Depois da Ruína - O Fim escrita por Bzllan
Nascer, Morrer, Renascer - Ilustração Ivan
A luz do dia começa a surgir no horizonte. Alex nem pregara os olhos à noite, e suas carregadas olheiras deixam isso evidente. Nem Nicolas. A emoção que ambos sentem ao ver o outro - parcialmente - inteiro é de encher o peito.
Sentados junto ao grupo que dorme pesado, acomodam-se próximos o suficiente para conversar sem acordar ninguém.
Os olhos de Alex estão carregados de remorso. Aproveita ter o porto seguro novamente ao seu lado para chorar toda a dor do peito.
— O que foi? - Nicolas a acolhe nos braços, passando as mãos nas costas da garota como se consolasse uma criança.
— Não acredito que fizeram isso com você por minha causa. - Ela seca as lágrimas. Está melhorando em contê-las.
— Ah, pára com isso. Foi um prazer.
— Cala a boca.
— É sério! Eu não apanharia assim por mais ninguém. - Ele consegue arrancar um sorriso da amiga. - E eu meio que não estaria aqui também.
— Às vezes eu acho que talvez as pessoas do bunker estejam mais seguras. - Ela puxa seus cabelos para trás, amarrando em um nó acima da cabeça. Precisa cortá-los.
— Talvez, mas a que custo? Estão todas com os dias contados, não estão?
Atrás deles, Eduardo delicadamente acorda um por um, oferecendo um pouco de água e um ombro amigo.
— Estou feliz que esteja aqui. Apesar do custo. - Ela diz. Pela primeira vez em dias se sente ela mesma.
— Eu também, não importa o custo. - Ele dá um beijo na testa de Alex, como costumava fazer. - Estão levantando acampamento. Vamos ajudar?
Ela concorda. Mais um dia de jornada se inicia.
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Em incansáveis turnos, os soldados do governo rondam todos os trilhos de trem possíveis à procura dos fugitivos. Escaparam por entre seus dedos como água.
A humilhação e raiva que sentem é justificável, ainda mais porque toda a culpa recairá sobre eles. Amélia não perdoaria, e o general sabe.
Prestes a perder a paciência, a noite quase findando, o general recebe um chamado no rádio. A voz do subordinado diz as palavras que fazem seu dia.
O trem fora encontrado durante a madrugada próximo à costa leste, em um trilho em obras inacabadas.
O general sorri de modo maldoso.
Sabem por onde começar.
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— Sabe pra onde está indo? - Júlia pergunta a Rafael, que anda na frente do grupo, agora maior e unido.
— Bom, faz um ano já. Eu estou calculando com base onde eu acho que ficava o abrigo. Isso não é muito reconfortante, é?
Júlia ri.
— Confio em você.
— É, isso também não.
Eles continuam andando lado a lado, em silêncio.
A noite parecia ter sido de um sono leve para as pessoas. Todos parecem cansados ou estressados. Poucas vozes são ouvidas, e muitas por conta de reencontros do passado. Até mesmo as crianças estão quietas.
— Rafa, eu… - Júlia começa a falar, olhando para o chão onde pisa. As palavras saem mais fáceis. - Sinto muito por Murilo. Sei que não quer falar sobre isso, e nem precisamos, mas eu… ele era como um irmão pra mim também.
A loira não quer sustentar o olhar do amigo. As lembranças de Murilo são dolorosas. Ele era um dos elos inquebráveis daquele pequeno grande grupo, e a perda dele ainda não fora suficientemente processada. Júlia não entende porque não está com o peito doendo. Falar com Rafael talvez a traga um lado humano que insiste em esconder-se.
— Eu também. - Ele diz, mantendo o olhar reto, sempre em frente. - Obrigado.
Ele aperta a mão da amiga em um gesto carinhoso.
Acostumam-se a dizer as horas pela passagem do sol. Calculando as sombras projetadas na floresta, algo entre oito e nove da manhã.
Andam há exaustivas horas.
Rafael teme estar enganado em relação à direção que segue ou ao espaço em que se movem, mas mantém-se confiante. Quando está prestes a admitir à amiga que segue ao seu lado, no horizonte, ao longe, vê algo destoar no verde da mata. Se aproxima para ver uma cerca de arame prata brilhante e madeira.
Ele joga o pescoço para trás em alívio, um sorriso no rosto.
Júlia esfrega uma mão na outra, empolgada.
— Mandou muito!
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Eles nunca exploraram o sítio. Afastar-se tanto do abrigo naquela época parecera arriscado demais.
