A Caçadora escrita por Janus


Capítulo 6
Capítulo 6




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Observou a serviçal humana sair da sala com um leve sorriso após ter deixado uma travessa com pães diversos, algumas frutas e algumas variedades de patês. Finalmente estava sozinho em seu escritório, seu reduto particular dentro de seu palácio, onde poderia avaliar e planejar suas próximas ações.

Pegou as bolotas de sorni da travessa e as mastigou em sua boca. Adorava aquela fruta seca que muito lembrava o gosto do amendoim torrado, uma das poucas plantas do planeta Terra que não conseguiam sobreviver naquele mundo devido a alguns tipos de insetos. Também era uma das poucas coisas que mais sentia saudade daquele planeta. Isso e jogos de beisebol, nos quais ele sempre devorava os saquinhos de amendoins.

Na parede atrás dele estava um mapa de seu reino e dos vizinhos que ocupava quase que a totalidade desta. Com exceção da grande janela a sua direita mostrando o último dos sois se pondo, nada mais havia na sala além da grande mesa onde se sentava defronte e as gavetas desta. Por cima da mesa estava a travessa deixada e várias folhas soltas onde um dos auxiliares tinha anotado vários registros sobre os eventos mais importantes para ele analisar posteriormente.

A fazenda experimental aplicando novos métodos de plantio e manuseio das colheitas estava indo bem, e o moinho de vendo instalado nesta para gerar eletricidade para o consumo de alguns equipamentos a serem usados na armazenagem dos frutos parecia também funcionar a contento. Ainda não sabia como resolver os futuros problemas de manutenção. Tinha selecionado os mais engenhosos construtores para estudar o projeto e tentar criar uma versão própria do gerador de eletricidade, mas não esperava resultados aceitáveis antes de alguns ikunis.

Sabia que não havia forma de simplesmente pegar maquinas da Terra para usar ali, e revelar a existência daquele mundo a raça humana também estava fora de questão, ao menos, enquanto em termos de capacidade tecnológica estivessem tão defasados.

Por outro lado, as habilidades que desenvolveram ali seriam impressionantes para humanos comuns. Ele próprio nunca acreditou em magia, e acreditava inicialmente ter sido abduzido por forças extraterrestres quando chegou ali muitos ikunis atrás, ou melhor, muitos anos atrás. Da ultima vez em que esteve na Terra viu que se passaram sessenta anos.

Isso significava que ele estava regendo aquele reino há uns quarenta ou cinqüenta anos.

De qualquer forma, caso conseguissem criar um engenho capaz de gerar eletricidade através do vento com meios próprios e com isso houvesse uma redução no trabalho braçal nas fazendas, ele poderia ter mais mão de obra disponível para alguns empreendimentos em alguma infraestrutura, e o primeiro que ele pretendia fazer seria nas estradas. Assim como Roma manteve seu império com estradas para acelerar a velocidade de movimentação de mercadorias e tropas, ele pretendia fazer o mesmo ali.

Colocou a anotação sobre a fazenda de lado e reviu outros eventos menos importantes. Um dos que ele não fazia questão alguma de se aprofundar era sobre as finanças. Tinha seus contadores para cuidar disto e apenas tentava garantir uma cobrança justa das taxas. Interessava-se mais nas colheitas e em uma forma de implementar ensinamentos para a população. Isso sim foi algo inédito ali, criar locais para ensinar conhecimentos gerais aos jovens. Foi isso mais do que outra coisa que fez Hala crescer tanto.

Em seguida avaliou o resumo da situação comercial entre algumas cidades, constatando que estavam começando a se normalizar finalmente. Mas o preço tinha sido até então a chacina de pelo menos sete mil jintanos.

Pegou um dos pães e o mergulhou em um pequeno pote de patê esverdeado, mastigando-o em seguida. Não considerava essa como a sua decisão mais sábia – e nunca iria dizer tal coisa -  mas estando agora integrado àquele mundo, não se arrependia dela. Ordenar o extermínio total dos jintanos acampados em seu reino resolveu muitos problemas, e ninguém acabou reclamando disto.

Na verdade alguns até questionaram do porque dele demorar tanto para decidir tal coisa.

Terminou de comer o pão e ficou olhando o segundo Sol desaparecer no horizonte através da janela. Ali ele era chamado de Kobe, o nome que deu para si mesmo quando se tornou um mago. Matar no cumprimento do dever não tinha sido difícil, uma vez que tinha sido um soldado na segunda guerra mundial poucos meses antes de chegar naquele mundo, portanto ainda eram vividas suas memórias sobre as mortes que ele fez na guerra.

