Used to the Darkness escrita por lamericana


Capítulo 1
Capítulo 1




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O centro da clareira ainda estava úmido quando ele pisou ali. Parecia cansado e tinha no rosto uma expressão de dor. Arfava a cada passo que dava. Finalmente, ele se apoiou no chão e, com um gemido, arregalou os olhos. Conseguia ver cada um de seus novos rebentos.

Com um sorriso, desmaiou.

Amadeus sentia que a cabeça ia explodir de tanta dor, mas tinha que manter o foco para terminar pelo menos aquela tatuagem. Aquela menina iria surtar se ele desistisse de fazer aquela tatuagem brega e clichê no pulso dela. Como se não tivessem mais umas duzentas garotas somente naquele bairro com a mesma tatuagem.

— Terminei. – ele anunciou, rezando internamente para que a garota pagasse e saísse o mais rápido possível – Pode dar uma olhada.

A jovem olhou a tatuagem que ainda estava com o contorno avermelhado por conta da fricção da agulha e abriu um sorriso agradecido. Ela pegou a carteira na bolsa e procurou pelas notas ali dentro.

— Quanto foi o combinado? – ela perguntou, separando algumas notas

— 60. Mas pode entregar a Frank na recepção. Ele toma conta do dinheiro.

Odiava redirecionar os pagamentos logo pra Frank, mas era impossível lidar com qualquer outra coisa que não fosse um remédio para dor naquele momento.

A jovem pulou da maca e foi até a recepção. Amadeus arrumou o material e jogou fora o que usou com a menina.

— Deus, quanto foi pra guria? – Frank perguntou aos gritos da recepção, ajudando a piorar a dor de cabeça

— 60!

Foi até a salinha dos fundos sabendo que encontraria o colchonete barato para quando precisavam fazer algum serviço mais longo ou quando alguém era expulso de casa pela namorada. Sem o conhecimento dos outros tatuadores, Amadeus conseguiu instalar um minilaboratório ainda mais ao fundo da salinha para poder fazer seus remédios quando precisasse. E aquela era uma das vezes que usava do estoque que tinha deixado pronto.

Em momentos como aquele, agradecia por ter se formado como engenheiro químico e ter feito uma especialização em farmácia ainda na faculdade. Pegou o vidro com paracetamol e tomou um comprimido antes de se deitar no colchonete.

Estava acostumado a ficar ali naquela salinha. Desde que Frank e ele se separaram, o apartamento ficara com Frank e o estúdio continuou em seu nome. Para Amadeus, isso pareceu uma troca quase justa, até porque não queria ter que explicar o porquê que ter um monte de material para a criação de remédios nos fundos de um estúdio de tatuagem.

Afinal, aquele era o seu segredo, desde que conseguiu quitar a hipoteca daquele estúdio de tatuagem. Começou a montar com uma mini geladeira, um microscópio e alguns poucos materiais para fazer remédios básicos como paracetamol, dramim e os tão necessários anti-histamínicos de Frank.

— Deus, sai daí, tem cliente querendo te ver. – Frank chamou batendo na porta

— Diz que eu não estou. Tô morrendo de dor de cabeça e sem condições de atender ninguém.

— É um tal de Mikko Hassan. Ele disse que é importante falar com você.

Amadeus revirou os olhos. Às vezes, tinha vontade de demitir Frank só por conta dessa insistência chata que ele tinha em atender todo mundo que passasse pela porta e, independentemente de ter outro tatuador livre no estúdio, os novos clientes eram sempre encaminhados a Amadeus só porque Frank queria passar uma boa impressão.

Saiu da salinha e, na recepção, encontrou um homem que sentia que conhecia de antes, mas não sabia de onde. O tal de Mikko Hassan tinha uma aparência árabe.

— Amadeus Taylor, prazer. – se apresentou, estendendo a mão

— Mikko Hassan. – respondeu o rapaz, apertando a mão, com um sotaque nórdico muito forte – Ouvi falar muito de você e decidi que já era hora de me tatuar, principalmente depois de me mudar.

