia passado uma década e meia desconfiado de tudo e de todos. Não esperaria que todos os seus traumas de confiança se curassem de uma vez só naquela tarde.

— Eu sei. Que bom que estamos — respondeu Dipper, retirando sua mão da de Bill e esperando que ele entendesse o seu lado. Pelo menos o confronto que tivera com Time Baby serviu para que Dipper repasse nessas questões sob uma nova ótica. Sabia que escutar seu coração deveria ser igualmente importante na sua vida, mas... ele tinha acabado de sair de um dos dias mais cansativos da sua vida.

Então, acomodou-se ao lado de Tom, deitou na plataforma de morcegos e tentou também tirar um cochilo.

Se tinha uma hora em que poderia enfrentar os seus sentimentos por Bill, essa hora seria depois de um bom descanso.

***

Pela primeira vez em muitos anos na história do Mindscape (pelo menos de acordo com Tom), o sol desceu e o dia virou noite. “Provavelmente um recado simbólico que Time Baby está dando à população: de que ele reconhece e se apieda pela ‘triste’ perda de milhares de soldados ‘maravilhosos’, que foram assassinados pelos ‘terroristas’ dos monstros”, especulara Tom, com o seu ar rotineiramente crítico.

O resto da trajetória de volta havia sido muda. Todos estavam exaustos. Tom havia ido direto para o seu quarto sem dizer uma palavra assim que botaram o pé de novo na caverna. Como Bill já não tomava banho há dias, a primeira coisa que Dipper decidiu fazer foi preparar um banho termal nas crateras em que Tom havia lhe levado.

Depois de um tempo explorando o que mais podia fazer com sua magia, Dipper conseguiu transformar sua mão num emissor de calor até a pele ficar branca e incandescente de tão inflamável, assim como fazia o mentor. Ajoelhado na borda de fora e afundando a mão enfeitiçada em um dos ofurôs, Dipper foi capaz de aquecer um pouco a água.

Enquanto assistia as bolhas de fervura se encontrarem uma a uma no topo da banheira, sua mente viajou em mais diversas situações, pensamentos e atitudes. Era impossível não pensar sobre os aspectos negativos da sua personalidade quando tivera uma conversa daquelas com Time Baby mais cedo. Situações estas nas quais Dipper tentava afogar, mas sabia ser inútil porque as situações já tinham aprendido a nadar àquela altura. E lá estavam elas agora mais uma vez, nadando de volta à superfície da mente de Dipper, como sempre faziam:

Amar Stanford é certo ou errado?

Se é certo, então por que a sociedade trata como se fosse tão errado?

E se é tão errado, então como é capaz de Dipper sentir tanto uma coisa dessas?

“Sou uma pessoa louca por estar tentando racionalizar uma situação como essa?”, pensava. “Sou realmente merecedor de carinho? De moral? De amor?”

Um “nojento egoísta”. Um “sexualmente frustrado”. Uma “aberração”.

“Sou mesmo? Tão sem coração assim?”

Talvez ele seria, se não fosse pelo fato de que não se escolhe quem se ama.

Shakespeare não poderia definir melhor a situação: Ser ou não ser? Eis a questão.

— Ai! — A dor puxou Dipper para fora do seu pensamento vicioso. Sua mão havia se queimado na água. Distraíra-se tanto que “esquecera o Poder ligado”. Abanou a mão no ar, procurando aliviar a força da queimadura.

— Tá tudo bem? — Bill Cipher atalhou.

Dipper se virou para vê-lo. Bill apareceu usando a única cueca que Dipper tinha para lhe emprestar: a sua; o elástico pendia frouxo da cintura bem definida de Cipher, revelando um pedaço do quadril, seus fios louros traçando um caminho do seu umbigo até sua virilha. Automaticamente, Dipper tentou disfarçar antes que o outro percebesse que ele já estava secando-o.

— Tá, sim. Tá tudo ótimo. Só deixei a temperatura passar do ponto um pouco e acabei me queimando. Nada grave.

Bill continuava estudando Dipper afinco, demorando-se em cada músculo do rosto, em cada vinco ou leve tremor.

— Qual o problema? — perguntou Dipper, inocente.

— Nenhum — aquietou Bill, passando por Dipper e descendo para dentro da banheira logo após. Assim que seu corpo mergulhou na água morna, todos os seus tendões e nós nas juntas se desprenderam. Praticamente contra sua vontade, Cipher esboçou o sorriso mais prazeroso e relaxado que Dipper já havia visto-o fazer. — Como eu senti falta disssss... — A voz de Bill se derretera e, bem no finalzinho da frase, finalmente se desmanchou de deleite, para nunca mais encontrar o seu ponto final. — Parece que faz um milhão de anos que não sinto isso.

— Sou tão bom assim em preparar um banho?

— Em comparação ao chiqueiro em que eu dormia no Exílio? Está divino. E não é só a água, mas essa sensação. De alívio, de falta de responsabilidade. De toda essa... liberdade. — Falou a última palavra com gosto, como se ela nos seus lábios sempre se transformasse num pedaço de chocolate caro. Um que Cipher aproveitava muito bem cada pedacinho, cada mastigada em cima de cada sílaba.

Dipper permaneceu um segundo a mais travado na mesma posição, sem saber o que faria com os próprios pés. Por fim, dirigiu-se a uma das dobras da caverna que dava para ser usada de assento e acomodou-se, esperando Bill terminar o banho.

Assim que reparou, Cipher encarou Mason com um pouco de decepção.

— Você não vem tomar banho? Está tão imundo quanto eu.

— Já vou.

— É sério, Pinheirinho. Eu te amo, mas você também tem que admitir estar bem fedidinho.

O som pareceu sumir da caverna.

Encararam-se num pânico silencioso. Tanto que Dipper chegou a sentir os seus músculos da mandíbula e sobrancelha já ficando cansados de terem que sustentar sua expressão de choque por mais tempo que o devido.

— Você ainda está brincando comigo? Sim ou não? — A pergunta que Mason fizera a Bill, embora direto ao ponto, tinha sido paciente e não provocativa. Era necessário perguntar aquilo.

— Você não acreditaria se eu te dissesse que te amo todos os dias? — perguntou Bill de volta; tom inocente, mas ligeiramente contrariado.

Pines persistiu no silêncio.

— Eu era tão malvado assim com você no passado, né? — assumiu Bill, mais para si do que para Dipper, como se finalmente fosse capaz de reparar em algo óbvio no qual nunca pôde entender antes. — Para chegar ao ponto de fazer uma pessoa duvidar do meu “eu te amo”, acho que realmente preciso me melhorar como humano.

Dipper quis assentir a cabeça e concordar, mas o medo de dar a razão a Charlie falava mais alto.

— Posso começar me desculpando com você? — Cipher deu continuidade.

Quando percebeu que Bill já estava a ponto de sair da água para ir até ele, Dipper baixou a guarda e caminhou até o ofurô. — Não precisa. Eu entro com você. — Tirou a camiseta, a sandália gladiadora, e ficou só com o short de couro que Tom havia dado.

Os dois relaxaram por volta de três minutos inteiros sem conversa, a três pés de distância um do outro. Com a cabeça deitada na borda da pedra, Dipper focalizava seu olhar no pisca-pisca dos morcegos lá em cima, camuflados no ninho do teto. O vislumbre daquelas criaturas só conseguia fazê-lo lembrar mais de seus problemas: Dipper chegou a simpatizar com aqueles bichinhos. De modo quase espiritual, eles tinham muito em comum. Ambos eram animais que só saíam da sua caverna quando para atacar ou sobreviver, mas sempre retornando para aquela mesma escuridão ao final do dia. “Talvez seja a hora para começar a sair um pouco da minha caverna”, cogitou Dipper, de coração.

— Dipper...

— Oi?

— Me desculpa.

Dipper se remexeu embaixo d’água. Tinha que admitir que o pedido de desculpas agitara um pouco com o seu emocional. Mason teve uma pequena parcela da culpa desabitando seu peito. Não queria brigar com Bill, e não ia mais.

— Muito obrigado, Bill. De verdade.

Mais silêncio.

— Tenho que me desculpar também — prosseguiu Pines.

— Pelo...?

— Por estar agindo assim ainda.

— Normal.

— Você já pensou no que será de nós quando isso tudo acabar? Aliás, já ao menos pensou no que nós deveríamos ser exatamente agora?

— Acha que eu não gosto de você o suficiente para ainda querer ter alguma coisa contigo? Porque eu quero. Esperei a minha vida inteira pra finalmente ser rejeitado das obrigações com Time Baby. Agora eu tenho permissão para falar o que realmente quero e quando eu quiser. Sem mais segredos, sem mais joguinhos, e sem mistérios. Estou oficialmente lavando as minhas mãos dessa responsabilidade. Pra quê perder meu tempo sendo desonesto? Não tenho mais motivo para esconder o que sinto. O que eu quero agora é você, Dipper. Só. Eu te amo, e é isso. Lide.

— Acho que estamos oficialmente de volta à estaca zero que começamos dez anos atrás — sussurrou Pines, cruzando os braços.

— O quê? Não acho. Muito pelo contrário, estamos tendo uma chance única de recomeçar. — Enquanto dizia, Bill ia se aproximando de Dipper.

— Está tentando dizer que está satisfeito com o jeito que a carroça anda? Você voltou a ser um mero humano agora. Não se sente mal de... ter que provavelmente ficar vivendo assim pelo restante da sua vida?

Bill deu de ombros. — Poder era o que Time Baby queria, não eu. O que eu queria era viver na Terra, viver um romance, esse tipo de coisa. Na verdade, acho que nunca estive tão satisfeito com a minha situação até agora, mesmo com todas as circunstâncias. — Ele admirou a própria palma da sua mão e esboçou um frágil e satisfeito sorriso. — Agora sou nada mais do que a única coisa que eu sempre quis ser. Humano.

Reergueu o rosto para Dipper.

Os dois sorriram bobos um para o outro. Dipper não pôde evitar. Ver seu único amigo de infância de modo tão feliz e satisfeito quanto aquele fazia-lhe igualmente contente.

