Veris: Sobre Rainhas e Reis escrita por G J Laudissi


Capítulo 3
II. Ira - parte 2


Notas iniciais do capítulo

Queria agradecer a todos que comentaram no capítulo anterior: Brutus Howel, Juliarcanedo e Scarlett Van Hausen (seja bem vinda e.e)
:) fiquei muito feliz em ler e responder cada um.
E depois daquela fúria toda na parte anterior, será que o Brannon vai conseguir resolver alguma coisa?
Vamos descobrir...



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 Adentrou o Grande Salão no dia seguinte já com o temperamento mais controlado, mas ainda fervilhando por dentro. Os punhos cerrados. Notou primeiro que os tronos dos dois Dominos midiri estavam vazios, depois que os assentos dos chefes de Estado e Governo dos nefasi também não se encontravam ocupados. Os olhos voltaram-se até seu próprio lugar que embora com as costas viradas para ele, estava óbvia e perceptivelmente vago ao norte. Continuaram.

E lá estava.

Antes do último trono, viu a figura de pé no centro do círculo formado, muito abaixo da enorme abóboda com vitrais coloridos que espalhavam pequenos reflexos dançantes por todo o ambiente. 

 Ele sabia que aqueles não eram bem os trajes usados na Corte Wiha em virtude do clima muito menos quente de Gara, mas não deixavam de gritar sua origem em cada detalhe, ao estilo Sora Pravahi. O tecido de forro era próximo o bastante do tom de pele extremamente bronzeado dos wiha, a ponto de ser confundido com ela à primeira vista, e cobria os braços desde os punhos, em mangas justas, até os pés, depois de gradualmente se tornar uma saia mais solta a partir da altura das coxas. Por cima e em todo o vestido, padrões em azul lembravam o movimento das águas, embora abstratos. Os cabelos negros com reflexos de sol estavam presos em uma trança que circulava a parte de trás da cabeça, escondidos pela pesada coroa prateada, feita para parecer um mar revolto, com ondas quebrando violentamente, a espuma formada toda em brilhantes. Queixo erguido e coluna ereta eram sua marca registrada, também. 

 Brannon avançou, ostentando suas próprias roupas de maneira elegante, muito similares às do dia anterior. Sua coroa não mais alta do que um dedo mínimo em pé de ouro envelhecido e rubis sustentada pela arrogância de sua postura.

 Parou quando chegou na borda circular, nada disse.

 Sora lhe lançou um sorriso ladino, sem demonstrar qualquer tipo de nervosismo ou arrependimento, as grossas sobrancelhas dançando suavemente com o movimento da boca. O nariz aquilino, de ponte levemente avantajada, mal moveu-se.

 — Parece que seremos só nós por hoje. Aqueles covardes provavelmente vão endossar desculpas e pedir para que comuniquemos as decisões depois. 

 Brannon cerrou o maxilar antes de responder, não relaxando nenhum dos músculos retesados ao ouvir o tom tranquilo da rainha.

 — Esse assunto não diz respeito a eles. 

 Viu a garganta da Domina da Água subir e descer.

 — Podemos ir para uma sala menor, então, não há…

 — Aqui me parece ótimo. Adequado, na verdade. — Ele manteve a voz um tom mais baixo do que o normal, mas duas vezes mais grave, dirigindo-se ao seu lugar correspondente e sentando-se vagarosamente.

 Mais alguns segundos e ela fez o mesmo. 

 Era ótimo que estivessem sozinhos. Brannon não sentia a menor vontade de ser cerimonialista. Seu acesso de fúria já estava mais do que controlado. Agora, podia muito bem administrar aquela raiva da maneira como bem entendesse.

 — Vossa Majestade pode não estar há tanto tempo quanto eu no poder de seu Domínio, mas acho que já é grandinha o suficiente para entender que o papel a que se prestou ontem foi muito mais grave do que o de diversos comportamentos que levaram os Quatro Domínios à guerra em outras ocasiões. Joguinhos muito mais discretos e cabíveis já foram responsáveis por centenas de anos de luta.

 Sora deslizou para frente em seu lugar em cristal azul e branco, que dava a impressão de que ela estava sentada no meio de uma onda quebrando. Os olhos brilhavam com o insulto e o desafio silenciosamente declarado. 