O mato cresce até a altura de seus tórax. O terreno irregular é como uma cratera bem escondida pelas árvores. As centenas de pessoas tomam a liberdade de espalharem-se pelo local, abrigando-se por pequenas casas engolidas pelo mato.
Seguindo em frente, encontram um grande lago cheio de lodo e água parada e uma casa grande onde o proprietário deveria morar.
Do lado do lago, pendurado em uma árvore, um balanço improvisado com pneu. As crianças são as primeiras a alcançá-lo, mal testando a durabilidade daquela corda velha, mas que misteriosamente os sustenta bem.
Com um empurrão contra a porta principal, Levi estilhaça a frágil fechadura. A porta se abre com um rangido. Uma arquitetura vitoriana dá ao casarão um ar de nobreza e antiguidade. O revestimento em madeira nobre está desgastado e escurecido.
Após uma rápida análise com os olhos, o que restara do grupo se espalha pela casa. Naomi toma a decisão.
— Andamos pra caralho. Vamos deixar a galera se recompor, descansar um pouco enquanto pensamos em um plano.
— Podemos ver o que tem nessa pasta agora? - Ivan pergunta, curioso.
Alex, cuidando da pasta até então como se levasse uma criança à tiracolo, a entrega nas mãos do irmão, sentindo uma responsabilidade grande afrouxar em seus ombros.
Ele lê o nome da mãe com carinho, lembranças boas vindo à tona.
Alex se cansara de participar da tomada de decisões importantes. Não que ela fizesse alguma coisa, mas sempre estava lá para ouvir os amigos. Dessa vez, o sono que não dormira durante a noite vem importuná-la.
No canto do salão principal, deitada sobre sua mochila dura, tira o mais pesado dos cochilos, acordando apenas quando o irmão decide sentar-se ao seu lado. Ivan a observa. Não tiveram tempo para conversar ainda.
Sentando-se com uma boa espreguiçada, sorri para o irmão.
— Então eu vou ser tia, é?
Ivan ri.
— É, vai sim. - Ele afirma, mas parece apreensivo. Estão sozinhos no salão, ele não precisa esconder nada dela.
— Qual o problema?
— Só preocupado.
— Com…?
— Antes eu estava só ansiosa, feliz, mas não tenho conseguido pensar em um cenário bom pra cuidar desse… bebê. A ficha ainda não caiu.
A irmã concorda.
— O que vamos fazer não é exatamente pra isso?
— Como assim? - Ele ergue as sobrancelhas.
— Não vamos… tentar deixar isso aqui "vivível"?
Ele ri com a expressão.
— É, eu tenho sonhado bastante com isso.
Ivan olha para o teto, pensativo. Alex lembra de admirá-lo bastante por isso. Por ser sonhador. Ele sempre achara uma característica fraca e frágil, mas sempre voou longe com cada um dos pensamentos.
— Com o quê?
— Ah, você sabe. Quando tudo acabar, eu quero… levar ele ou ela na praia. A gente adorava a praia, lembra? Você nem tanto, era fresquinha, mas eu… nossa, eu até comia areia.
Alex dá uma gargalhada com a lembrança. Os dois na praia - ela correndo atrás dos pombos e Ivan jogando bola ou murchando igual um maracujá no mar.
— Ele ou ela com certeza vai adorar.
— É. Eu vou ensinar a surfar, e eu vou ter tempo pra construir uma casinha bem gostosa com pé na areia. A Júlia é inteligente, vai ensinar as coisas que as crianças aprendem na escola…
— Você? Construir?
— É, ué. Eu posso ter outros hobbies.
Alex não segura a risada.
— Se ficar rindo da minha cara eu não vou deixar você ser minha vizinha.
Alex finge estar ofendida.
Eles deixam o assunto morrer aos poucos ali.
— Alex, sabe, você não precisa entrar lá com a gente.
A garota o olha com interrogação no olhar.
— É claro que eu preciso.
— É só que… você já fez a sua parte, se arriscou pra caralho, e não precisa…
— Ivan, - Ela o corta - eu preciso. Não vou ficar pra trás.
— Bom, alguém tem que ficar pra trás. Eu vou tentar convencer a Jú também com essa história de bebê, ela tá super sensível, mas eu duvido um pouco.
Alex ri.
— Mas é sério, - o irmão continua - eu ia ficar mais seguro sabendo que você está bem.
— Ivan, nós estamos em pouquíssimos. Eu já estive lá dentro, inclusive por muito tempo, eu vou ser muito mais útil do que você imagina.