— Sempre achei que essa coisa fizesse mais mal do que bem, mesmo. Quero dizer... até agora. — Bill secou Dipper enquanto dizia. Desejo. Orgulho. Fascínio. Tudo e nada ao mesmo tempo no seu olhar. — Pode ficar com isso aí. Vi parte do show que deu no Exílio. Você foi a pessoa que eu mais vi conseguir usar magia pelo bem até hoje. E olha que eu tenho mais de um trilhão de anos. Se existisse uma seleção para ver se alguém merecesse ter isso, você estaria no topo da lista.

— Obrigado. Sério.

Passou-se mais um tempo e Bill deu uma nova investida:

— Ninguém nunca te disse que você se preocupa demais?

— Acabei de falar obrigado.

— E mesmo assim continua tenso. Está todo contraído mesmo estando dentro de um ofurô. Você quase não olha pra mim quando conversa. E sua cabeça sempre parece estar em outro lugar.

— E o que você sugere que eu faça, Bill? Me preocupar é a única coisa que eu posso fazer agora. Posso ter te resgatado, mas ainda não faço ideia de como ajudar Mabel e Ford — retrucou Pines.

— A “única coisa” que você pode fazer agora é se preocupar? Sério? Poderia pelo menos se permitir aproveitar um banho quente. Muitas pessoas não estão tendo esse luxo por aqui, sabia?

Dipper suspirou.

— Sei que estou agindo na defensiva. Tom já vem tentando me mostrar isso. Não posso ficar me lamentando sem parar pelo que aconteceu. Só posso focar em como poderia melhorar a situação.

Bill passou mais um tempo encarando o garoto. Dipper esfregava seus braços por entre as pernas, ligeiramente vermelho nas bochechas e nariz enquanto o olhar se perdia nas bolhas de água que se acumulavam.

— Não acho que seja exatamente esse o caso — contrariou Bill.

Dipper encarou ele de novo. — Do que está falando?

— Bem, conhecendo você, eu diria que você já se acostumou a fazer do seu desconforto o seu normal. Você nunca vive no presente, precisa relaxar — Charlie explicou naquele tom que Dipper mais conseguia identificar nele: sugestivo.

— O que exatamente você está tentando dizer, Bill? — perguntou, já arqueando uma sobrancelha e sentindo o rosto pegar fogo de tão corado.

— Ai, você sabe o que eu quero dizer, Dipper! Qual foi a última vez em que você fez... sabe? — Bill Cipher fez um gesto obsceno com as mãos debaixo d’água para ilustrar o que dizia. Dipper Pines teve que segurar o riso de constrangimento e nervosismo.

— Está me perguntando da última vez que gozei?

Bill retraiu o rosto, pego desprevenido com o modo chulo em que Dipper resumira o que tentara dizer com mais sutileza. — Isso. Qual foi a última vez em que transou com alguém?

— Foi com você. Na linha temporal anterior.

Silêncio.

Dipper soltou o ar que esteve segurando desde o início da conversa; Bill teve que engolir um nó na garganta.

— Você e aquele garoto, o Wirt, não chegaram a...?

— Não. O Wirt era virgem. E eu tentava respeitar ao máximo isso. Amava ele, pra mim não era nenhum problema. Pelo menos, não deveria ser mais, agora que terminamos.

Mais silêncio. Bill ficou cabisbaixo, como se tivesse acabado de reparar em algo novo.

— Me desculpa ter feito o relacionamento entre vocês dois acabar.

Dipper sacudiu a cabeça.

— Não foi culpa sua. Time Baby estava usando e corrompendo o corpo de Wirt para nos prejudicar. Além do mais, ninguém “fez” meu relacionamento acabar, você e o Ford me deram uma escolha. Eu escolhi o que era certo. Já fazia um tempo em que eu vinha notando que algo entre mim e Wirt não funcionaria. Eu não estaria feliz. Talvez eu já não estivesse feliz.

— Por quê?

Dipper suspirou. Estava mesmo abrindo aquela porta.

— Não sou alguém normal, nunca fui. E eu estava tentando esconder isso de todos por tempo demais. Não estava sendo honesto comigo mesmo e nem com ele. Hoje percebo que usei Wirt como uma fachada para a vida normal que eu desejava ter. Wirt tinha o privilégio de ser alguém comum, e eu acreditei estupidamente que se eu ficasse com ele tempo o suficiente logo a normalidade iria contagiar a mim também. Mas, é claro, isso nunca aconteceria. Sabia que – no fundo, no fundo – era só questão de tempo até os fantasmas do meu passado voltarem. Tenho que começar a assumir as consequências dos meus atos, Bill; e o que eu fazia enquanto namorava Wirt só era tentar fugir dessa responsabilidade. Hoje sei que ter mudado o tempo foi irresponsável, assim como quase todas as decisões que tomei na nova linha temporal foram, inclusive ter envolvido Wirt nisso.

— Entendi.

— Agora só preciso saber o que Time Baby fez com o corpo dele. E, caso ele ainda estiver usando Wirt como um recipiente, descobrir como separá-los. Afinal, também tenho essa dívida com ele. Wirt tem família e amigos lá na Terra.

A mão de Bill descansou na bochecha de Dipper, fazendo um carinho. O gesto transformou a anatomia de Dipper numa estátua de gelo.

— É lindo te ver assim, Pinheirinho. Tão mudado. — Bill sorriu. — Estou orgulhoso. — E o calor presente naquela confissão fez derreter cada frieza que já estava acumulando em Pines.

Porém, Dipper ficou mais dez segundos inteiros incapaz de falar alguma coisa. Ocupou-se demais, procurando as palavras certas que tinha acabado de perder nos olhos violetas do demônio. Colocou sua mão por cima da de Bill.

Então, ele assumiu algo que faria o peito de Dipper batucar com ainda mais intensidade:

— Eu também.

Dipper encarou Charlie com força, suas pupilas castanhas pela primeira vez há bastante tempo se misturando com as lilases de Bill, virando um só pardo acinzentado.

— A minha última vez também foi naquele dia. Não tive muita sorte de fazer de novo. Também estou precisando me aliviar. — Sua voz saiu seca, como se evidenciando uma sede.

Dipper sabia que deveria evitar. Que deveria negar. Mas passou o tempo todo encarando Cipher, com aquele calor finalmente invadindo o seu corpo. Sua respiração acelerava, ficando mais difícil de não ofegar e demonstrar desejo.

Quando deu por si, o nariz de Charlie já estava ponta a ponta com o dele, o seu braço sendo segurado firme contra a parede na qual se encolhia. Logo, os dois já dividiam do mesmo fôlego, da mesma respiração, mas ainda inseguros de unirem os lábios.

O pensamento de saber que poderia fazer aquilo com Bill só dando mais uma investida deixou Dipper tonto, impotente. Acostumara-se tanto a não ter Bill tão perto assim, tão colado contra o seu corpo que, do nada, chegou a ter medo de não saber mais como beijá-lo.

— Você está muito quente — estudou Bil, tirando a mão do rosto e deslizando seu dedão com calma pela veia que ia do pulso ao antebraço de Dipper.

Realmente. Dipper sentia seus poderes por debaixo da pele, capazes de fazer toda a água da banheira evaporar em questão de segundos.

— Desculpe, eu não consigo control...

Bill o beijou, saboreando o restante da frase que sobrara dentro da boca de Dipper.

A tensão no corpo de Mason intensificou, mas Bill a desfez. Ao descansar sua mão livre na nuca de Dipper e outra na cintura, Dipper foi invadido por uma onda de paixão. Tão forte devido à abstinência de intimidade, a torrente pareceu raiar nos limites da luxúria. Nos três segundos que passara fora do seu próprio julgamento, a língua de Bill havia passado um pouco mais adiante do limite que Dipper considerava tímido. O volume do demônio já havia roçado perto o suficiente do de Dipper para que os dois percebessem o que realmente queriam.

Quase como um alarme de segurança, a imagem de Stanford piscou dentro da cabeça de Dipper. Mas não foi exatamente ruim. Pensar em Ford também ali, com eles, só conseguia excitá-lo mais. Mas também não o impedia de ainda se sentir aterrorizado com a possibilidade.

Antes de ser afogado pela onda, Dipper distanciou Bill com um dos braços. — Eu não consigo — havia dito assim que rompeu com o beijo, mantendo os olhos fechados, com medo de ver o estrago.

O piado familiar de um morcego cortou a mudez constrangedora no ressinto. Nosferatu veio voando do corredor. Pousou próximo deles, na borda da cratera, e chiou alto para chamar a atenção.

“Salvo pelo gongo.”

— Tom precisa de nós. Devemos ir procurar ele. — Dipper já saía do banho e recolhia as sandálias.

— Okay — Bill respondeu com educação. Entretanto, quando Dipper saiu do ofurô e se apressou para sumir na esquina, Bill ficou estagnado um tempo a mais onde estava.

Sozinho.

Esperando até que Dipper pudesse estar a uma distância segura dos seus sentimentos para que Bill pudesse segui-lo.

*

Dipper estava vestido de novo com os shorts e a capa de cetim; Bill usava a camiseta e a calça de Dipper, que pendia frouxa da sua cintura magra. No caminho de volta, portas e mais portas brotavam num passe de mágica nas paredes do corredor que atravessavam. Parecia que Tom tinha decidido criar mais quartos para acomodar os seus convidados que estavam para chegar.

Cruzaram a sala de jogos até alcançarem uma sala adjacente, que mais se parecia com um hall de recepção. Candelabros sofisticados de cristal pendiam acesos do teto de rubi vermelho e polido; grossas pilastras gregas adornavam os quatro cantos do aposento; o chão era de marfim, tanto claro quanto escuro, que fora arquitetado para desenhar listras preto-e-branco no piso.

Diante deles, uma porta encontrava-se entreaberta. Nosferatu voou e sumiu do outro lado da brecha. Bill e Dipper se aproximaram. O piso era tão polido que tiveram que diminuir o ritmo para não acabarem escorregando. Abriam a porta totalmente, deparando-se com o vasto quarto de Lucitor.

Chamas de archotes queimavam de cada coluna, adquirindo ao ambiente uma delicada fragrância de carvão e cera quente. As paredes eram cobertas por extensas e suntuosas cortinas de cetim escarlate. Voando por debaixo de uma ogiva gótica, Nosferatu pousou na cabeceira de metal dourado da cama de Thomas, onde o mentor deitava, parcialmente visível através do mosquiteiro que abordava o colchão.