Mas era diferente. Como soldado ele usava um fuzil, lançava granadas, preparava armadilhas, e sempre atacava junto com seu esquadrão de forma que a matança que causou naquela época não era algo apenas dele, mas em conjunto de outros. Era na verdade um pouco impessoal.

Ali as mortes que causou foram mais intimas. Ele via os olhos de suas vitimas, o pânico que algumas demonstravam, o esforço para lutar pela vida e sobreviver.

Foi preciso um esforço considerável para não ficar propriamente acostumado com isso, mas no fim acabou derrotado. Ainda podia ver suas vitimas como inimigos, não pessoas – ou neste caso, criaturas – conscientes que até imploravam pela vida. É fácil matar um inimigo, mas é difícil matar uma pessoa. No fim, acostumou-se com a morte, acostumou-se a matar, e acostumou-se a mandar matar.

Apertou os lábios e acabou sorrindo levemente. Era uma mentira. Ele não se acostumou com isso realmente, ele apenas aceitou o fato. Um fato que seria necessário por muito tempo naquele mundo com reinos governados por ambiciosos tiranos.

Sendo que ele podia ser considerado como um desses.

Bom, não um tirano, mas talvez se enquadrasse mais na figura de um imperador. E agora precisava decidir o que fazer com o acampamento encontrado perto da fronteira. Sem dúvida era esse grupo que devia estar causando problemas em Mojafa, e ao constatar isso franziu o cenho pensativo. Já fazia um bom tempo desde que tinha feito sua oferta a esta cidade, e não houve resposta. Teria o governador uhfar – como era mesmo o nome dele? Lodus! Sim era esse mesmo – obtido alguma resposta de Severino?

Não se incomodava com um prazo final – na verdade nem lembrava se tinha dado um prazo para ter uma resposta – apenas queria que houvesse uma decisão. Aproveitar a situação precária destas cidades com a presença jintana as incomodando tinha sido uma excelente manobra para ampliar seu reino, mas não vingou tanto como ocorreu com as outroras cidades de Jinta.

E isso o estava irritando!

O irritava porque Severino ainda tinha um grande respeito em seu reino, e seria preciso um tempo maior até o problema com os jintanos verdadeiramente o deixar sem saída.

Ou talvez ele devesse fazer algo para acelerar isso.

Sorrindo, fixou seu olhar na folha onde estavam escritos vários dados sobre a situação da fronteira e dos acampamentos de refugiados destruídos bem como a contagem dos mortos. Na parte de baixo da folha havia um esboço de um mapa, indicando círculos que representavam cidades, e cruzes mostrando os acampamentos eliminados.

Como se fosse assoprada por um vento genioso, e folha tremulou um pouco e flutuou acima da mesa, pairando diante de seus olhos. Logo uma pequena nuvem de fumaça surgiu em um ponto desta, que indicava um acampamento próximo de Mojafa, sendo que momentos depois toda a folha inflamou-se e consumiu-se totalmente em chamas, apenas sobrando algumas cinzas que lentamente flutuavam até pararem na sua mesa.

Não ia permitir nenhum grupo de refugiados de Jinta próximo de seu reino, isso ele já tinha decidido. O que lhe faltava definir era como tornar isso realidade sem causar um incidente com o reino de Mira.

Súbito, o sorriso que ainda estava em seu rosto tinha aumentado mais um pouco. Talvez ele até já possuísse os meios para isso, mas teria que preparar o terreno antes.

oOo

A barra de ferro chegou a soar como um sino quando atingiu a pedra do seu lado. Felizmente isso lhe deu tempo para se afastar e se por em guarda novamente. Jota a observava incrivelmente animado, quase que com um sorriso nos lábios, ela por sua vez notava claramente a multidão de soldados se aglomerando ao redor da pequena arena do quartel, observando feito espectadores diante de uma luta em um ringue.

E a comparação não podia estar mais certa.

Naquela manhã sua roupa ficou pronta, e apesar de ainda estar incomodada pela coruja ter insistido tanto para ser uma roupa extremamente justa em seu corpo, precisou aceitar o fato de que foi incrível usá-la. Primeiro sentiu-se como uma motociclista usando uma apertada roupa de couro, faltando apenas o capacete. Só que não era apertada! Ela simplesmente parecia que se fundia a sua pele. Era como ter uma armadura sobre a pele que permitisse sentir tudo ao redor, quase como se estivesse nua.

