Caixa. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 1
Surpresa.




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Hoje não era um dia especial.

Dan sabia disso. Tinha certeza. Não era seu aniversário, nem natal, nem ano novo, nem Páscoa, nem festa junina, nem mesmo um daqueles feriados menores como Cosme e Damião ou dia das bruxas/do Saci. Era só mais um dia normal.

Ou seria, se não tivesse um presente sobre a mesa da cozinha.

Não fazia sentido.

Claro, com certeza havia uma explicação racional para tudo isso. Várias pessoas poderiam ter deixado aquilo ali, seus pais, sua irmã, qualquer um de seus primos, seus amigos. Todos passaram por lá em um momento ou outro, alguns até tinham a cópia da chave, não é como se fosse um caso sobrenatural ou um caso de arrombamento.

Então por que era tão difícil abri-lo?

Não difícil de complicado, a frágil fita vermelha e papel de embrulho colorido não ofereciam nenhum desafio, mas difícil. Como se algo em si soubesse que não devia abrir.

Talvez a parte que mais o incomodasse era não ter remetente.

Uma etiqueta com remetente e destinatário seria ideal

Um presente sem etiqueta ou com etiqueta em branco seria compreensível.

Mas uma etiqueta com seu nome escrito perfeitamente no destinatário e um espaço em branco no remetente era... Estranho. Incômodo. Perturbador.

Dan tomou um gole de café e encarou a pequena caixa. Obviamente não havia passado pelo correio, fora colocada diretamente sobre a mesa.

Tomou outro gole, se aproximou, ouviu. Sem sons de tique-taque, não devia ser uma bomba.

Outro gole, a girou na mesa observando minuciosamente o embrulho. Sem buracos minúsculos para a entrada de ar. Não devia estar vivo.

O último gole, levou as mãos ao laço da fita vermelha. Seria tão fácil apenas abrir logo e descobrir o que era de uma vez por todas. Mas algo ainda estava errado. Ele não estava esperando nada. Não pediu nada. Não tinha motivos para receber nada.

Dan detestava coisas que não faziam sentido.

O alarme de seu celular tocou. Hora de ir ao trabalho.

O pacote podia esperar.

*

Tudo passou normalmente. O trabalho, os colegas, os amigos, as reuniões. O mundo girava como se não houvesse um pacote misterioso sobre a mesa da cozinha de Dan.

A princípio, ele achou que era uma brincadeira idiota e alguém se delataria por conta própria. Um olhar mais curioso, uma pergunta inusitada, uma risadinha discreta, qualquer indício de culpa. Mas nada aconteceu.

Alguém estava brincando com ele, não estava?

Mas também não fazia sentido. Ninguém tinha nada a ganhar com isso. Nenhum de seus amigos faria uma pegadinha assim e ele não era o tipo de cara que fazia inimigos. Um presente sem remetente simplesmente não se encaixava.

Parte de si queria ignorar, fingir que nunca aconteceu. A parte controladora e sedenta por rotina. A maior parte.

Talvez tivesse sido só um pesadelo, tentou se convencer apesar de ter investigado aquela coisa enquanto tomava seu café matinal.

Talvez desaparecesse antes de ele voltar para casa.

Talvez nunca estivesse estado lá de fato.

Era um pensamento estranhamente reconfortante.

*

O presente ainda estava lá quando ele voltou.

Seu papel de embrulho alegre praticamente zombava de Dan, impondo sua presença errada e ilógica. Uma peça que não se encaixava. Um detalhe fora do lugar.

Se esforçando para ignorar aquela afronta, Dan seguiu com sua noite normalmente. O relógio marcava 23:01 quando entrou no banho, no qual ficou por exatos 12 minutos como sempre. Fez a barba com perfeição, penteou os cabelos, escovou os dentes vinte vezes de cada lado, mais língua e bochechas. Passou fio dental em todos os 28 dentes, já que removeu os quatro sisos, e bochechou enxaguante bucal por dois minutos.

Estava na cama às 23:37, despertador já acionado, bem como o alarme que avisava a hora de ir para o trabalho. Agora era só se virar e ter uma boa noite de sono. Sono regular é um dos pilares da vida.

Mas havia um presente sobre a mesa.

Dan sabia que teria que lidar com ele em algum momento, mas abri-lo sem saber o que esperar estava fora de questão. Ele também poderia jogá-lo fora, mas para isso precisaria reconhecer sua existência.

