Veris: Sobre Rainhas e Reis escrita por G J Laudissi


Capítulo 4
III. Saudação


Notas iniciais do capítulo

Esse é maior que os outros, até pensei em dividir mas não acho q seja o melhor para esse capítulo em específico... Então senta que lá vem história kkk
Fiquei mto feliz com o comentário que recebi no último capítulo, agora veremos um pouco mais do Agni :) obrigada a todos que estão lendo!



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O burburinho que podia ser ouvido desde o início do corredor longo e frio cessou assim que as dobradiças das portas que, pelo som, eram pesadas anunciaram a chegada da convidada de honra e motivo do evento.

 Maegan sentia a presença de centenas de pessoas paradas diante dela, especulando, tentando enxergá-la. Seu corpo aquecia contra a sensação dos olhares, que pareciam quase um toque físico. 

 Sabia que o silêncio era indicativo de que todos se demoravam a analisando. E, apesar de não poder ver nada a sua volta, sabia muito bem o que viam. 

É claro que qualquer outro wiha presente em festas numa corte agni seria visto como um animalzinho exótico, mas Feoras Drava, seu pai adotivo, não havia feito questão de minimizar qualquer impacto. Providenciou tudo para que se vestisse como uma rainha, não esquecendo sua coroa. 

A máscara de ouro que usava era pesada e cobria-lhe a parte superior do rosto, intrincada de arabescos se revolvendo do centro em direção às pontas, numa figura que lembrava o sol, maior e em destaque em meio a pequenas outras curvas e ondas decorativas. Cada um dos raios laterais e da parte de cima seguia para fora, estendendo-se para além do plano de sua face, despontando por pelo menos um palmo de comprimento além dos cabelos como diversas lanças de luz. Não era uma coincidência que aquele acessório lembrasse algumas das representações da Deusa Primordial, chamada Una pelos mortais que jamais seriam capazes de pronunciar seu verdadeiro nome.

 Feoras havia dito a ela momentos antes de Maegan deixar para trás Vesi, a capital Wiha onde morava desde os 10 anos, que não se deixasse intimidar. 

 Era bem sabido que os Quatro Domínios, apesar de logisticamente interdependentes, não se misturavam socialmente. Cada um sentia-se superior aos outros por motivos diferentes e convenientes para seus próprios objetivos, inferiorizando os demais na mesma medida. 

O povo agni era claramente preferido pela Deusa Una, uma vez que o fogo que guiava aquelas terras era o mais próximo da Luz da Primeira Deusa, a Mãe. Os wiha não podiam ser menos que os melhores se o elemento que os regia era essencial a todos, compunha todas as coisas em grandes ou pequenas escalas.  Mas os midiri reivindicavam esse lugar de vantagem porque obviamente a terra fornecia o alimento, o espaço, a vida, e assim por diante. A lista de razões era infinita para cada um deles, cada qual com sua própria perspectiva. Essa memória social criada e enraizada em cada parte do território havia garantido, quase que na totalidade, espaços muito bem definidos e ocupados sistematicamente, também orientando de maneira rígida a gama de tarefas cumpridas por cada um dos povos.

Tal divisão podia não incomodar conscientemente, mas complicava as coisas em momentos como aquele. 

Uma garota wiha mandada para a Corte Real Agni, por mais que devido a acordos diplomáticos entre os Domini — e vontade maior do Domino Agni — podia muito bem ser recebida com certa hostilidade, por mais velada que fosse; afinal, não era um deles, prestaria meramente um serviço aos olhos de muitos, porque deveria ser recebida com tanta pompa? 

 Até onde a gratidão e o desespero daquele povo poderiam ir? Não sabia. Mas Drava queria garantir que ela parecesse o mais essencial possível, por isso aquela espécie de coroa e toda a montagem de sua vestimenta de forma que sua figura na totalidade gritasse nobre e digna. Salvadora.

 Como de costume, os wiha não tinham muitas restrições em mostrar sua pele dourada, aquele tom bronzeado que não podia ser encontrado em nenhum outro dos Estados. Para eles, não era apenas uma consequência do calor e da vida tipicamente vivida nas praias. A pele bronzeada era como se beijada pelos lábios da própria Mãe, marcada com sua Luz. Suas roupas claras e leves tinham intenção não apenas de adequar-se ao calor Wiha, mas de criar um contraste claro e deixar em evidência seu lado Sagrado. Eram, entre outras funções, o Domínio da Religião, afinal; onde ficavam os principais templos e nasciam todos os sacerdotes e sacerdotisas. Era com essa mesma intenção que eram marcados desenhos decorativos e arabescos com linhas finas em tinta branca sobre a pele, que para ocasião haviam sido colocados espiralando-se e envolvendo os ombros e descendo pelas costas ao longo da linha da coluna. 