— Sim? — Dipper perguntou, afastando a tela do mosquiteiro para conseguir falar com Tom. O demônio estava praticamente apagado na cama, mas já estava melhor do que na última vez em que Pines tinha visto-o. Uma agulha e linha hospitalares flutuavam acima do peito exposto de Tom, costurando os seus ferimentos mais críticos em pontos; um frasco médico também flutuava por perto, despejando um líquido que cheirava parecido com álcool, higienizando os cortes que ainda estavam abertos. Se Dipper não soubesse que Tom usava magia, provavelmente teria acreditado que haviam cirurgiões invisíveis atuando ali.

— Preciso que vocês me ajudem a refugiar os prisioneiros do Exílio que podem estar vindo pra cá. — Tom tinha uma voz arrastada, quase grogue, parecia ter ingerido algo para conseguir suportar a dor. — Como ainda estou muito fraco, não fui capaz de expandir muitos cômodos extras. Priorizem aqueles que estiverem mais gravemente feridos com as camas e entretenham aqueles que estiverem mais ansiosos enquanto isso.

— Certo. — Dipper assentiu, obediente. — Precisa de mais alguma coisa?

— Não, só o que eu já te pedi. Obrigado.

— Okay. Descanse, viu? E obrigado também.

Dipper e Bill deram meia volta para garantir a privacidade e paz de Tom.

— Ah, e mais uma coisa, Bill — contornou Lucitor assim que eles começaram a se afastar. Bill e Dipper pararam para dar atenção. — Se tiver mais monstros do que quartos, você não se importa de dormir na mesma cama que o seu namorado, né?

Dipper arregalou os olhos. “Ele tá falando de mim?” — Com licença? — Deu uma cotovelada em Bill, que não desconfiou, não tirando o rosto de Tom.

— Tudo bem — confirmou Bill, arrastando um Dipper petrificado pelo braço até estarem fora do quarto.

Assim que a porta bateu, Dipper suspeitou: — Você falou pro Tom que estávamos namorando? Como assim? Desde quando?

— Não exatamente — racionou Cipher com um dar de ombros. — Ele é meu melhor amigo, Dipper. Contava sobre minha intimidade pra ele sempre que podia. Faz alguns anos, claro, mas acho que ele deve ter lembrado de quem você era quando nos viu juntos. Ele sabia que eu tive casos com dois humanos.

— Então, você já tinha contado pra ele que tinha uma queda por mim? Tipo, desde quando eu ainda era um garoto ou até mesmo antes de eu nascer?

Finalmente depois de tanto tempo, Bill Cipher corou pela primeira vez.

— Eu sempre soube que seria você — assumiu com uma voz afugentada, descaracterizada com sua timidez.

Dipper lutava contra sua própria mão, que ansiava por tocar o rosto envergonhado do loiro e apertar suas bochechas rosadas enquanto admitia o quão fofo havia sido ouvir aquilo sair da boca dele.

Mas, antes mesmo de começar cogitar fazer, o galopar e relinchar de cavalos retumbou do final do corredor. Os dois perderam a concentração um do outro e giraram na direção do som.

— Eles chegaram — disse Dipper.

Bill respirou profundamente. — Vamos lá — determinou.

A dupla caminhava de volta para a sala de jogos quando Dipper pensou em voz alta:

— Imagina o estado em que eles devem estar.

— Acha que trouxeram muitos feridos?

— Não falo só das feridas externas. Imagine o que deve estar passando na cabeça de cada um agora, devem estar arrasados!

A janela de lava da sala se partiu, dando passagem para que a carruagem gótica trotasse para dentro do aposento, o cheiro intenso de enxofre queimado recendeu. Os cavalos-esqueleto fizeram uma meia volta pelo carpete – levantando nuvenzinhas de cinzas à cada pocotó— e estacionaram de modo com que a porta e os degraus da liteira ficassem virados para o lado de Bill e Dipper, que acabavam de chegar.

Colocando o pé e subindo no primeiro degrau, Dipper conseguiu ouvir o surpreendente som que vinha detrás da porta fina da carruagem: Risos.

Ele e Bill se encararam com dúvida. Dipper abriu a porta de uma vez.

Lá dentro, centenas os monstros estavam reunidos num círculo. Todos eles levantavam taças de cristal cheias de champanhe. No centro, Bauer erguia acima da cabeça a garrafa que antes estivera lacrada no minibar da carruagem, fazendo chover espumante em todos os convidados enquanto vibrava de vitória:

AÊÊ, PORRAA!! VAI TOMAR NO CU, TIME BABY!!

O restante uivou em seguida, concordando e acompanhando o estranho grito de guerra.

***

Fora Bauer e Narigudo, mais de quarenta monstros haviam sido tragos. Vinte destes estavam com algum tipo de ferimento, uns simples, outros nem tanto.

Bill e Dipper deram o seu melhor para separar três quartos inteiros dedicado exclusivamente aos feridos. Tudo demorou cerca de uma hora e meia, inclusive fazer as ataduras e iniciar o tratamento de alguns, o que não era tão difícil levando em consideração que Tom havia deixado num quarto uma cesta de medicamentos, primeiros socorros e porções que “de algum jeito mágico” aceleravam o processo de cura, junto de um pergaminho instrutivo que ensinava os dois a aplicarem cada remédio corretamente. Ambos Dipper e Bill não disseram mais nenhuma palavra durante todo o processo. Bill ocupado demais em ajeitar as camas e os enfermos confortavelmente; Dipper ocupado demais com ter que fechar ataduras e pontos em cada um, usufruindo da sua magia quando mais ajuda era necessária, fazendo agulhas-e-linhas e soluções flutuarem de cama em cama assim como vira o mestre fazer.

Quando voltaram para a sala de jogos, grande parte dos monstros que estavam sob o clima de festa já haviam se ocupado. Alguns se reuniam em volta de mesas de ping-pong ou bilhar, torcendo ao máximo nos torneiros entre amigos. Outros relaxavam nos divãs, poltronas e canapés andantes, enfiados debaixo de uma nuvem de risadas e conversa fiada.

Enquanto observava a cena, Dipper se retraiu ao lado de Bill que, por sua vez, reparou.

— Que foi? — Bill cutucou de leve o braço do outro.

— Acho que eu estava errado de pensar que eles estariam tristes, né? — Cabisbaixo agora. — Até mesmo os mais feridos estavam rindo...

Bill presenteou Pines com um sorriso compassivo. — Foi uma vitória o que aconteceu hoje, Dipper. Percebe isso, não percebe? Não são as pequenas vitórias as mais importantes de se celebrar?

Dipper não respondeu.

Parecia que todas aquelas vezes em que Dipper afogou Bill bem no fundo dos seus sentimentos fizeram Bill aprender a nadar. Ele sempre conseguia voltar pro topo do seu oceano de emoções, e ainda mantendo o fôlego intacto.

A réplica de Charlie parecia estar mesmo começando a fazer sentido no seu julgamento.

— Acho que sim — disse Dipper com honestidade. Então, estalou os dedos. — Esse povo tá precisando comer algo decente.

Foi instantâneo. Quase como se Dipper já estivesse acostumado a fazer aquilo.

Duas bandejas repletas de cheeseburgers se materializaram, flutuando diante dele. Mesmo que de magia, o aroma era impecável, como se os bifes tivessem acabado de sair da chapa, chiando ainda da fritura; os queijos escorrendo um círculo dourado em volta de cada pão novo, como se derretidos por maçarico.

Dipper travou, abismado.

— Eu nunca tinha feito isso antes. — Tanto sua voz quanto os olhos tinham aquele brilho infantil de quem tinha aprendido a andar sozinho de bicicleta pela primeira vez.

— Parabéns! — elogiou Bill, também com honestidade e um tapinha amigável no ombro de Dipper. — Agora que você já consegue invocar uma arma mágica, fazer esses outros tipos de materialização deve ficar fácil pra você. Mas eu prestaria um pouco mais de atenção na próxima vez. — Bill aproximou o rosto da orelha de Dipper, apontando para o topo dos pães: alguns tinham gergelim, outros nenhum, e alguns tinham a parte de cima levemente mais queimada do que o outro. — Magia não é só emoção, Carneirinho, é razão também.

— Certo. Tenho que começar a ver essas coisas pelo seu lado mais relativo. E complementar. — Dipper concordou com a dica de Bill.

— Uma coisa precisa da outra para acontecer. Duas forças opostas precisam aprender a coexistir para gerar o terceiro fator.

— Exato — respondeu Dipper. Em seguida, olhou para Bill, dando um sorriso que enrugou o canto dos olhos. Bill não pôde deixar de reparar o quão madura a fisionomia de Dipper estava se tornando. Ele aparentava a cada hora mais com o adulto de 23 anos que realmente era por debaixo da fantasia de 16. Parecia-se mais com Ford também, com aqueles indícios de barba rasa sem aparar germinando, a sombra de um cavanhaque, a densidade das costeletas... — Obrigado pelo conselho.

Tá aí uma coisa que eles nunca puderam fazer antes.

Conselhos de magia.

Que inusitado. Agora eles tinham algo em comum. Algo em comum que era saudável.

O quão mais em comum haveria entre os dois que não sabiam?

Dipper passou de grupo em grupo, distribuindo os hamburgers entre os convidados. Bill o ajudava com a segunda bandeja. Não fazia ideia de como o gosto da sua primeira comida feita com magia estaria, mas isso parecia não importar para os monstros, que estiveram esfomeados há meses.

— Esse poder poderia acabar com a fome lá na Terra — realizou Dipper com um pouco de surpresa, terminando de dar a volta na sala e já se reencontrando com Bill no ponto de onde começaram.

— Eu não contaria com isso — interpôs Bill. — Comida mágica não é nem de longe o mesmo que comida normal. Precisaria de muito mais disso se quiséssemos encher a barriga só desses caras. Comida mágica é como se fosse o fast food desse lugar – pode até ser gostoso e te deixar em pé, mas não te sustenta.

Haviam sobrado apenas dois hamburgers. Um na bandeja de Bill, outra na de Dipper. Bill pegou o lanche da de Dipper e disse: —  Saúde.