— De onde você é?

— Helsinque.

— Helsinque? E qual a sua ideia? Pra tatuagem, digo.

— Não sei exatamente. Talvez alguma coisa que envolva a família da minha mãe e a do meu pai.

Mikko começou a explicar sobre a mistura que tinha em sua família, em como sua mãe era finlandesa e seu pai palestino e em como isso o tornou diferente dos vizinhos.

— Acho que sei o que fazer. Só um minuto. – entrou no estúdio pra pegar lápis e caderneta

Enquanto esperava, Mikko olhava ao redor. Sentia que já conhecia aquele espaço, como se já tivesse ido ali várias vezes antes. E, apesar da dor de cabeça latejante, tinha a sensação de que conhecia Amadeus, não só pelas indicações de tatuadores.

Quando Amadeus voltou, tinha um bloco de desenho numa mão e lápis e borracha na outra. Um esboço leve já estava na página.

— O que acha disso? – perguntou Amadeus – Ainda é um esboço, posso ajustar o que você quiser.

— Acho que é uma boa sim.

Amadeus levou Mikko para a maca para começar o processo de tatuagem. Separou as agulhas, a tinta e começou a preparar a mesa de trabalho quando Frank bateu na porta.

— Se incomoda de fechar hoje? – perguntou – Eric quer fazer alguma coisa hoje e o resto do pessoal já saiu.

— Tudo bem. Pode ir. – Amadeus respondeu sem nem olhar para a porta

Começou a tatuar Mikko, já depois da saída de Frank, e os dois perceberam uma presença de um terceiro homem, que não perceberam entrando. Amadeus e Mikko se entreolharam antes de devolverem o olhar pro homem.

— Conhece? – Amadeus perguntou

Mikko deu de ombros e negou com a cabeça. O homem se aproximou do tatuador e do rapaz.

— Oi, meninos. – o homem que chegou disse com um sorriso simples – Eu sou Raphael Martens. Pode-se dizer que, de certa forma, sou pai de vocês.

— Sendo melhor do que o babaca que engravidou a minha mãe, tá valendo. Bem-vindo. – disse Amadeus sem entusiasmo, tentando voltar ao trabalho

— Posso deixar um negócio no seu laboratório? – Raphael perguntou diretamente para o tatuador, que pareceu chocado

— Como você sabe do...?

— Simplesmente sei.

— E o que você quer deixar lá?

— Blockers. Vocês dois e as irmãs de vocês vão precisar deles.

— Não somos irmãos, como você pode perceber. – Mikko comentou, cético

— Não no sentido biológico. Mas...

Raphael começou a explicar o mundo homo sensorium da forma que pôde enquanto Amadeus tatuava Mikko. Contou que, além dos dois, o cluster tinha mais três mulheres e que todos nasceram exatamente no mesmo momento.

— Isso não faz o menor sentido. – Amadeus intercedeu – É loucura. Mas o que quer que sejam esses comprimidos aí, quero poder estudar eles um pouquinho. Deixe em cima da bancada. Mais tarde eu dou uma olhada melhor.

Maria entrou no que parecia a milésima reunião só daquele dia. Justo quando estava com a cabeça explodindo com uma enxaqueca que tinha surgido do nada no dia anterior e parecia não querer ir embora mesmo depois dos remédios.

Tinha passado a noite acordada depois de ter o mesmo sonho todas as vezes que fechava os olhos. Um homem entrando na clareira de uma floresta e que sorria debilmente pra ela.

— Maria? – Ricardo a chamou

— Desculpa. Estou com uma enxaqueca horrível. Pode repetir, por favor?

— Como tá a situação do processo com os Miranda? É favorável?

Ah, sim. Os Miranda. Uma família poderosa que fez o favor de se meter com as pessoas erradas e ainda levar Maria e o escritório dela pro meio da confusão.

— É complicado… Eles não têm como provar que não sabiam que a carga que receberam era roubada. Mas to perto de conseguir um álibi pra eles.

