Shhh! escrita por Maldoror


Capítulo 1
O Adriá das bebidas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/789773/chapter/1

[ James - 03h23 ]

Você se lembra de como consegui essa cicatriz?” Conversava mentalmente com Joshua, coisa que se tornou comum depois de 5 shots de gim. Ou 6. “ Não quero ser sentimental agora, mas ela me deu essa cara de garoto-problema.” Apertei os olhos, ainda bêbado, tentando acertar o dardo no alvo enquanto estava sentado, com as pernas cruzadas. Fazia isso porque combinava com meu novo escritório e toda a mobília meio rústica. Não demorou muito até que eu me cansasse daquele passatempo burguês estressante. Minha mira estava péssima e os dardos agora estavam todos espalhados pelo chão do escritório. Fitei a porta cogitando em sair da toca, afinal, havia me enfiado ali desde a manhã, só pra ter um minuto de privacidade e nostalgia. Mas me levantar não parecia nada interessante quando percebia a música e as luzes passando vibrantes pelas frestas da porta. Olhei de relance o jornal esquecido sobre a mesa, mais uma vez. Em letras garrafais, com direito a primeira página, estava a famosa “Pinkerton's National Detective Agency”. Desviei o olhar passando a mão pesadamente no queixo, pensativo. A notícia havia me deixado num mau-humor terrível. Era um histórico desastroso e extenso dos mafiosos que ascendiam até o topo, só pra depois cair e deixar o lugar vago pra ser ocupado novamente. Virou um ciclo de roleta-russa. Ninguém sabia quando ou de onde a rasteira viria, por isso era sempre bom ter um sucessor dos negócios na manga.

Hank, o antigo dono desse escritório, era também o patrono e defensor do ‘’nós por nós’’. Ele dizia que o estado não nos fornecia segurança sem também tomar a nossa liberdade. A lei seca, pra ele, era um afronte à classe trabalhadora que, às duras penas, enfrentava horas assíduas de trabalho com baixa remuneração e se aliava nas bebidas. O estado acreditava que o problema do alto índice de embriaguez e dependentes estava na bebida, mas não se culpa a comida pelo pecado da gula. A questão ali era outra; vivíamos numa sociedade totalmente imersa nas fábricas, o céu da cidade tornava-se cinza em determinadas horas do dia, quando as máquinas estavam no pico, denunciando o trabalho extensivo e insalubre dentro das fábricas, juntamente com o baixo salário, pobreza, revolta, violência ... E tudo era somatizado na bebida. Enfim, se o estado criminalizou legalmente o álcool, a igreja foi responsável pela criminalização moral dele. Logo, todos que bebiam estavam sendo duplamente condenados. Hank dizia que financiar o mercado ilícito, nessa conjuntura, era ser parte da resistência. Durante a Lei Seca os produtores de bebidas passaram a ser a própria população, que fermentavam cevada, frutas e grãos, clandestinamente em seus porões, para a produção de vinhos, cervejas e destilados. Nós produzíamos, consumíamos e vendíamos. Nós ditávamos o preço do nosso trabalho. Hank agora estava preso e eu deveria assumir os negócios de forma tão brilhante quanto ele havia conduzido.

Era uma pressão terrível. Ainda mais com os detetives no nosso encalço.

Pra ajudar, Joshua havia se tornado uma espécie de consciência bêbada em mim. Éramos amigos íntimos durante a infância, confidentes um do outro. Eu sinto como se estivesse traindo os sonhos que planejamos juntos deitados na campina perto de casa. Quando completei meus 17 anos, um amigo do meu pai, que dizia se chamar Hank, apareceu em casa, cheio de ideias mirabolantes e revolucionárias, fazendo com que meus planos de entrar pra academia policial com Joshua perdessem pouco a pouco o glamour. Assim, fui me distanciando de Joshua, mas nada tão grave que nos separasse por definitivo. Eu ainda o admirava muito, pois nada conseguia abalar suas convicções de ferro e seu senso de justiça. Com toda certeza ele detestaria Hank, e vice-e-versa. Por isso mantive os dois o mais distante possível. Depois de um tempo, começaram boatos de que Hank estava envolvido em processos de suborno com policiais e na época eu não entendia muito bem o que acontecia, mas acreditava que suas intenções eram das melhores. Eu passava muito tempo com o velho Hank e boatos começaram a se espalhar sobre a índole dele e, por tabela, começaram a me afetar também.

Foi então que Joshua e eu discutimos.

E assim ganhei minha cicatriz.

Eu sempre tive vontade de sentar com Joshua e perguntar o que aconteceu nesse dia. Com o que ele me acertou. Se foi eu quem deu o primeiro golpe. Ou até mesmo porque chegamos nesse ponto. Mas o que ficou, desse dia em diante, foi essa cicatriz na sobrancelha e a ausência vazia de Joshua. Desejei, muitas vezes, saber de seu paradeiro, como estava, se já havia casado, se tinha filhos, se estava feliz ... Mas era sempre persuadido por Hank a deixar pra lá, afinal, fazia tantos anos ... Eu lembrava somente do Joshua de 17 anos, e era com ele que eu conversava em minha mente. Não sabia o quanto ele havia mudado e até mesmo eu havia passado pelas transformações milagrosas da puberdade.

Alguém, felizmente, interrompe a torrente de pensamentos que eu havia mergulhado com batidas insistentes na porta.

— Entre. - Tenho de pedir quase gritando pra sobrepor ao barulho da música do lado de fora. Ajeito-me na cadeira, tentando limpar a mente com outro gole generosos de Gin.

Um rapaz franzino, de não mais de 20 anos, aparece tímido na porta.

— Estão te chamando no balcão do bar. - Ele diz rapidamente, entregando a mensagem e saindo porta a fora, sem ao menos me encarar.

Sempre existem clientes insatisfeitos em qualquer speakeasy, mas às vezes os fregueses extrapolam quando o dono é condolente demais. Hank sempre foi muito generoso, mas creio que não partilho da mesma postura quando o assunto é gente rica. Eles que paguem até as calças num bourbom importado pra financiar o salário dos nossos.

Ainda sem vontade, levanto-me e saio pela porta, trancando-a atrás de mim, mergulhando em outro ambiente; o jazz tocava ao fundo, pessoas bebericavam seus copos, rindo e conversando enquanto as luzes vermelhas davam um ar blasé para o speakeasy. Ajeito meu paletó no corpo, olhando para o barman. Assim que ele me sinaliza discretamente onde está o cliente problema, percebo que se trata de um caso comum; homem sem dinheiro tentando beber algo digno. Aceno com a cabeça de volta para o barman e permito que ele beba mais uma rodada por conta da casa.

Já que havia sido arrastado para fora do escritório, sentei-me só numa mesa ao fundo, observando todo o movimento, tentando cuidar de tudo minuciosamente pelo olhar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Shhh!" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.