— Saúde. — Dipper também pegou o x-burger da bandeja e brindou-o com o de Bill.

Os dois comeram distraídos, saboreando não só o prato como também o silêncio. Aquela quietude momentânea de suas mentes. “Que delícia”, pensou Dipper.

— O que é isso? — perguntou um monstro, uma mistura de cegonha com abelha. Cegonha dos pés ao pescoço; abelha de cabeça. Suas asas se curvaram como uma mão humana para pegar algo que estava atochado nas dobras do couro da poltrona. Era um celular.

— É o meu celular — respondeu Dipper, sem perceber estar entrando numa panelinha. Terminou o hamburger e se aproximou. Todos da roda olhavam para ele numa mistura de fascínio e timidez. “Deve ter caído do meu bolso na primeira vez em que cheguei aqui e sentei para conversar com Tom”, deduziu. — É coisa da Terra — completou, displicente.

— Faz o quê? — perguntou uma voz conhecida. Bauer estava sentado logo atrás da cegonha-abelha.

Devolveram o aparelho para ele. Não tinha tocado naquilo desde que chegara no Mindscape. Dipper percebeu que agora toda aquela parte da sala havia se calado para prestar atenção nele. Contra sua vontade, colocou a mão em cima do próprio coração, sentindo-se indefeso. Ser o centro das atenções ainda lhe era muito difícil.

— Ah, muitas coisas — revelou, com a voz mais despreocupada que era capaz de emular. — Você pode falar com uma pessoa que está à uma distância muito longe da sua, mandar mensagens — enquanto discorria, aproveitou para acender a tela: a bateria estava nos seus últimos 12%, e não havia nenhuma mensagem ou notificação levando em consideração que estava num mundo sem nenhum tipo de internet, mas havia, estranhamente ainda, um pontinho de sinal —, tirar fotos, ouvir música... — Ver aquilo de novo despertou o lado humano e moderno dentro de Dipper. Será que os seus pais haviam ligado fervorosamente preocupados com ele e Mabel? Afinal, parecia fazer mais de uma semana que Dipper estivera ali. E o último lugar em que ele e Mabel haviam sido vistos foi durante um incêndio escolar que deixou diversos feridos. Mas será que o tempo que passava no Mindscape era o mesmo que na Terra? Não deveria, considerando que levava dias para o céu dali escurecer. Há quanto tempo estaria ele desparecido pro seu mundo? Seria o mesmo tanto que ele estava morto para Terra, o mesmo tanto que a Terra estava morta para ele? Como se ela não fosse mais o seu lugar?

— Pera aí! Pera aí! O que você falou?! — exclamou um monstro fora de vista, quebrando a introspeção do garoto.

— Tirar fotos e ouvir música? — Dipper interrompeu-se.

— Tirar fotos? — A garota-libélula agitou suas asas, tomada pela animação.

— Isso toca música? — Os olhos de abelha da cegonha engrandeceram de encanto.

— É isso que a gente precisa! — reforçou alguém vindo da mesa de bilhar.

— Põe uma música!

Dipper selecionou uma música de acordo com o que achava apropriado para o momento. With A Little Help From My Friends, do The Beatles, começou a ser emitido do alto falante do seu aparelho. Não demorou muito para que os convidados entrassem no embalo e começassem a reproduzir algum movimento similar ao da guitarra na música.

Dipper deixou sua playlist de festa aberta numa mesa ao meio da sala. Quando voltou à panelinha, seu coração derreteu ao reparar que Milo estava entre os monstros, sentado espremido num canto do sofá, demorando-se para comer o hambúrguer com uma mão só.

— Milo — chamou, colocando uma mão no ombro dele.

O garoto salamandra olhou-o com uma cara que dizia “que foi?”.

— Não quer que cuidemos do seu ferimento? O seu braço vai conseguir sarar mais rápido com os remédios.

— Vai, Milo — encorajou a libélula, que estava sempre por perto dele, de alguma forma o supervisionando por mais claro que mostrasse não fosse sua mãe nem irmã. — Vai se sentir melhor depois.

Milo desceu calado do sofá, mais pela instrução de libélula do que pela recomendação de Dipper.

Bill acenou para o garotinho. — Vem comigo que eu te mostro o seu quarto — amaciou. Em seguida, jogou para Dipper um olhar que dizia “Pega leve, eu cuido dele.”

Dipper deixou um recado mental para lembrar a si mesmo de agradecer quando Bill voltasse. E ver Bill sumir no longo corredor enquanto segurava o ombro de Milo com tanto carinho, fazendo o seu máximo para conseguir conversar com ele, foi mais emocionante ainda.

— Por que a carinha assim, moço? Aconteceu alguma coisa? — perguntou a libélula, abrindo espaço no lugar onde estava Milo, claramente pedindo para que Dipper se sentasse ali.

Dipper ocupou o lugar.

— Desculpe, eu ainda não sei o seu nome.

— Florette — disse ela com muito cuidado. — Se escreve com “tte”, mas o final se pronuncia como “tí”.

— Mason. — Apertou a mão dela, que tinha uma textura parecida com a de um vestido de lantejoulas, repleta de pequenas escamas cintilantes. — Dipper é o apelido.

— Eu sei quem você é — ela riu brincalhona. — Como esqueceria o nome do primeiro Índigo que já vi pessoalmente na vida? E um que ainda por cima é parente de Stanford Pines.

— A família de vocês gosta de deixar história por aqui, né? — Bauer entrou no assunto, apontando a coincidência com bom humor.

— Não são muitos humanos por aí com a inteligência para acessar outras dimensões. A maioria de lá nem sabe que isso é possível ainda. Viagem interdimensional — conduziu Dipper. — Meu tio-avô é considerado um gênio no meu mundo.

— Não tenho dúvidas de uma coisa dessas. Onde você falou que ele estava mesmo?

A garganta de Dipper se embolou num nó.

— Eu... não sei onde ele está ainda. Time Baby o capturou junto da minha irmã.

Todos da roda pararam de sorrir.

— O quê?! — Florette exclamou.

— Por que não nos disse isso antes? — apertou Bauer.

— Não achei que seria necessário.

— Tá brincando? — manifestou-se a cegonha/abelha. — Não percebe que você acaba de libertar da escravidão milhares de monstros indefesos? Temos uma dívida com você!

A mente de Dipper girou, confusa, em torno daquela palavra. “Dívida.”

— O que quer dizer?

— Quer dizer que vamos fazer o nosso possível para ajudar a resgatar sua família — Bauer disse. Todos da aliança emitiram sons de concordância imediatamente.

Narigudo chiou ao lado do troll, que se curvou para conseguir decifrar melhor o que dizia. — Você acha mesmo? — perguntou Bauer, como se procurasse confirmação de algo que Narigudo havia dito.

— O que ele está falando? — apressou Dipper assim que viu que o tamanduá parecia um pouco mais nervoso com o assunto.

— Ele acha que as duas pessoas que Blendin falou ver escoltadas por Seth uns dias atrás poderiam ser eles. Como se parecem?

— Os dois se parecem comigo. Mabel, minha irmã, tem cabelo colorido; Stanford tem seis dedos em cada mão, óculos, e na última vez em que vi estava usando um suéter vermelho.

Narigudo deu um chio de confirmação.

— Só pode ter sido eles. — Bauer assentiu para Pines.

— Onde eles estão? — Dipper atirou a pergunta, tendo que conter a vontade de já ir levantando daquela cadeira. O assunto lhe gerava mais aflição do que conforto.

Narigudo ficou calado e deu de ombros. Bauer respondeu de maneira mais produtiva: — Se eles não estavam no Exílio, não sei para onde mais poderiam ter ido. Desculpa.

Dipper mordeu o seu lábio inferior antes que começasse a tremer. Seus ombros caíram, enfraquecidos.

— Ei! — Bauer fez um gesto para que Dipper mantivesse a cabeça erguida. — Vamos pensar positivo. Se chegaram ao ponto de levá-los numa escolta pelo Exílio significa que os dois ainda estão vivos. Time Baby não é do tipo que adia ou prolonga uma execução, sabia? Estão sob custódia. Aquele bebezão ainda deve estar quebrando a cabeça tentando descobrir o que fazer com dois humanos da família Pines. Se ele os matasse, com certeza a notícia já teria corrido e causado uma revolta violenta dos monstros contra o governo. Há anos a fúria dos monstros vem sido contida, os protestos raramente acontecem hoje em dia. Time Baby só está querendo manter as aparências de que está tudo perfeito, confie em mim.

Ouvir aquilo do troll laranja estranhamente reestabeleceu a paciência de Dipper. Mesmo que em 1%, sentia que suas energias tinham aumentado positivamente.

Sem contar com Tom Lucitor, Bauer estava sendo quem mais se demonstrava amigável com ele naquele mundo caótico. Dipper sentia uma onda de orgulho e vergonha quando percebia isso, o quanto ganhara – e o quanto ainda estava para ganhar – o respeito daquela facção.

— Obrigado, Bauer. E obrigado ao restante de vocês também. — Escaneou os olhos em volta do grupo. Todos os outros correspondiam com olhares encorajadores. A última vez que tinha visto um olhar daqueles foi quando ainda estava de bem com Mabel. O estômago dele se embrulhou e as borboletas acordaram, ameaçado pelo abraço invisível que levava daquela energia fraternal. Teve que forçar uma risada para disfarçar a vontade que teve de chorar.

— Só temos que descobrir onde Time Baby os escondeu. Depois disso, é só questão de tempo até bolarmos um plano. — Bauer piscou um olho para ele. Dipper assentiu, queria poder agradecer mais do que já tinha feito, mas temia parecer muito vulnerável.

— Antes disso precisamos tomar um banho. Não sei se repararam, mas estamos nojentos — disse a cegonha.

E dormir! — relembrou Florette. — Que saudade eu tinha de dormir num colchão...

Tom apareceu da esquina do corredor que levava ao seu quarto, ainda mal vestido, usando um cobertor para tampar a maior parte do corpo e ainda meio pálido do sangue que provavelmente perdera. A chegada dele chamou a atenção de todos. Os monstros pararam o que estavam fazendo para saudar o anfitrião.