 —Não faça isso, Forestorm. Não me trate como uma criança, nem seja condescendente. Você sabe muito bem que meu comportamento ontem foi uma resposta pela qual venho esperando há 9 longos anos. Deveria saber. 

 — Pelos deuses, você pretende que voltemos a assuntos já há muito deixados de lado? São nove anos, pelo amor de Una! Este é mesmo o momento? — Manteve sua postura rígida, tentando mostrar indiferença. Não falaria daquilo. — Nos encontramos inúmeras vezes depois, aqui no Grande Salão, e até em alguns eventos, e você nunca sequer mencionou o episódio. 

 — Você não pode ser tão mesquinho a ponto de achar que eu pisaria nos seus calos em todas as oportunidades que tive. 

Por um momento, ela não era a Rainha de Wiha. Era Sora, Sora Pravahi. E apenas isso. Sentia como Sora. A raiva, o rancor, a frustração. Todos juntos, misturando passado e presente. Memórias enterradas que não subiam à superfície da mente consciente, mas que mesmo assim ecoavam impressões e sentimentos antigos. Para ela, no entanto, ele era o Rei Agni, um Forestorm. 

 — Então porquê agora? 

Sora se foi. Era de novo rainha.

 — Eu já lhe disse: o Oceano não esquece. E eu sou paciente. 

Forestorm inclinou-se, apoiando os antebraços nos joelhos.

 — Certamente parece ter se esquecido que eu a apoiei no início, há 15 anos - apenas um ano depois do Levante Nefasi-, coloquei todos os meus exércitos à sua disposição, quando você tinha acabado de assumir o trono e os revoltosos dos povos do Ar pensavam em declarar guerra contra o seu reinado para aproveitarem a instabilidade da sua questão de sucessão. É claro que, com meu suporte abertamente declarado e meus exércitos a caminho, eles não ousaram seguir adiante. Talvez a falta de uma briguinha de verdade tenha feito minhas ações menos relevantes para você, não é? Talvez eu devesse ter esperado um pouco mais, seria certamente mais glorioso virar uma batalha a seu favor do que impedir que ela começasse.  

 As palavras, apesar de hostis, pareceram ter atingido um lugar profundo na mente da rainha wiha.

 — Não esqueci, você se engana, Brannon. — O tom de voz dela estava mais suave, seu semblante duro desmanchando-se, como se estivesse cansada daquela breve discussão, entendendo que não chegariam a lugar nenhum, mas também como se as lembranças daqueles dias a tivessem exaurido. — E, é por isso que sequer cobrei algo de você naqueles nossos outros encontros. Pela sua ajuda, eu retribuí por muitos anos, mandando meus melhores curandeiros e médicos para os seus exércitos, e facilitando a entrada do seu povo nos Templos. Nossas relações estiveram tão boas como nunca, e era algo esperado por mim. Mas acho que esse foi o meu erro, não foi? Confiar que as coisas estivessem boas demais, e que pudessem continuar assim. Quando aquela onda varreu a Costa Sul do meu território, que você bem sabe que é a parte mais pobre, mas também onde ficam localizados os acampamentos das minhas forças militares, eu infantilmente achei que podia contar com algum tipo de socorro vindo de você. Nada veio, no entanto. Meus exércitos foram desmantelados e mal estavam conseguindo organizarem-se, quanto mais ajudar os sobreviventes que perderam tudo e passavam fome, e também houveram os doentes. Aquela região enfrenta até hoje as consequências daqueles dias. Não é de seu interesse, imagino, então não entrarei em detalhes.