Dormir. Era só dormir.

*

Ele acordou no quarto toque do despertador, como sempre, e o desativou até a manhã seguinte. Então levantou, dobrou o pijama, vestiu as roupas do trabalho, escovou os dentes, preparou um café, fez duas torradas perfeitamente crocantes, sentou à mesa.

A mesa que tinha um presente errado e misterioso.

Mas Dan não queria dar ao presente a satisfação de ter a existência reconhecida, então tomou seu café e comeu suas torradas. Era sempre um pouco estranho tomar café preto depois de escovar os dentes, mas ele sempre tinha que escovar os dentes ao acordar. Era uma questão de costume. E logo o amargor levava embora o sabor artificial de menta.

A caligrafia da etiqueta era muito perfeita. Escrita à mão. Coisa rara hoje em dia.

A fita tentadora reluzia fracamente ao brilho das luzes artificiais.

Dan não conseguia se fazer estender a mão e sequer tocar o pacote herege, quanto mais abri-lo e ver o que continha.

Ele se escovou de novo, amarrou os sapatos com um nó duplo, pegou sua pasta, esperou ao lado da porta. Pontualmente, seu alarme tocou. Hora de sair.

*

Seu reflexo na janela do carro mostrava uma mecha de cabelo fora do lugar. Inaceitável. Dan a arrumou com um movimento fluido e entrou no escritório.

*

Os relatórios foram preenchidos de acordo com o protocolo, caneta preta de tubo transparente e sem passar das linhas, e encaminhados aos setores competentes. Cada ficha foi organizada, cada sistema foi revistado minuciosamente por erros de logística. Tudo funcionando como uma engrenagem bem calibrada. Tudo perfeito.

Mas ainda havia um presente sobre a mesa da cozinha.

Na sua usual pausa de dois minutos para o banheiro, Dan viu a mesma mecha teimosa se projetando para cima e, molhando as mãos, a alinhou de novo. Isso devia resolver.

Ele repassou alguns protocolos e revisou formulários importantes.

Voltar pra casa significaria dar de cara com o maldito embrulho. Dan não queria isso. Mas seu turno acabou, como sempre acaba, e a noite chegou, como sempre chega. Não ir embora não era uma opção. Não voltar pra casa também não. Qualquer atraso comprometeria significativamente seu cronograma.

O presente continuava intocado sobre a mesa.

Dan seguiu sua rotina normalmente.

Seus pesadelos envolviam um embrulho alegre provocativo e uma caixa infinita que exigia ser aberta.

O despertador tocou pontualmente.

*

As torradas e o café não pareciam o bastante para mantê-lo de pé pela manhã, mas ele não prepararia outra coisa. Seria um atraso no cronograma. E o que ele prepararia senão isso? Era uma ideia ridícula.

Ele precisava trocar aquela toalha de mesa, mas para isso teria que mover o presente, e tocar no presente era reconhecer sua existência. Reconhecer sua existência era ter a obrigação de abri-lo. Abri-lo era.... Aí que está, Dan não sabia, não fazia ideia, só sabia que não queria abrir.

Ele penteou os cabelos com cuidado extra e foi para o trabalho ao toque do alarme.

*

O presente ainda estava lá.

O presente que ninguém deu.

O presente que não devia estar lá.

A tinta da caneta acabou. Ele devia ter comprado uma nova ontem. Onde ele estava com a cabeça? Que desleixo. A caneta azul teve que servir.

No caminho para o mercado, comprou uma nova caneta preta, pão para torradas e, depois de um segundo de ponderação, um gel fixador para cabelo. Pagou com dinheiro, na quantia exata de notas e moedas.

O presente o esperava sobre a mesa como sempre.

*

Dan acordou com o quinto toque do despertador, não o quarto. Isso era inaceitável. Um claro sinal de preguiça e indisposição, que por sua vez levavam ao desemprego, à depressão, a picos de ansiedade e à morte precoce por ataque cardíaco fulminante.

Dobrou o pijama, se vestiu, se escovou.

O café amargo era revigorante, mas as torradas passaram um pouco do ponto. Que vergonha.

Os fios rebeldes continuavam lá, mas um pouco de gel fixador garantiu seu penteado impecável e respeitável.

A caneta preta estava em seu bolso.

O alarme tocou. Ele foi trabalhar.