— Eu sei que vai...
Ele pausa, cerrando um lábio com o outro.
— O que foi?
— Eu não vou estar lá pra te proteger o tempo inteiro. - Ele diz, por fim.
— Talvez eu não precise ser protegida o tempo inteiro.
— É, eu sei que não. Só prometa que vai tomar cuidado.
— Claro que vou.
— Eu quero que o Chico Júlio cresça com uma tia.
Ele diz sério, mas Alex se engasga com a risada, lembrando do boneco de ação favorito de Ivan na infância, que ele batizara de Chico Júlio. Nem se lembra de onde o nome saiu.
— Não vai chamar seu filho de Chico Júlio.
— Eu e Júlia ainda estamos discutindo essa possibilidade.
Alex se permite rir de verdade pela primeira vez em muito tempo. A simples presença do irmão a diverte.
— Novata? - Levi a chama da ponta da escada. - Sobe aí. Os dois.
Alex levanta as sobrancelhas, intrigada. Troca olhares com Ivan antes de os dois levantarem e seguirem escada acima.
Levi parece melhor. Ela gostaria de tocar no assunto do tio, mas o garoto parece ser do tipo que sofre em silêncio no tempo dele.
Levi guia os dois pelo enorme casarão do andar de cima. Um corredor extenso os leva a uma sala de tamanho mediano onde todos - Diego, Maia, Lucas, Júlia, Rafa e Naomi os esperam com um sorriso travesso no rosto.
— O que é isso?
— Bom, - Naomi começa - Levi contou que ficou curiosa com as tatuagens.
Naomi tira o agasalho e mostra o círculo desenhado em suas costas. Alex observa - todos têm um. Júlia ao redor do tornozelo, Lucas, no bíceps. Rafael levanta a camisa para mostrar as costelas tatuadas. Ivan lhe estende o punho. Como ela nunca percebera?
— Estivemos pensando, e… Você já faz parte da família. - Naomi, que nunca demonstrara afeto pela garota, sorri calorosamente. - Se quiser oficializar…
Alex entende onde querem chegar. Maia, sentada no chão, segura um instrumento improvisado com a aparência de um martelo, mas uma agulha na ponta. Na outra mão, uma espécie de bastão. Ao seu lado, a tinta vegetal que passaram no rosto quando foram à cidade.
— Foi por isso que eu não contei como foram feitas. - Levi abre um sorriso amarelo. Alex já sente a dor antes mesmo de aceitar.
— Encontramos a agulha aqui, deu pra improvisar o material certinho e é claro, está limpo e desinfetado. - Júlia se pronuncia.
— Qual vai ser, novata? - Maia a olha com ansiedade nos olhos, segurando o instrumento de tortura entre os dedos.
Alex sorri. As pessoas daquela sala a tocaram de modos diferentes durante os dias. Criou ali um laço forte que a faz sentir bem-vinda e acolhida.
Se senta no chão ao lado de Maia. Os outros aplaudem animados. Ela tira a blusa, deixando os ombros amostra.
— Aí? - Maia pergunta, os olhos arregalados e um sorriso travesso. - No ombro?
— Manda ver, antes que eu desista.
Maia ri. Com habilidade, molha a ponta da unha na tinta e traça um círculo perfeito no ombro da garota. Os outros sentam ao seu lado, assistindo empolgados, como se Alex passasse por uma iniciação.
Assim que Maia aproxima o instrumento de seu ombro esquerdo, fecha os olhos, aflita. A garota sabe o que está fazendo, batendo delicadamente o bastão em cima da agulha, mas a dor é mais absurda do que ela espera.
Alex guarda todos os gritos para si, soltando-os quando o sangue começa a escorrer por seu braço. Aperta a primeira mão que aparece para ela - a de Ivan.
As palavras de Levi sobre o significado rondam em sua cabeça - Nascer, Morrer, Renascer. O ciclo da vida.
É a pior dor física que Alex já sentira na vida, mas ao mesmo tempo a mais prazerosa. O círculo desenha-se aos poucos ao redor de seu ombro latejando.
Agora é oficial - faz parte da família.
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oi queridos ♥
vou me apresentar oficialmente agora hehe eu sou a Ana
essa ideia da tatuagem me deixou empolgada demaaais porque no caso eu tenho uma igual a que a alex tá fazendo
e pelos mesmos motivos
olha lá meu insta caso surja a curiosidade (@anabozollan)
e aí? curtindo?