Houve um minuto de silêncio. Dipper sentia o respeito que emanava dali com sentia o vento ao seu redor. Por um segundo, conseguiu retirar o foco dos seus sentimentos e admirou a expressão de Tom adquirir um brilho tímido de reconhecimento. Alguns monstros começaram a bater continência, mas foi Dipper que, ainda levado pela emoção, bateu a primeira palma. Logo todos da sala aplaudiam e assoviam Tom.

— Um brinde — sugeriu Bauer, levantando sua taça de novo na direção de Tom. — Ao nosso único e verdadeiro líder, veterano da Rebelião. À Lucitor!

À Lucitor! — todos elogiaram, inclusive Dipper, que aproveitou que o foco não estava mais nele para fugir de cena sem questionamentos.

*

Mais tarde, grande parte dos monstros que não estavam hospitalizados saiu para um banho coletivo nas águas termais da caverna. Os que ficaram na sala aproveitaram para arrumar a bagunça deixada.

Dipper havia se refugiado no seu quarto. Questionou ainda não ter topado com Bill por lá. Onde quer que ele estivesse, Dipper desejou que tivesse pelo menos se divertindo um pouco.

Rolava um cigarro aceso até a metade entre os dedos da mão direita. Com a esquerda, apoiava-se no limiar de pedra, ao pé da cama. Meio sentado, meio deitado enquanto inspirava um trago. Na pedra vulcânica de cabeceira, descansava a taça meio cheia de champanhe que ele havia surrupiado, já chegando à temperatura ambiente, com gotículas de água empopadas ao redor do vidro, que reluziam com as luzes das estalactites. A chegada da noite – pela primeira vez na jornada de Dipper ao Mindspace –, fez com que a luz filtrada do exterior até a ponta dos cristais diminuísse. Isso aderiu ao quarto uma iluminação bem mais soturna e divertida, um aspecto escurecido mas promissor, como a pista de dança em uma balada.

De repente, uma nova porta se abriu do canto oposto à cama, e uma tira de luz branca veio do ambiente posterior, quebrando a ilusão de globo de luz. Dipper prendeu a respiração e se virou para o ocorrido: uma bolha de vapor de água quente exilou da porta, e Bill parou na soleira com uma toalha branca enrolada na cintura. Ainda de cabelos úmidos, fitava Dipper com a mesma curiosidade.

— Tinha um banheiro nesse quarto? — Dipper estarreceu.

— Hm, sim? — respondeu Bill, não entendendo a dúvida. — Tive que tomar uma segunda ducha. Não me limpei direito da primeira vez.

— Tom sempre me levou às crateras para banho. Não sabia que ele tinha feito um banheiro nos quartos de hóspede também — explicou.

— Talvez tenha feito agora. Pra acomodar melhor os refugiados.

— Pode ser.

Houve um breve silêncio até:

— Temos que arrumar a desorganização da festa — disparou Dipper.

— Eles já estão arrumando — Bill contrariou.

— Então temos que mostrar pra eles as termais.

— Algum deles já estão tomando banho.

Bill desligou a luz do banheiro e fechou a porta. Logo em seguida, varreu o quarto com o olhar, que parou numa parede próxima de Dipper. Caminhou até ela e, parecendo entender a dinâmica do quarto como se já estivesse em um daqueles antes, tocou um espaço vazio.

— O que será mais que ele adicionou?

A pedra vulcânica na parede amoleceu e se afastou, queimando um espaço aberto rapidamente. Um sopro de frio invadiu o quarto. Uma janela panorâmica havia se definido, cobrindo a maior porcentagem da parede. Continha uma quina rústica, que parecia indicar que poderia ser utilizada como um mirante. E, além da moldura, a vegetação desértica e hipnótica do Mindscape se abria. A lua cravava no céu um buraco luminoso de prata.

Ambos perderem o fôlego. Impressionante.

— Gostei dos ajustes. — Bill fez uma dancinha para si mesmo com os ombros e sorriu, conivente.

Dipper suspirou, e quando fez isso a fumaça do trago escapuliu, se arrastando no ar até encontrar a panturrilha desnuda de Bill.

Bill esgueirou um olhar suspeito para o cigarro que Dipper mantinha aceso entre o dedo médio e indicador.

— Está estressado?

— Não, por quê? Os monstros estão comemorando, dei um salto enorme no meu progresso hoje. Estou fumando de recompensa. Obrigado por ter cuidado do Milo, aliás.

— Onde você arranjou um cigarro aqui? — Não quis fugir do assunto.

Dipper ficou com vergonha de si mesmo imediatamente.

— Eu fiz... com a minha magia.

— Uau! Você tá mesmo desesperado.

Dipper riu. De verdade desta vez. Sentira falta disso em Bill, a animação que ele trazia e levava de acordo com o que entrava e saía dos aposentos, como se estivesse perfumado, deixando um rastro agradável por onde passava.

— Por que você ao menos diz uma coisa dessas? — brincou Dipper.

— Porque da última vez em que te vi fumando você quase me assassinou num acidente de carro.

Dipper estourou numa gargalhada. Bill o acompanhou. “Que memória mais estranha”, refletiu Pines quando percebeu o quão diferente já era daquele Dipper de apenas algumas semanas atrás. E Bill também.

— O que está acontecendo aí dentro, Dipper? — Foi sério. Completamente sério.

— Muito, como sempre — respondeu, também incrivelmente a sério. “Muito” parecia ser a única coisa que estava constantemente acontecendo na vida de Mason.

— Vou supor que também não fez mais nenhum cigarro mágico pra ninguém.

Silêncio. Dipper deu de ombros como sim, percebendo o quão sério o papo tinha ficado de um segundo para outro. Mas quando não estiveram naquele vai-e-vem? Dançando aquele tango estático e intelectual de elogios e provocações?

— Você sabe que tem quase 24 anos de idade, não sabe? — perguntou Bill, sentando ao lado de Dipper na cama. Apesar do conteúdo, o seu tom não era nada acusador. Pelo contrário, a voz que Bill usava fazia Dipper se lembrar da vez em que tivera que falar com o psicólogo do jardim de infância, após o bullying que levou de um valentão.

— Claro que sei.

— Então por que não começa a agir como tal?

— Eu não sei, Cipher. Talvez seja porque eu ainda sinto que tenho algo a esconder de todos. Por isso. — Suspirou. — Olha, eu sei que você tá empolgado em fazer com que eu me aceite como eu sou o quanto antes, mas eu já venho tentando isso há mais de uma década.

— Eu entendo, mas...

— Bill, eu realmente gosto de você, e muito. Não tenho como não admitir isso. Eu amo o quanto você é fofo, dedicado e leal. Mas... Ford ainda está presente na minha vida, e tive dez anos para conhecê-lo de perto. Mas você? A última vez em que vi você sendo genuíno assim foi quando ainda éramos amigos de infância. Sinto que só estou conseguindo realmente te conhecer agora, nesses últimos dias. — Tudo saía tão perfeitamente de dentro de Dipper, que ele se sentiu como se já tivesse ensaiado aquelas falas diversas vezes.

— Tem razão. — Bill suspirou depois de uma pausa. — Eu não era eu mesmo quando ainda estava com Time Baby. Mas o que eu quero que você perceba é que nem todo tempo era ele falando por mim. Houve momentos em que eu realmente fui honesto com você.

— Eu sei disso. E é por isso que eu estou aqui, aceitando dividir uma cama. Porque eu acredito em você, Bill. — Quando terminou a confissão, percebeu que seu olhar havia decaído até encontrar os lábios rosados de Cipher. Automaticamente, passou também a sentir o peso dos olhos de Cipher na sua boca.

Dipper passou a língua sobre o lábio inferior, temendo que Bill percebesse o quão seca de nervosismo sua boca estava. Mas foi tarde demais. Bill percebeu outra coisa, a luxúria do ato. Como sempre fazia, ele conseguia olhar além das pessoas. Sua bravata era digna de um crítico de artes plásticas; e a fisionomia de Dipper, a escultura Davi de Michelangelo.

— Está mordendo o seu lábio — disse Bill, caso Dipper não tivesse reparado naquilo ainda. O quão óbvio era. O quão literalmente tangível era aquele magnetismo, o desejo.

Dipper queria beijá-lo de novo.

Queria muito.

Até naquele momento, o beijo que haviam dado no ofurô era a lembrança na qual ele mais lutara para manter expulsa aquela noite. A lembrança que parecia estar competindo contra todas as outras pelo pódio das prioridades de Dipper.

Mas ainda havia uma única coisa que impedia o pensamento de sair do segundo lugar...

— Eu continuo pensando nele — assumir aquilo doeu fisicamente em Dipper. Teve que espremer os olhos bem fechados para ser capaz de suportar o constrangimento de estar tão vulnerável assim.

— Então pense nele, Dipper. Não quero que lute contra aquilo que vai te fazer ficar melhor. Por favor.

— Você ainda também gosta dele, não é? Desde a época que ficaram juntos.

Bill suspirou, com suas mãos relaxando nas coxas de Mason. — Como sabia disso?

— Você falou “eu amo vocês” antes de Time Baby te exilar explodindo o corpo de Evum. E eu, de todas as pessoas, deveria saber. Eu sei quando vejo alguém que está lutando para reprimir os seus verdadeiros sentimentos. Nunca pude ser inteligente o suficiente para conseguir notar que você também era assim comigo, mas percebia quando você era com o Ford. Existe uma correlação romântica entre a rixa e a atração, sabia? Nós mesmos somos a prova disso.

— O assunto sempre parece se complicar quando chegamos nele, não é?

— E com razão, Tom. Ele é o meu tio-avô.

Cipher respirou com força, tragando o ar do jeito que fazia quando começava a perder a paciência com algo.

— Dipper, não conseguem perceber o óbvio que existe entre vocês dois? O Stanford é um gênio científico que foi capaz de abrir um portal que o permite viajar para qualquer dimensão existente no Universo, e você é um gênio de como dar a volta por cima e encontrar soluções. Se vocês dois se entendessem finalmente e conversassem sobre isso, colocariam as cabeças pra funcionar juntas e perceberiam que poderiam fugir juntos para um mundo totalmente diferente da Terra, um mundo em que aceitaria o tipo de relacionamento de vocês. Se o problema pra você é só o que as pessoas vão pensar, então vá para um mundo onde elas não ligam. Vocês têm isso à disposição de vocês e nem percebem! Como conseguem essa proeza quando são literalmente feitos um para o outro?! Vocês, nerdões, têm que tirar a cabeça do raciocínio lógico e passar a ser um pouco mais espirituoso de vez em quando! Com a cara nos livros e números, esquecem do coração.