— Ache logo. Eles são os nossos melhores clientes. E como tá a situação do caso Malheiros?

— A sentença deve sair essa semana. Favorável pra gente, claro.

— Ótimo. Sérgio, o que você me conta de bom?

Maria deixou de escutar. Não porque não se importava com o que seu outro sócio tinha a dizer, mas porque sua cabeça explodia.

— Vocês se incomodam se eu for lá fora tomar um remédio? É que eu realmente não to aguentando essa dor. – ela interrompeu o que Sérgio dizia

— Não é melhor você ir num médico? – sugeriu Sérgio – Você parece realmente mal. E, se algum dos seus clientes aparecerem, eu falo com eles.

— Você faz isso?

— Só se você for no médico.

— Obrigada.

Ela recolheu os papéis a sua frente e saiu da sala de reunião. Quando chegou em sua sala, largou os papéis de qualquer jeito em cima da mesa, pegou suas coisas e foi direto pra casa.

Desligou o celular e jogou a bolsa de lado. Praticamente se arrastou pra cozinha, onde viu, de novo, o homem que povoava seus sonhos. Ele sorriu para ela e acenou com a cabeça.

— Maria? – ele perguntou

— Como você sabe meu nome e o que você tá fazendo aqui? – ela retrucou assustada

— Fique tranquila, minha querida. – a voz do homem parecia ter um efeito calmante nela – Eu não quero te fazer mal. Quero te ajudar e te apresentar aos teus irmãos.

— Eu não tenho irmãos.

— Não da forma que você pensa. Eles dividiram o primeiro ar com você. Todos eles nasceram exatamente no mesmo momento que você.

— E quem seriam essas pessoas? – a vozinha de desconfiança ainda rondava sua mente

— Ah, minha querida, você vai ter tempo de conhecer seus irmãos. Mas saiba que vocês vão precisar proteger uns aos outros.

— E quem são esses irmãos? Onde eles estão?

— Seus irmãos estão espalhados pelo mundo. Aos poucos vocês vão aprender a entrar em contato um com o outro.

— Posso saber quem são eles? – Maria insistiu

— Claro que pode, minha querida.

O ambiente ao redor dos dois mudou drasticamente e já não estavam mais na cozinha quente no Rio de Janeiro. O homem apontou para porta de escritório em frente aos dois. O ambiente estava frio.

— Do outro lado da porta, está uma das suas irmãs. Vou abrir a porta e vamos conversar com ela. O que acha?

Maria deu de ombros. E Raphael abriu a porta para um escritório que mais parecia uma biblioteca. Uma mulher loira estava sentada na escrivaninha e se assustou com a presença dos dois.

— Quem são vocês? – ela perguntou assustada

— Eu... Eu sou Maria do Amaral. – Maria gaguejou – E você é Danielle, não é?

— Sou sim – o tom de voz de Danielle passou para uma desconfiança – Como você sabe disso?

— Eu não sei, na verdade. Mas ele parece ter alguma explicação. Porque, até onde eu sei, eu ainda estou no Rio de Janeiro.

— Rio? Tipo, no Brasil? – Danielle se animou

— Sim. Quer conhecer minha casa qualquer dia desses?

— Meu Deus, é claro! Mas eu teria que ver essas coisas de visto e tal antes de ir...

— E você acha mesmo que eu estou aqui? Eu ainda estou na cozinha da minha casa no Rio. Raphael, explica o que tá acontecendo aqui, pelo amor de Deus. Porque nenhuma de nós estamos entendendo muita coisa.

Raphael começou a explicar o processo de sensate e de como as duas mulheres estavam ligadas entre si e a mais três pessoas que elas iriam conhecer ao longo do tempo. Explicou como poderiam fazer para visitar uns aos outros quando precisassem. Também alertou para os perigos da BPO, em como deveriam fazer para evitar serem pegos, especialmente porque ele, Raphael, estava na lista de procurados da organização.