Pravahi fez uma pausa, respirou fundo enquanto analisava a postura do outro rei a sua frente. Os punhos agora estavam cerrados nos braços da cadeira, mas os nós dos dedos não estavam brancos, e não parecia haver mais daquele ódio puro e feral nos olhos avermelhados. Continuou:

— Todavia, em nome daqueles anos em que me auxiliou e dos seguintes seis anos de aproximação dos Domínios Agni e Wiha, nos quais pareciamos prometer coisas melhores às relações diplomáticas de Veris, me calei. E não teria voltado a essa questão, se a oportunidade não estivesse tão aberta, ao alcance das minhas mãos. Se não fosse verdade, teria enviado meu Mastre a você, mas ele está doente, e não há nada que eu possa fazer. Não vou me desculpar por ontem, assim como você não se desculpou por aquela carta rude e impessoal enviada há nove anos para me recusar auxílio em troca de qualquer coisa, não importando o preço. Saiba, no entanto, que se as coisas fossem diferentes, mesmo depois disso tudo... eu não teria recusado. Jamais teria negado ajuda se Feoras não estivesse tão debilitado. 

 O silêncio afundou na sala dos tronos, pesado, como um muro que separava os dois. Um já não via o outro, o teto parecia ter desabado naqueles largos ombros forjados em fogo e nos estreitos e femininos moldados da água.

 Havia muitas coisas a serem consideradas naquele momento pleno de sinceridade de Sora, e ele prometeu silenciosamente gravar a ferro aquelas palavras em sua memória, não as esqueceria tão cedo.

Não havia tempo, no entanto, para reconsiderar suas ações do passado, ou o peso dos acontecimentos de quando era mais jovem, nem suas consequências. Não ali, com a Febre Escura às portas de expandir-se e tornar-se não apenas um problema a ser resolvido, mas o estopim de um caos que não poderia ser controlado.

 A Klifo era cruel, ele já tinha visto o que acontecia quando ela surgia nos outros domínios. Aldeias devastadas, muitas sem um único sobrevivente, e, é claro, o medo. 

 Ninguém sabia ao certo porquê começava, nem a frequência exata com que atingia os homens - embora muito se especulasse sobre equilíbrio de energias relacionadas à magia ou pragas divinas - nem como funcionava a contaminação. Ela parecia manifestar-se de uma maneira diferente a cada vez que os estudiosos de Veris chegavam a alguma conclusão, o que levava todo o povo à paranóia, e os governantes a tomarem todas as medidas possíveis para impedir o alastramento, por mais que não soubessem quais delas eram úteis e quais eram em vão. As pessoas se trancavam dentro de casa, hostilizavam uns aos outros, saqueavam vizinhos e cidades inteiras, e não raras as vezes que os desesperados haviam falado em linchamento ou execução dos doentes das mais cruéis maneiras para “purificação”.

 A Febre em si era uma sentença de morte declarada. Depois que os sintomas tão característicos se manifestassem, era uma questão de tempo.

Geralmente os dedos das mãos ou dos pés escureciam, tornando-se arroxeados e muitas vezes confundidos com uma manifestação de frio nos povos menos afortunados, as veias tornavam-se mais aparentes, como se a pele tivesse clareado. Depois, as manchas tendiam a ficar cada vez mais pretas e os rastros no sangue cada vez mais explícitos. Os movimentos ficavam mais limitados, enrijecidos. Nos estágios finais, as pupilas dilatavam-se mais e mais, até que não houvesse cor nos olhos além do profundo negro, e as pequenas veias ao redor, na pele sensível, irradiavam como raios de um sol de trevas.

A esse ponto, a paralisia já estava avançada, os membros totalmente endurecidos, e a única coisa que restava ao doente era aguardar, preso na casca que outrora fora seu corpo, até que os movimentos do diafragma também fossem impedidos. Muitos se matavam assim que os primeiros sintomas eram percebidos; a única maneira sabida de realmente sobreviver à peste era não contraí-la, e mesmo isso podia ser difícil demais. À exceção dos Altos Sacerdotes, que pareciam ter uma imunidade maior, embora muitos também tenham sucumbido no final.

Havia, por certo, histórias para alimentar a esperança nas pessoas, algumas lendas e boatos sobre pessoas imunes ou que se curavam...

 Que se curavam. 

 As palavras reverberaram em sua cabeça. Como podia ter esquecido?

 — A menina. 

 Sora, também perdida em seus próprios pensamentos, levantou os olhos azuis, buscando os dele, confusos. Com o cenho franzido, enxergava uma expressão completamente diferente no Senhor do Fogo do que a estampada a momentos atrás.

 — O que? 