A bronca de Bill penetrou na cabeça de Dipper e se alojou lá como nenhum outro se alojara até então. Parecia que aquelas palavras tinham um espaço específico para acomodá-las dentro da mente de Dipper. Era aquilo. Ele vinha há anos buscando uma resposta para o seu dilema, com aquela fôrma na sua cabeça esperando para ser preenchida. Havia sido agora.

— É por isso que eu também era meio obcecado em criar um mundo só nosso — prosseguiu Bill, com mais calma, afeto. — Desde quando você era criança, e eu Charlie, era isso que eu desejava. Um mundo perfeito para nós três. Lembra daquela promessa? Não foi à toa que eu acabei me apaixonando por você e pelo Stanford: era porque vocês eram os humanos nos quais tinham a maior chance de poder tornar essa utopia uma realidade. E ainda acho que estou certo disso.

— Um mundo... só nosso?

— Nunca foi óbvio?

A memória de Dipper retrocedeu para dia do seu aniversário de 14 anos, no presente que Stanford havia lhe dado: uma bolha temporal congelada no cenário das colinas de Gravity Falls – o lugar especial deles –, para sempre desabitada na sua tarde de verão.

— Mas... um relacionamento entre ele e eu é ao menos certo?

— Pelo amor de deus, Carneirinho, você tem quase 24 anos, você e Ford são dois adultos consentindo, e você viveu a própria vida duas vezes. Tem o dobro de idade que deveria ter! Ninguém fica mais experiente do que isso. Se tem alguém que já deveria ter certeza do que quer, é você. Poderiam ter fugido a qualquer momento.

Dipper persistiu pasmo por mais um tempo, digerindo a resposta. Era aquilo! Estivera na frente dele o tempo todo.

— E, só pra constar — continuou Bill —, você e o Ford não estavam comprometidos na última linha temporal, né?

— Hm... sim. Quero dizer, não. Hm... Ele chegou a me pedir em casamento, mas...

Bill sustentou um rosto de “estavam ou não?” para ele.

— Mas eu nunca dei a resposta oficialmente. — Dipper se chocou com o que acabara de perceber. Realmente, ele nunca tivera dado uma resposta clara em relação a isso. Estaria a proposta ainda de pé? E o mais intrigante de tudo: a resposta a ser dada ainda deveria ser a mesma que o Dipper de três anos atrás daria?

Tinha que admitir, as questões relacionadas ao seu coração que ele evitara por anos estavam começando a voltar com a força de uma enxurrada. E seguir em frente com a sua vida e assumir as consequências das suas escolhas era realmente muito assustador. Mas era melhor começar a lidar com aquilo agora do que nunca.

— Namoravam antes?

— Não exatamente, estávamos começando a dar o primeiro passo numa nova direção quando tive que alterar a linha do tempo pra salvar a vida dele.

— Então não estão.

— Eu não teria como saber. Isso parece que aconteceu uma vida atrás. E aconteceu mesmo uma vida atrás! — protestou educadamente. Apagou o finalzinho do cigarro na protuberância de pedra mais próxima e fez com que toda a bituca sumisse em um lampejo de mágica. — Também estou tentando ser o mais honesto que consigo com você.

— Entendo — disse Bill, já abaixando a cabeça.

— Infelizmente com essa confusão toda acontecendo fica complicado, sabe, sentir prazer. As coisas que eu vi no Exílio ontem foram... — Parou de falar. Não valia à pena ficar remoendo o que aconteceu naquele lugar. Dipper tinha liberto os monstros. As coisas já começariam a encaminhar para melhor (pelo menos assim ele esperava).

— Nós ainda podemos conversar com Ford e entender isso tudo que está acontecendo entre nós três. Porém uma coisa ainda me diz que, com ele sabendo da verdade sobre mim e o controle de Time Baby, Ford já deve estar refletindo em relação a isso também. Ele deve estar chegando à mesma conclusão que nós, ele é um homem inteligente, Pinheirinho. Ele te ama, tenho certeza absoluta disso. Por isso às vezes eu ficava com um pouco de ciúmes de vocês dois. Porque eu sabia que o que vocês tinham era real. E tinha medo de perder tanto Stanford quanto você. Imagina só, perder as duas pessoas que você mais ama no mundo pra elas mesmas.

A mente inconsciente de Dipper cansou de esperar. Seus dedos se ajustaram na nuca molhada de Charlie. Avançou para beijá-lo.

Era óbvio que aquela fora a última coisa que Bill esperaria. Afinal, no primeiro contato entre os lábios, seus dentes se demoraram um pouco mais para se abrirem, sua língua teve que deixar de ficar retraída para poder se misturar com a de Dipper. Faminta, ofegante. Não foi muito para que Cipher cedesse. Não costumava deixar Dipper tomar a dianteira de um amasso, mas naquela hora não viu razões para intervir. E Dipper beijou com mais força, como se também temesse perder a chance de dominar Bill.

Suas unhas se afundaram no tórax nu de Bill, espalhando as gotinhas d’água que haviam ficado presas no pelos ralos e loiros do seu peito. Bill soltou um gemido dentro da boca de Dipper. E Dipper já começava a sentir os repuxões de um comichão que não sentia há muito tempo; bem ali, um pouco abaixo do estômago, uma pressão gelada e quente massageava sua virilha, indo aos pouquinhos para o meio das pernas...

Notando o que estava prestes a acontecer, Dipper desfez o beijo. Escorregou a cabeça pelo peito de Bill, que batia alto. Os dois ficaram na mesma posição por um minuto, recuperando-se em meio às respirações entrecortadas e ruidosas. Dipper pressionou o espaço entre suas pernas, como se aquilo pudesse de alguma forma conter sua excitação.

— Sei o que estou fazendo, Bill. Com você. Comigo. Conosco. Mas não me leve a mal: é que hoje talvez tenha sido o novo dia mais cheio da minha vida — explicou Dipper por fim, quando pôde voltar a falar.

— Tudo bem — amaciou Cipher com compreensão. — Vamos descansar hoje.

Bill desceu da cama por um momento para recolher a calça do chão e vesti-la. Depois voltou para o colchão, pegando o espaço disponível à esquerda de Dipper. Do outro lado da janela-mirante, a paisagem vibrava convidativa, quase tirando completamente o sono dos dois.

A atenção de Bill se focalizou em alguma parte do céu, longe da lua, e ele fez uma expressão rara em sua face: a de inspiração.

— Dipper... — murmurou.

— Sim?

— Eu já te contei do porquê ter te dado a marca de nascença na hora de te criar, e por que dos seis dedos ao Stanford?

Dipper sacudiu a cabeça num não, sem virar para o outro. Cipher passou um braço sobre a cintura dele, restringindo Dipper na posição de conchinha.

— Deixe-me ensinar um truque que eu usava quando ainda tinha o Poder. Foque a magia nos seus olhos, e olhe para lá. — Apontou para uma certa direção no céu. O olhar de Dipper seguiu no que ele ainda se acomodava no travesseiro. Fez como Bill pediu e logo, logo começou a reparar em algumas luzes que antes estavam camufladas de vista por uma densa camada de magia.

Eram poucas estrelas. Familiares.

— Aquilo é o que eu estou pensando? — Dipper arriscou.

— Sim — confortou Bill. — Na verdade, existem mais alguns astros no céu do Mindscape. Seis estrelas da Ursa Maior. Time Baby a esconde de todos usando a magia dele. Ele me dizia que era “humano demais” para o gosto dele. Por alguma razão ele detestava tudo que fosse terráqueo. As seis estrelinhas inspiraram os seis dedos de Stanford; o formato, a sua marca de nascença. Vocês sempre foram complementares, até mesmo quando eu os criava. Por milênios, vocês dois foram, de um jeito ou de outro, a ponte que me ligava deste mundo à Terra.

As palavras mergulharam fundo em Dipper e tocaram em cada aresta e vértice do seu corpo.

— Bill... — Dipper chamegou, já extremamente grogue de sonolência.

— Sim?

— Essa foi a coisa mais linda que já ouvi você dizer.

Antes que pudesse ver o sorriso realizado de Cipher, Dipper pegou no sono.

*

Dipper estava sonhando.

Sonhava que ainda tinha os seus sete anos de idade, um garotinho. Porém, ele não corria e brincava animado pelos subúrbios californianos asfaltados, mas sim num bucólico gramado salpicado de margaridas majestosas.

Eram as colinas de Gravity Falls. O sol se punha na linha do horizonte. Na sua mão pequena e rechonchuda tinha enrolado um barbante branco, que subia e subia céu afora até se ligar com um balão hélio vermelho que flutuava bem lá longe.

Por algum motivo, Dipper desejou muito que o balão estivesse mais próximo dele. E, assim, corria impaciente na direção que o vento empurrava o balão, e frustrava-se quando via que não gerava nenhum efeito, e sua distância dele nunca terminava.

Então, de repente, o barbante sumiu com um passe de mágica. E o balão que já estava longe, mas agora sem ter onde se fixar, se afastou do garotinho até desaparecer de vez nas nuvens.

Dipper esteve tão preocupado com o balão, que se esquecera da corda.

O balão só poderia ser alcançado se também existisse o fio.

O ensinamento de Bill valsou ao redor de Dipper, cavalgando na ventania: Uma coisa precisa da outra para acontecer. Duas forças opostas precisam aprender a coexistir para gerar o terceiro fator.

Nesse mesmo segundo, despertou.

O suor tinha escorrido do seu corpo e atravessado o colchão. Mas fazia tanto frio que Dipper teve de sentar quando acordou, unindo as pernas dobradas sobre o seu peito.

— Desculpa ter deixado a janela aberta — Bill disse imediatamente.

Dipper quicou de susto sobre o colchão, constrangido de ser visto recém-acordado de um pesadelo, com a respiração ruidosa e seu cacoete de roer as unhas até se acalmar.