 Seguindo a típica moda da Corte das Águas, o longo vestido branco possuía  uma saia que respondia facilmente ao vento, levemente insinuando uma transparência, e o busto era formado por duas faixas compridas, atadas com um laço, ou nó, atrás do pescoço e que ainda assim deixavam tecido suficiente para que escorressem pelas costas nuas até próximo da cintura. O corte garantia um pedaço de pele exposta entre os seios — a qual acabava na altura da última costela — onde caia uma fina corrente de ouro, desaparecendo pelo decote. A jóia envolvia os ombros também, delicadamente presa na parte da frente e logo atrás, descendo em formas de meia lua até metade do braço. Nós pés, um calçado também clássico — Maegan deveria representar tudo sobre sua corte —, da cor da pele, que prendia a sola fina aos pés com uma tira visível a partir do dedo maior do pé e os outros quatro, dividindo-se em duas e voltando a encontrarem-se após serem enroladas ao redor do tornozelo. 

 Se tivesse chegado em qualquer outra época do ano, não poderia ter usado aquelas roupas ou congelaria até a morte, uma vez que as estações agni costumavam ser bem mais frias do que em Wiha; no verão, no entanto, a temperatura era confortável o suficiente para vestí-las sem maiores problemas além de um leve arrepio causado pela brisa constante no alto da colina onde o Castelo fora construído, com vista para toda a capital estendida a sua frente como um tapete de retalhos vermelho, cinza e negro — cores típicas do material usado nos telhados e paredes de Teine, a capital Agni, e de todo o Domínio do Fogo.

 Sentiu o braço de Elysian retesar-se sobre suas mãos ligeiramente, como se indicasse que já estavam há tempo suficientes parados — ele com o braço arqueado para que ela segurasse, podendo guiar-se pelo local com segurança —, e que provavelmente a multidão dos cortesãos estava esperando algum tipo de reação da garota enviada. Ou isso, ou aguardavam a reação de seu rei, que não demorou muito mais. Logo um farfalhar de tecidos foi ouvido, passos pequenos e leves dos presentes em conjunto eram o indicativo necessário para saber de quem era o ressoar mais pesado e decidido de botas que se sobressaia.

 O silêncio recaiu novamente, ainda mais denso com a tensão expectante, o único som que restava era o ritmo constante daquele caminhar contra o chão de pedra polida e fria. 

 Ela sentiu que ele estava parado bem na sua frente. Não apenas pela cadência dos passos, soando mais e mais altos a cada segundo e então cessando abruptamente; não por causa da postura de Elysian, ainda mais rígida do que anteriormente, ou de sua respiração que de repente não era mais captada pelos treinados ouvidos da garota wiha. 

Era aquela extensão de seus sentidos — tão natural quanto caminhar ou comer, às vezes mais instintivo do que qualquer uma dessas coisas, quase como uma respiração ou um pensamento que surge involuntariamente — que Feoras tão veementemente havia avisado que escondesse por todos aqueles anos. Era por causa dela que Maegan se tornara tão capaz de viver sem sua visão, orientando-se no escuro. 

As poucas pessoas com quem ela tinha contato frequentemente na luxuosa encosta à beira da praia onde morava com seu pai comentavam entre si que ela se movia contando passos e havia desenvolvido um metódico mapa em sua cabeça, por isso era tão desenvolta, e evitavam mudar móveis e objetos de lugar enquanto providenciavam a limpeza da moradia. Elas, é claro, não sabiam que a memória da loira não era nem um pouco boa para números, e ela jamais seria capaz de guardar um mapa mental de todos os lugares em que costumava estar baseando-se unicamente neles. 