O presente ficou sobre a mesa, o observando, o esperando, zombando de sua existência patética. Dan o odiava. Mas não dá pra odiar algo sem reconhecer sua existência, então Dan não o odiava.

*

Um dos cantos estava rasgado. Não fazia sentido. Não fazia. Ninguém tocou no embrulho. Ninguém visitava a casa há dias. Dan não o tocou. Não havia cães ou gatos ou ratos, nem mesmo baratas. Nenhum ser vivo para danificar o pacote. Nada para rasgar o papel de presente.

O chefe de Dan chamou sua atenção por um pequeno erro no preenchimento de um formulário. Ele se desculpou enfaticamente e releu todos os guias e protocolos da firma para garantir que o erro não se repetiria.

A mecha rebelde de cabelo voltou a incomodar no espelho. Apesar de não se projetar para cima, a protuberância que gerava incomodava Dan. Talvez ele precisasse de um gel mais forte.

Seus colegas ainda lhe davam ‘bom dia’. Nenhum deles parecia saber do presente.

Bando de inúteis.

*

Dan precisou de um segundo despertador, porque o primeiro não o acordava. Noites mal dormidas. Sua expectativa de vida deve ter caído pela metade, pensou amargo.

Tão amargo quanto o café matinal. O pó estava acabando. Precisava se lembrar de comprar mais.

A toalha de mesa não trocada o estava enlouquecendo. Quanto tempo até começar a atrair baratas? E outras pestes indesejadas?

Dan encarou o presente como se esperasse que seu olhar o derretesse. Aquela era a fonte de tudo. O paciente zero. A peça de quebra-cabeça que nunca encaixava. O fio de cabelo fora do lugar. A mancha chata e persistente na prataria perfeita.

Um cheiro inesperado e errado tomou conta da cozinha.

As torradas queimaram.

Dan mastigou o pão carbonizado por princípio, se escovou e foi trabalhar. O gosto de queimado permaneceu em sua boca a manhã toda.

Era um gosto tão errado.

*

Ele não estava dormindo o bastante. Sabia disso.

Seu rendimento caiu. Seu chefe não estava feliz. Desemprego é uma das causas de suicídio, depressão e alcoolismo.

Dan esqueceu de passar no mercado e comprar café. Que erro estúpido. Como ele se manteria acordado amanhã? Mas não podia ir agora. Se saísse agora, voltaria tarde demais para o banho da noite e teria que toma-lo na manhã seguinte, o que significaria acordar mais cedo, o que representaria menos sono, menos produtividade, mais chances de desemprego e de cair numa depressão alcoólatra e suicida.

O papel de presente parecia manchado, mas isso seria ridículo. Dan sabia que jamais derramou nada nele, nem mesmo uma gotícula de café.

Não importava. Ele estava cansado. Só queria colapsar na cama e se preocupar com isso amanhã.

*

A mecha teimosa de cabelo parecia ainda mais selvagem pela manhã. Talvez tivesse sido a posição em que dormiu. Talvez puro azar. Talvez conspiração cósmica. Dan não se importava.

Ele pegou uma tesoura e cortou fora a mecha teimosa.

Problema resolvido.

Não havia café para tirar o gosto de pasta de dente da boca, então Dan não se preocupou em fazer as torradas que acompanhavam o café. Era uma perda de tempo mesmo. Seu estômago vazio grunhia e se revirava, mas ele ignorava. Ele era muito bom em ignorar.

O presente ainda o encarava na mesa da cozinha.

Ainda era cedo demais para ir para o trabalho. Dan o encarou de volta.

O embrulho levemente rasgado parecia um convite.

O alarme para ir ao trabalho não soou ainda.

Seria tão fácil puxar o laço vermelho e desembrulhar o presente que o atormentava há dias, semanas, meses, anos, vidas. A noção de tempo não importava. Não havia mais rotina para manter o tempo constante, então ele apenas escorria por entre seus dedos.

Sem alarme para ir trabalhar.

Se aproximou cada vez mais, hipnotizado.

Sem alarme para trabalhar.

Pôs os dedos em pinça na borda da fita e a puxou. O laço se desfez.

Sem alarme para trabalhar.

Puxou o rasgo do embrulho para aumentá-lo, então arrancou o papel sem se preocupar em conservá-lo, dobrá-lo ou mesmo jogá-lo no lixo. O chão ia servir.

O alarme para ir trabalhar tocou. Pontual como sempre.

Dan jogou o celular pela janela e abriu a caixa.


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