Lá fora, o céu da noite ainda arroxeava a paisagem, o vento eclodia pra dentro do quarto e ao redor da cama. Bill se espichou à parede mais próxima para tocá-la sem sair de debaixo das cobertas. Assim que fez, a janela se recolheu e a parede voltou a ser selada. De repente, tudo voltou a fazer muito silêncio, tanto que até desconsertou Dipper.

— Quanto tempo dormi? Já passou a noite toda? Time Baby não voltou com o relógio pro dia?

— Não, você só esteve dormindo por uma hora e pouco.

Dipper deu a Cipher uma expressão de “como você poderia saber disso?”.

— Eu estive acordado. Não consigo dormir — revelou e deu de ombros, lendo a mente de Dipper com a precisão misteriosa de um vidente.

Dipper suspirou e, aproveitando que Bill já oferecia o ombro para ele chorar, deitou a cabeça no espaço vago no pescoço do loiro.

— Tive um pesadelo. — Até ele mesmo se impressionou com o que saía de sua boca. Dipper não era o tipo de pessoa que contava dos seus sonhos para outras. Para ele, ficar ansioso por causa de um conceito mental abstrato muitas vezes era levado como sinal de fraqueza, principalmente na época em que seus pais repetiram até convencê-lo de que Charlie não passava de um amigo imaginário.

Mas tinha que reconhecer de que, naquele momento, Bill Cipher seria a única pessoa no mundo inteiro que poderia ao menos um pouco entender sua situação e não o julgar.

— Quer falar sobre?

Dipper meditou.

— Acho que sim. Na verdade, não é muito bem um sonho. É mais como uma lembrança com embelezamentos de sonho.

— Sei como são.

— Eu tenho essa lembrança recorrente de quando eu ainda era um menino às vezes. Meus pais tinham levado eu e minha irmã num circo que estava passando a temporada em Piedmont. Eu não era o tipo de criança que achava sair divertido, mas, por algum motivo, naquele dia fiquei absolutamente fixado com os balões de gás hélio que vendiam na entrada. Acho que eu nunca tinha visto aquilo antes, e pra minha cabeça de sete anos era um choque saber que tinha como fazer coisas como um balão flutuarem. Acho que fiquei entretido em pensar no funcionamento e lógica deles ou algo assim. Enfim, depois de muito insistir, minha mãe finalmente decidiu me dar o balão, eu ganhei o vermelho. Lembro do vendedor da banca amarrando bem o barbante no meu pulso e dizendo “tem que tomar cuidado com esse, é o mais bonito que tem, não vá perdê-lo”. — Dipper sorria de leve com a boca e os olhos, como se finalmente reparando o quão trivial era. — Prometi aos meus pais e ao vendedor que iria tomar cuidado e depois de um tempo me afastei do picadeiro, entrei num bosque próximo e sai correndo atrás do balão, achando que poderia pegá-lo ou chegar mais perto dele se corresse muito rápido. Não entendi de cara que era só puxar o cordão para conseguir o que eu queria. Eu me esqueci do mais óbvio. O fio desamarrou do meu braço e o vento levou o balão embora. Dez minutos depois os meus pais me encontraram chorando, perdido no meio da floresta. Acho que a promessa que fiz a eles e a mim mesmo, de que não poderia perder algo tão lindo, e perceber que eu nunca mais veria aquele mesmo balão de novo na minha vida mexeram um pouco comigo. E a bronca de preocupação que os meus pais me deram ajudou menos ainda. — Suspirou, e seu olhar voltou a se perder em algum canto escuro do quarto. — Só sei que a partir daí eu comecei a repreender qualquer minha de correr atrás de algo que eu queria. Nunca falei disso pra ninguém, mas acho que foi esse acontecimento que iniciou tudo.

— Iniciou tudo o quê? — questionou Bill, cuidadoso.

— A minha tendência de autossabotagem.

A testa de Bill se inclinou um pouco para o colchão, quebrando o contato visual para conseguir se interiorizar.

— Sei que é bobo, mas acho que isso me atrasa um pouco até hoje. — Olhou para Bill, remendando um olhar no outro. — Tenho medo de ficar perdido naquela floresta assustadora de novo. Mas, ao mesmo tempo, eu também quero muito o balão. Entende?

— Mas hoje isso aconteceria diferente, Dipper — contornou Bill, penetrando no raciocínio metafórico de Pines. — Afinal, hoje você saberia o que fazer para conseguir obter o balão. Você passou por muita coisa, Carneirinho. E olha que isso está vindo de alguém que ficou sendo escravizado por quase um trilhão de anos. Eu sei como ninguém o que é se sentir incapaz de agir, de defender o que você acredita e sente. Mas se teve uma coisa também que esses milhares de anos me ensinaram é que não valia à pena.

Dipper fez uma expressão de “falar é fácil”, que desencadeou Bill a responder:

— Por qual outro motivo você acha que eu te paquero tanto assim? Por que acha que eu sempre aproveitava qualquer chance que eu tinha de seduzir e tentar flertar?

O exemplo mexeu tanto com Dipper que ele jurou sentir a visão duplicar.

— Teve um momento em que eu tive que dar um basta e falar “foda-se a Guarda, foda-se Time Baby” para criar um Índigo – dois ainda por cima! Eu não queria mais aquela vida. Então fiz o necessário: fui contra o que o resto da minha sociedade me mandava fazer.

— Você acha que devo assumir um compromisso – uma vida— com Stanford caso ele ainda sentisse o mesmo por mim? — Dipper não acreditou que tinha dito aquilo, mas se parabenizou mentalmente por conseguir ter falado em voz alta.

— Se é isso que te separa de ser alguém feliz consigo mesmo... sim. Você é uma ótima pessoa, Dipper. Não estaria onde está se não fosse. Eu não estaria aqui se te achasse uma boa pessoa.

Era a primeira vez que Dipper tinha aquela conversa com alguém diretamente. Nunca conseguia falar sobre sua paixão polêmica sem ter que dar piruetas ao redor da questão central. E Bill, por mais que o último, era a única pessoa que poderia ouvir. Afinal, não tinha sido criado no mesmo mundo que Dipper, não tinha concepções de laços familiares nem de morais duvidosas muito bem definidas.

— Mas eu também amo você assim como amo ele.

— Então por que você não namora nós dois? O que impede nós três de ficamos juntos?

O coração de Dipper parou de bater. Tinha oficialmente deixado Bill ultrapassar mais aquela outra camada. No fim, no fim, à raiz da sua alma. Finalmente, ele tinha chegado ali. Naquela possibilidade. Aquela que ele já tinha cogitando há um tempo, mas que tinha medo de nomear em voz alta até mesmo dentro dos seus pensamentos.

— Talvez seja porque eu sinta que esse possa ser um novo tabu em cima de outro tabu. — Os ombros de Dipper caíram.

Bill deu um risinho delicado e encorajador. — E quando a sua vida foi alguma vez normal, Dipper? Não foi você mesmo que disse isso hoje mais cedo? Foi amigo de infância de um garoto de outra dimensão. Passou a sua pré-adolescência investigando e caçando criaturas sobrenaturais em Gravity Falls. Salvou o mundo pela primeira vez aos 12 anos. Salvou pela segunda aos 23. Esse é quem você é! E você não tem culpa das coisas ruins que vieram com isso.

— Parece que nasci na realidade errada.

— Pois é. E é por isso que te amo.

Dipper virou o rosto na direção oposta com pressa, temendo que a iluminação vermelha do quarto não fosse o bastante para camuflar o vermelho que florescia sob seu rosto. Bill esticou um braço e traçou o indicador no queixo dele. — Ei — ele disse, trazendo o rosto de Dipper de volta para o seu. — Não quero que você esconda de mim o que sente nunca mais, ouviu bem? Não quero que se sinta culpado pelo o que você não tem controle sobre. E também quero que sejamos honestos assim um com o outro sempre. Vamos prometer: sem mais segredos?

Dipper tinha certeza de que fazia a cara mais apaixonada da sua vida. E parecia demais, porque até Bill disfarçou-se ao retrucar com: — Que é? Sou mortal agora. Tenho uma vida só pra aproveitar, não quero desperdiçá-la andando em círculos. — Não foi o bastante para que ele diminuísse o clima que subia entre os dois. O defeito de Bill era ainda não saber totalmente como ser humano. Poderia fugir de um assunto ou disfarçá-lo com perfeição quando era uma forma geométrica, mas não quando tinha um corpo, complexo, cheio de hormônios e sentimentos imprevisíveis, caras e trejeitos que deduravam toda a honestidade que Bill poderia dar. Essa era a real beleza que Dipper via em Bill: A forma com que ele era mais transparente do que qualquer outro humano legítimo que conhecera. A forma com que ele era o seu maior mistério, e ao mesmo tempo um dos mais fáceis de solucionar.

Mas tinha uma coisa na qual ainda não estava completamente transparente:

— O que nós somos, Charlie? — Dipper perguntou mesmo que retoricamente, criando coragem até conseguir levar sua mão até a bochecha de Bill. Por debaixo de sua palma, Dipper sentiu o músculo da mandíbula de Cipher tensionar. Os olhos do demônio se iluminaram, indulgentes à influência do toque.

— Somos uma coisa única — Cipher ronronou a melhor resposta do mundo e roçou seus lábios na palma aberta de Dipper. — E extremamente delicada. — Sua boca ia descendo à medida que ele falava. — E extremamente linda. — Finalmente chegando ao pulso, depositou o beijo sob a veia saltada de Dipper. — Ficamos tanto tempo brincando de gato e rato que não sabemos mais parar.

— Mas tem uma coisa que eu não saberia fazer naquela época.

Bill franziu o cenho. — O quê?

— Isso.

Dipper pressionou seus lábios contra os de Bil. Daquela vez, ambos corresponderam. Estava fadado a acontecer. Desde a primeira vez em que Dipper vira Bill no Exílio, o jeito com o que seu coração palpitava já denunciava que um beijo aconteceria mais cedo do que tarde.

A mão que Bill colocou na lombar de Dipper silenciou o raciocínio do garoto, fazendo Pines se lembrar de viver no presente. Saboreava o gosto de Bill – o quão doce e nostálgico era, como chupar de novo uma bala da sua época de infância. Mandava Dipper de volta para o melhor que o seu passado ofereceu, e fazia-o se arrepiar com o melhor que o futuro ainda ofereceria. Segurou Bill nos ombros, pedindo-o para levar com calma – queria mais, claro, mas também não queria que aquilo terminasse tão rápido.