Nem Ely — o garoto de 11 anos que costumava trabalhar para Feoras e recebeu a tarefa de acompanhá-la ao Domínio do Fogo — tampouco tinha qualquer conhecimento disso, fazendo questão de empenhar-se sempre em conduzi-la por todos os lugares bem de perto, agarrando seu braço ou oferecendo-o a ela e avisando cada minúscula mudança no terreno a frente, além de pronunciar em voz alta a contagem dos passos dela em cômodos que ela deveria permanecer mais tempo do que os outros, como os aposentos que recebera no Castelo de Teine assim que chegara.  Por mais que às vezes pudesse irritar-se com toda a atenção do garoto justamente por não precisar de todas aquelas informações, não o fazia. Ele estava sempre tão empolgado e parecendo genuinamente feliz em ajudar que nada restava a ela senão retribuir a gentileza, algumas vezes com sorrisos curtos, outras bagunçando-lhe os cabelos macios e sempre emaranhados que deviam roçar os ombros dele quando soltos.

 Ainda criança, poucos meses após ser levada à capital, Feoras tinha notado seu hábil senso com as direções, e, sabendo que era impossível que enxergasse qualquer coisa, perguntou-lhe como exatamente ela podia orientar-se tão bem. Ele sempre estava interessado nas coisas que ela tinha para falar, colocando-a em seu colo e passando a mão por seus cabelos, fazendo perguntas com uma voz macia que costumava lhe dar sono nas noites em que tinha pesadelos horríveis. 

Maegan tentara, na ocasião, colocar em palavras a sensação, ainda se sentindo um pouco estranha por descobrir que aquele não era o modo como todos sentiam as coisas, sem muito sucesso. 

Mesmo mais velha, era difícil explicar como. Apenas sabia, como se tudo e todos estivessem envolvidos em um tecido fino e quase infinito e ela se tornasse o tecido, sentindo as formas e as posições das coisas. Quando algo se movia sob aquele véu, tinha uma sensação que lembrava a experimentada quando Elysian furtivamente brincava com a ponta de seus longos cabelos dourados, passando os dedos ao redor dos cachos largos que se formavam ao fim do comprimento: era um pequeno puxão, sutil o bastante para passar despercebido se ela não estivesse prestando atenção.

 Foi com um desses puxões e uma rápida inspeção daquele tecido invisível aos outros que soube que o rei agni, com toda sua estatura e imponência, inclinou-se levemente para frente.

 — Posso? 

Ao soar daquela voz, a imagem que veio imediatamente à mente de Maegan foi uma lareira bem acesa em um quarto escuro. Talvez fosse uma lembrança de um dos invernos de sua infância, mas o fato era que a sensação era a mesma: o frio ao redor envolvendo o calor ardente das chamas. 

A voz era grave e ressoava com segurança, parecendo brincar com o limiar entre uma objetividade polida e a grosseria despreocupada de quem tinha o mundo nas mãos — ao menos, parte dele. Supôs que ele se dirigia a Ely, que quase imediatamente direcionou a mão dela com cerimonialismo para a grande mão forte e calosa do líder agni. Ouviu ao fundo respirações entrecortadas e exclamações silenciosas dos arrogantes aristocratas do fogo, suficientes para deduzir que não era usual tal recepção de convidados, ainda mais quando a pessoa em questão pertencia a um domínio diferente e além de tudo não pertencia à nobreza de nenhum dos Quatro.

 Bem, não é todo dia que o convidado de honra não pode enxergar o anfitrião, no entanto, justificou mentalmente, muito menos quando esse convidado fará mais do que apenas flanar pela Corte.

 O rei Forestorm continuou na posição levemente curvada por alguns segundos, segurando a mão dela e tensionando os músculos do próprio braço, forçando-a a dar um passo para mais perto dele com um puxão lento e determinado, que não chegava a ser agressivo. Maegan disfarçou o passo cambaleante, mantendo o queixo erguido e a postura impecável.

 —Não arruíne tudo. Está nas suas mãos ajudar meu povo...—. Tinha certeza que se enxergasse estaria vendo uma espécie de sorriso torto se remexendo no rosto real à sua frente, podia quase fisicamente senti-lo. —E o seu. 

 Imediatamente, ela soube que as palavras sussurradas apenas para ela ouvir eram, de certa forma, uma ameaça e uma constatação. Só não tinha certeza se, quando ele dizia “seu povo”, referia-se à toda Wiha, ou às pessoas das ilhas ao Sul, para onde um exército agni estava sendo enviado e de onde ela fora resgatada a cerca de 10 anos atrás.

Forçou-se a não vacilar ou demonstrar qualquer de seus pensamentos. Era muito mais fácil manter-se aparentemente afável e receptiva — como deveria ser — quando a linguagem de seu olhar não era uma comunicação disponível.