 — A menina, Pravahi! A garota que Feoras Drava acolheu. Ela se curou, não foi o que disseram? 

 Um acenar de cabeça afirmativo. Depois do desastre ao Sul, seu Alto Sacerdote foi enviado para discursar e convencer o máximo de famílias que pudesse a realocarem-se, com a pequena ajuda que as tropas wiha poderiam oferecer, para que o local pudesse ser limpo e reestruturado futuramente, e também realizar as habituais bênçãos de um surto da Klifo que havia se iniciado. Tais episódios das doenças pareciam nunca passar disso, pequenos surtos no território da Água, rapidamente gerenciados e controlados como em nenhum outro lugar - muito por causa do Sacerdotes.

Ele voltou meses depois com uma garotinha de 9 ou 10 anos, cujos boatos a antecederam e se espalharam por toda a Veris. Todos já haviam ouvido falar nela. Seu nome era Maegan, o sobrenome era incomum, mas definitivamente wiha.  Feoras trazia para a capital uma criança curada da Febre.

 — Mas o que uma garota poderia fazer? Não estou entendendo. 

 Brannon levantou-se.

 — Você disse que me ajudaria se as coisas fossem diferentes. Disse que ainda sofre consequências no Sul de Wiha devido aos acontecimentos de nove anos atrás. 

Os olhos a perscrutavam inquietos, ainda que a postura solene não entregasse sua ansiedade repentina.

 A rainha assentiu, ainda sem conectar os pontos no raciocínio rápido e esperançoso do homem à sua frente.

 — Eis minha proposta: Deixe-me reconstruir as cidades devastadas na costa Sul, as melhores equipes de engenheiros nefasi estão sob meu comando devido a um acordo meu e do Primeiro Ministro Oblak, todos os materiais de que você precisaria viriam das minhas manufaturas, de qualquer forma, e as matérias brutas seriam taxadas nas rotas comerciais de Midiri à Wiha passando por Agni. Meus cofres estão abundantes, se é o que essa sobrancelha erguida quer me perguntar.  

 Ele fez uma pausa, como se não percebesse que não havia completado sua proposta, e Sora não soube se era porque ele estava ansioso demais - como não vira há tempos - ou porque ele sabia que ela colocaria algum empecilho, antes mesmo de saber qual seria sua parte no acordo, exatamente. E foi exatamente o que fez:

 — Meus problemas no Sul não são apenas com construções, Forestorm. Sem condições e não querendo ser realocados, muitos das antigas populações locais permaneceram entre os escombros. Hoje eles vivem numa terra de ninguém, quase com as próprias regras, pagam alguns impostos à coroa, mas só. Não podemos fazer muito, não sem a força total do nosso exército, estamos reagrupando-os aos poucos, mas ainda vai demorar antes que cheguemos aos números de antes. Não posso realocar as tropas que protegem o resto do meu Estado para uma parte erma, deixando o resto exposto. E eu precisaria fazer isso, se quisesse ter qualquer chance de reconstruir o local. 

 — Então está feito. Mandarei também meus melhores homens, eles cuidarão de tudo.Tenho números mais que suficientes, e você sabe disso. 

 A proposta era boa demais. Praticamente irrecusável. Ela sabia que ele estava desesperado, e sabia que o próprio já havia admitido que faria qualquer coisa para salvar seu povo das consequências da Febre espalhada por todo o território; não esperava, por algum motivo, que ele estivesse falando tão sério. Talvez as coisas estivessem muito piores do que ele deixava os outros Estados saberem.

 — E qual é a minha parte nisso? 

 Ele a olhou, a insinuação de um sorriso nos lábios dizendo a ela que achava engraçado que ela ainda não soubesse.

 — Mande-me a garota. Mande-me Maegan Doklas.


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Notas finais do capítulo

E aí? Alguma expectativa para o próximo capítulo? Esse acabou ficando um pouco maior, mas eles tinham muito para conversar haha, deu pra conhecer um pouquinho mais dessa Praga aí e do sistema deles
Tentei atualizar mais que uma vez essa semana, mas me enrolei tanto que nem consegui escrever um capítulo (ou seja, postando esse eu acabei ficando em dívida comigo mesma kkk)



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