Bill mordiscou o lábio inferior de Dipper por um segundo a mais do que o adequado, e um arrepio foi do peito à virilha de Mason. Um gemido escorregou da sua boca. O muro entre os dois virou fumaça, nublado como o juízo de Pines.

— Fica de frente pra mim — Bill quebrou o beijo por um segundo para arfar. Dipper obedeceu. Com as mãos fechadas em volta dos dois punhos de Pines, Bill deitou-o na cama, segurando os braços por cima da cabeça enquanto se joelhava acima de Dipper. — Eu te quero assim... — cochichou, a voz melada.

Com a ponta do nariz, Bill percorreu o corpo de Dipper até chegar à borda da camiseta e levantá-la. Ajudou Pines a se livrar da parte de cima e voltou a deslizar sobre o seu peito exposto. Sua pele, fria; aroma, enxofre e terra, mas suave, acalmando a pressa de Bill como se fosse de camomila. Bill desenhou uma trilha de beijos do umbigo ao pescoço de Dipper, e, depois, fez o caminho de volta, parando com os lábios salivados no pelo inferior, passeando pelo caminho da felicidade de Pines.

Dessa vez, Bill puxa o elástico e abaixa a cueca do outro para continuar sua expedição. A mente de Dipper se abstraí, ficando melhor do que uma tela de Dalí, e ele se transforma numa nuvem de sensações, retalhos de memória e sílabas de sentimento. Bill é o pincel, preenchendo cada espacinho em branco na alma de Dipper.

Quando finalmente conseguiu voltar ao seu estado racional, Dipper notou que a boca de Bill já estava em volta do seu volume. Antes que já estivesse a pronto de se perder novamente, Dipper puxou Bill de volta pra cima, alinhando rosto com rosto.

— Bill — murmurou, a voz soando açucarada.

— Que foi? — atendeu, com a língua levemente esfregando-se acima do seu próprio lábio inferior, como se também pudesse saborear do açúcar na boca de Dipper.

— Eu não sei se... — Uma pancada de constrangimento amassou o pulmão de Dipper. — Não sei se posso ir até o final hoje, entende? Mas te quero, Bill. Te quero muito.

— Tudo bem. — Bill assentiu, a resposta saindo aos pedaços enquanto ele tentava manter o fôlego.

— Poderíamos fazer outra coisa.

Bill uniu suas sobrancelhas e, por um segundo, pareceu vasculhar por uma ideia.

— Tipo assim?

Com a calça já um pouco abaixada, Bill esfregou a ponta do seu volume contra o de Dipper. A sensação gerou um arrepio em Dipper.

Frottage. Nunca tinha tentado aquilo antes. Era algo que parecia distante demais para ele, como se fosse uma lenda urbana pornô que sua imaginação houvera adotado com o passar dos anos e da dupla puberdade que teve.

— Há uma primeira vez pra tudo — disse Dipper.

— Perfeito — concordou Bill, com um sorriso excitadamente perverso, os lábios estalando de tão molhados.

Curvou-se para beijar mais Dipper. Enquanto se amassam contra o outro, uma mistura de suor, saliva e calor, Cipher se afastou um pouco para confessar:

— Eu senti tanta falta sua.

Bill entrelaçou os dedos com os de Dipper. O sangue bombeava dentro dos ouvidos de Pines. Aquele mundo pareceu congelar sua trajetória por um instante, e Dipper deixou-se admirar o perfeito estrago. Deixou-se sumir completamente, sentindo ainda viva aquela sua versão mais antiga, de quando ele tinha 14 anos na realidade passada e perdera sua virgindade com Stanford – com a paisagem ao redor deles imortalizada em uma de suas fotografias mentais. Era como ter toda aquela singularidade de volta, só que com outra pessoa. A lua filtrada pelos rubis enegrecia e envermelhava o quarto com um banho de linhas de luz, um traço em específico deslizando pra cima e pra baixo sobre o nariz de Cipher à medida em que ele ia e voltava sobre Dipper, criando prazer entre os pares de perna.

— Também senti saudades — respondeu. Não poderia ser mais verdade. E só naquela noite, especialmente agora, Bill tinha lhe dado o que ninguém havia sido capaz de lhe dar há anos:

Esperança.

De que as coisas ficariam bem independente do que ocorresse. De que havia uma saída linda para o dilema de Dipper, mesmo que esta não fosse exatamente um atalho. De que, diferente do que ele passara anos acreditando, haviam, sim, muitas pessoas ainda dispostas a ficar do seu lado.

— Não vou mais ficar longe de você. — Bill desenrolou-se feito um novelo de lã que descarrilhava ladeira abaixo, suas emoções empesteando o ambiente numa onda quase de magia. A Ursa Maior coçou na testa de Dipper.

— Oh, Bill. Disso, eu tenho total certeza.

Dipper viu o brilho azulado da sua marca de nasçenca refletir na testa suada de Cipher. Desde sempre, ele havia sido diferente. Do berço, já era fadado àquela vida incomum, cheia de mistérios e possibilidades assustadores de que às vezes nem ele mesmo sabia.

Afinal, estava espiritualmente conectado àquelas duas outras pessoas únicas.

Bill. Ford.

Os dois opostos se coexistindo para gerar o equilíbrio.

Suas mãos agora livres se apertaram em volta da cintura de Charlie, como se tivessem medo de que Bill sumisse de novo ao menos que bem segurado, medo de que Bill voltasse a ser apenas um personagem imaginário, uma miragem estonteante do seu passado. O corpo de Bill passou a tencionar. Uma coceira gelada se acumulava sob a virilha de Dipper, ameaçando uma explosão.

— Tô quase... — gemeu Dipper, tentando usar sua mão trêmula para se sustentar no peito de Bill.

Entretanto, Bill a afastou e deitou-se mais em Dipper, mordendo seu lábio e provocando maior fricção entre os dois. Seu hálito quente e molhado enroscou-se na orelha de Dipper. Bill foi da sua boca até seu pescoço, silenciando os próprios gemidos ao pressionar a língua na artéria saltada da sua clavícula, e depois nos seus mamilos. Mesmo sem abrir a boca, Dipper soube que Cipher também estava perto. Reconhecia ainda o jeito que sua costela que contraía, a velocidade com que sua carne se comprimia a dele, a força concentrada com o que fechava os olhos.

Os dois deixaram escapulir um gemido estranhamente sincronizado, que pareceu fundir os dois. Foi só depois que as pernas pararam de tremer, que Dipper reparou no líquido que escorria do seu umbigo à cada lado da cintura, empoçando nos lençóis. As unhas de Cipher estavam cravadas nas coxas de Mason, deixando marcas pontiagudas e extensos vergões na carne. Ofegavam, com suas bocas ainda pairando próximas, como se tentassem oferecer ar uma para a outra.

Debruçaram-se sobre o colchão, incapazes de falar mais nada dentro dos próximos trinta segundos.

— Eu estava mesmo precisando disso — ofegou Dipper.

— Sabia que estava. — Dipper conseguia ver o sorriso metido de Bill mesmo sem olhar para seu rosto. Ele já tinha aquele tom de voz, exclusivo à presunção. — Quer fazer de novo? — perguntou, com uma risada constrangida, duplamente sardônico e sedutor.

Dipper o acompanhou no riso. Em seguida, passou o braço ao redor da cintura de Bill e puxou-o de volta para si. — Vem cá — mimoseou, plantando mais um beijo demorado nos lábios dele.

Um feixe de luz azul cortou o quarto, quebrando a normalidade avermelhada do luar e os cristais. Dipper abre os olhos e o seu coração começa a martelar contra o seu pulmão. Sem ar de novo. Porque, na parede oposta a eles, raízes de energia azul se alastravam e um novo painel mágico começara a abrir uma tela na parede.

Com o antebraço, Dipper afastou Bill com o susto. — Bill! — gaguejou.

Bill virou o rosto, já identificando o tom alarmado de Dipper, pronto para reagir.

— O que é isso? — perguntou Bill, de boca aberta.

— Aconteceu comigo ontem — Dipper apressou. — Foi quando eu te vi no Exílio.

— A nossa conexão Índigo. — Então os olhos dele se esbugalharam, perplexos ao descobrir que: — Será que termos ficado íntimos desse jeito agora meio que... despertou isso de novo?

Os ombros de Dipper já tremiam de apreensão. — Você acha que... vai me mostrar o F...

Suas palavras sumiram assim que a janela da magia clareou, definindo um cenário: um campo aberto; entre as longas lâminas de grama alta, margaridas reluziam com suas pétalas brancas e miolos amarelos e brilhantes como gemas; na linha do horizonte, árvores se espichavam, fatiando o sol poente em várias secções. Eram pinheiros.

A barra de um jaleco entrou pela quina da imagem, acompanhada de grossas botas que amassavam a relva de acordo com o que ele andava. A ponta vermelha de um suéter escapava pela manga longa do sobretudo.

Dipper achou que iria morrer.

As colinas veraneais de Gravity Falls. E, entre sua paisagem bucólica, Stanford Pines passeava tranquilamente.

“Que merda é essa?”

Quando já ocupava grande parte do feed, de costas para os seus dois observadores chocados, Ford fez um aceno. Estava chamando alguém de fora do enquadramento para se aproximar.

Ele não estava sozinho.

Que merda é essa?!

Bill batia freneticamente o pé no chão feito um cão ansioso.

Na janela dimensional, feito um telão de tv, que ele e Bill assistiam como se fossem torcedores vendo um campeonato, apareceu o companheiro de Ford.

Era Dipper.

Um novo, segundo Dipper. Ainda com sua aparência de 12 anos, aquele de colete de pesca, boné da Cabana do Mistério, e meias ¾ espichadas até o topo das canelas lisas e brancas.

“Não. Pode. Ser.”

Aquele segundo Dipper abraçou Ford, que correspondeu.

— Bill... — lamuriou o primeiro. Bill virou os olhos espantados para Dipper, pálido. — Me segura. Vou cair.


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo foi um prato cheio pras BillDip shippers, né?



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