 Então, Brannon modificou-se de maneira repentina, aquele silêncio pesado subitamente parecendo mais leve. A mão embaixo da dela foi substituída por um braço grande e musculoso, e ele virou-se para encarar seus súditos, com ela ao lado direito, ainda sem dizer nada, parada com toda a imponência e importância que suas roupas cuidadosamente selecionadas lhe traziam.

 O branco escolhido não era apenas uma das cores wiha, mas também a cor perfeita para criar o contraste pretendido ao lado do Senhor do Fogo, vestido com os trajes superiores em tom negro, a casaca de tecido grosso que lembrava um uniforme de gala dos militares com suas ombreiras e as diversas insígnias no peito, assim como as calças escuras e o manto vermelho sangue comuns aos reis do Agni em cerimônias formais. E, ainda que no contraste das cores de ambas as figuras paradas lado a lado ficassem evidentes e irrefutáveis suas diferenças, havia uma espécie de comunicação clara devido aos adereços de ouro dela que dialogavam com os detalhes da roupa e das joias reais. Nenhum detalhe passara despercebido pelo velho Mastre wiha.

 Assim que o tecido que era extensão de sua mente moveu-se novamente, Maegan percebeu que o nobre ao seu lado, pelo menos dois palmos maior do que ela, estendeu o braço livre diante de seu corpo, com a palma da mão voltada para baixo na altura do centro de seu quadril. Então aquele braço elevou-se, traçando uma linha reta para cima, e todos entenderam o que aquilo era, novamente segurando a respiração em uma elevação coletiva de ombros. Os pontos do extremo, embaixo e em cima, não eram apenas representativos do Sul e do Norte, mas a linha traçada ligando-os fazia uma alusão à jornada de ascensão e crescimento de um indivíduo através de sua vida. 

Em seguida, o movimento voltou-se para o lado em que a garota wiha estava, o braço traçando um quarto de circunferência simultâneo à meia volta de pulso, deixando na extrema direita aquela mesma mão com a palma agora para cima. Era o Leste. E o meio arco que se seguiu até o ponto que representava o Oeste era também um reconhecimento da extensão de Veris e uma lembrança da jornada que a Estrela de Una, o Sol, fazia todos os dias. 

Para finalizar, a mão fechou-se em punho assim que atingiu o ponto da extrema esquerda, fazendo um novo traço que ligava os quatro pontos em uma circunferência que contava sobre os Ciclos Sagrados e a eternidade dos deuses, e em seguida repousou solenemente sobre o coração de Brannon. 

Era a Saudação de Gara, que não apenas dava nome ao território de conjunção dos Quatro Estados, mas também representava respeito máximo e admiração. Era reservada aos deuses, aos reis em suas coroações e aos heróis da História de Veris. 

E lá estava: dirigida a ela, em frente às pessoas mais influentes daquele domínio, passando seu recado. 

 A própria Maegan prendia a respiração naquele momento, tão surpresa quanto qualquer outro, pensando-se menos merecedora daquele gesto do que todos os presentes já pensavam. Entendeu que era vista como um último recurso. Quase era capaz de sentir o lapso mental que alguns dos nobres agni estariam experimentando — indignados e totalmente incapazes de dizer uma só palavra, pois tal blasfêmia partia de seu próprio rei. Como pudera? Dirigir-se assim a qualquer um que não a Una ou Caelan? E ainda por cima uma wiha. 

 Estava feito. E mais uma vez aquela voz forte ressoou pelo salão, agora para que todos ouvissem:

 — Eu a recebo em meu Domínio e a saúdo, Maegan Doklas, que renasceu da Escuridão e sobreviveu à furia dos deuses. E pela vontade de Caelan, protetor de Agni, de Helv, deusa da Água e regente de Wiha, e da Mãe Una, mãe dos deuses e Senhora de tudo e todos, que seja você a nossa Esperança e o nosso Milagre. Que seja você nossa Salvação!


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Notas finais do capítulo

Será que o Brannon se precipitou em usar a Saudação de Gara com ela?
Essa festa ainda vai render uns capítulos!
Fiquem a vontade para comentarem e fazerem essa autora amadora feliz hehe :)
Aliás, talvez eu precise viajar ainda essa semana para um lugar em que eu não tenho internet (nem sinal de telefone!) e queria já deixar avisado que, caso eu suma e não traga novos capítulos, é porque não consegui revisar todos a tempo de programá-los para postar, mas compenso assim que estiver de volta à civilização!



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