— Vocês, por serem meus filhos, vão precisar trabalhar mais para se esconder. Vou deixar com um de seus irmãos, Amadeus, um vidro com blockers. Ele vai saber o que fazer com esses blockers e vocês poderão procurar ele para conseguir mais. Entenderam?

As duas concordaram com a cabeça.

— Agora eu tenho que ir. Vocês podem falar comigo quando precisarem, mas agora tenho que me esconder antes que a BPO me encontre.

Raphael saiu das vistas das duas mulheres, que ficaram num silêncio um pouco constrangedor.

— Então, o que você faz da vida? – Maria perguntou, tentando quebrar o gelo – Dá aulas?

— Também. Na verdade, dou aulas e faço pesquisas. Até gosto de dar aula, mas prefiro minhas pesquisas de campo. E você?

— Sou advogada. Mas tirei a tarde de folga porque to com uma dor de cabeça sem tamanho.

— Nem me fale dessa dor de cabeça. É infernal.

Assim que Danielle parou de falar, as duas mulheres começaram a ouvir um barulho de motor. A iluminação do ambiente mudou, sendo substituída por lâmpadas incandescentes. As duas olharam em volta e viram dois homens. Um tatuando o outro.

— Ótimo, mais visita. – reclamou Amadeus – Moças, sinto muito, mas o estúdio está fechado. Ele é o último cliente do dia e vocês não deveriam estar nessa área. Talvez se vocês vierem amanhã eu posso ajudar vocês.

— Mas eu estou no Rio de Janeiro. – Maria se pronunciou – Seu nome é Amadeus, não é? E o seu é Mikko, né?

— E você é Maria. Vamos continuar constatando o que já sabemos. – Amadeus continuou com mau humor

— Oooh, vento frio vindo diretamente do nosso amigo tatuador. – caçoou Danielle – Não temos culpa do seu ex ser um cuzão, cara. Por sinal, onde estamos?

— Londres. – Mikko se pronunciou – E ex? Quem é seu ex?

— O babaca que te recebeu aqui. – Amadeus respondeu – E me desculpem pelo mau humor. Eu só não estou aguentando a dor de cabeça. O barulho da máquina e o fato de trabalhar com Frank não ajudam em nada.

— Vocês estão onde, meninas? – Mikko perguntou, tentando desviar o foco do humor de Amadeus e distrair a mente das agulhas que formavam o desenho em sua pele.

— No meu escritório em Nova Jersey. Dou aulas e faço pesquisa em antropologia. – respondeu Danielle – É mais legal quando não estou dentro de sala de aula.

— E eu estou em casa. No Rio. – Maria contou – Sou advogada, mas tirei a tarde de folga porque não conseguia focar em nada com essa dor de cabeça horrorosa. E vocês?

— Claramente sou o tatuador da história. – respondeu Amadeus – Mas também já trabalhei como engenheiro químico.

— Ah, então é você quem está com os blockers! – exclamou entusiasmadamente uma mulher que nenhum dos quatro tinha visto chegar – Oi, pessoal! Sou Kai. Desculpa pelo susto, mas Raphael só me deixou a par das coisas agora.

— Dançarina? – perguntou Mikko

— Boa observação. Eu só acrescentaria lutadora. Mas entendo que a roupa entrega pra dançarina. E você?

— Jornalista. Moro em Helsinque, mas vim a trabalho pra Londres.

O quinteto continuou conversando, apesar de Amadeus quase não interagir pra não perder a concentração na tatuagem.

— Gostei da cara de vocês. – Kai comentou – Acho que vai rolar muita coisa boa entre a gente. Só que tenho que ir. Tenho ensaio geral pro espetáculo de hoje. Foi bom conhecer vocês.

Assim como apareceu, Kai sumiu. Isso levou Danielle a olhar o próprio relógio.

— Puta merda. Tenho aula agora. Até mais, galera.

— Acho que vou deixar vocês completarem a tatuagem aí. Vejo vocês por aí. – Maria se despediu antes de desaparecer


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