Podia sentir a brisa, o calor dos dois sois, sentia até mesmo algumas vibrações sonoras em sua pele através daquele couro, coisas que estavam totalmente abafadas pelas roupas de tecido que usava antes. Foi só naquele dia que realmente compreendeu todas as habilidades que tinha adquirido tendo Cloni como seu parceiro.

E se não fosse por estas habilidades, não teria a mínima chance contra Jota nesse treino de agora.

Girou sua arma e bloqueou a barra de ferro que ele empunhava pouco antes de atingir o seu pescoço, causando um novo som de tilintar de metal pelo local. Chegou a sentir seu pulso direito doer com o impacto que a lâmina sofreu, tamanha foi a força do golpe. E foi apenas por isso que ela deu um salto para trás ao mesmo tempo em que girava a lamina na sua mão esquerda para mantê-lo um pouco afastado.

Vários dias atrás ela era uma jovem professora de educação física. Mantinha-se em forma devido a isto, e talvez fosse a única explicação para poder ter suportado aquele treino até o momento. Mas ela não se enganava, estava com duas grandes desvantagens ali.

A primeira era obvia: Ela não era nem um pouco experiente para usar aquelas armas, apesar de estar até se saindo bem ao girá-las imediatamente após ele as bloquear com o ferro. Isso o obrigava a fazer um contra golpe para se defender das outras laminas que iam em sua direção, não dando chance dele a atacar diretamente. A segunda era menos perceptível para os espectadores... ela simplesmente estava morrendo de medo de machucar Jota. Ele estava apenas usando uma barra de ferro, se fosse atingida, iria sem duvida doer, mas seria apenas isso. Mas acreditava que o mesmo não ocorreria com seu oponente caso o atingisse com suas afiadas laminas, ainda que ele quase que tenha jurado que estas não poderiam penetrar em sua armadura.

Trincou os dentes quando Cloni arrulhou dizendo que ela ainda estava muito condicionada ao seu amestramento social para não ferir ou matar seus semelhantes, mas apesar da forma como ele tinha dito isso a irritar, não podia negar que era verdade. Ali era um mundo com outras regras sociais, com instrumentos de morte de certa forma limitados e primitivos – até onde tinha avaliado pelo menos – cujas regras estava começando a compreender. Mas apesar destes instrumentos mortais serem antiquados para ela, eram usados com estrema freqüência e sem hesitação. No seu mundo eram raros os que matavam puramente por matar, ou por questões de desrespeito e arrogância. E isso porque poucos eram os que andavam armados constantemente.

Sabia como era fácil deixar a raiva tomar conta e usar qualquer coisa ao seu alcance para descarregar esta naquele que tinha sido responsável por isso, e as vezes poucos minutos depois esta raiva diminuía para um simples rancor, isso quando não desaparecia por completo.

Ali no entanto era o oposto. Quase todos os que ela tinha visto tinham pelo menos uma faca para usar como proteção, mesmo as mulheres, ou talvez seja melhor dizer fêmeas, já que ainda estava em sua mente que a palavra mulher deveria ser usada para humanos ou seres fisicamente parecidos com estes.

Começou a atacar seu oponente com mais força e determinação, chegando a quase bloquear seus pensamentos assim. Por alguns instantes era como se a única coisa que houvesse em sua mente fosse poder atingi-lo, mostrar que não era uma amadora por completo, e que tinha disposição para ser capaz de viver ali com essas regras diferentes das que conhecia.

Se foi o seu ímpeto ou não, não chegou a descobrir, mas Jota mudou sua forma de combate em seguida, permitindo que ela avançasse contra ele e em uma estocada atingiu sua nuca com força, o que a fez desabar ao chão quase que imediatamente.

Levou um tempo para compreender o que tinha ocorrido. Ele a induziu a andar para a frente e quando esticou suas laminas para tentar atingi-lo ele conseguiu abertura para acertá-la por cima de sua cabeça.

Tossiu um pouco para tirar a poeira de sua boca, e com um certo sorriso de vergonha ergueu-se até ficar com os joelhos dobrados no chão. Olhou para cima e notou uma expressão um pouco diferente no seu companheiro. Ele parecia mais sério que o normal, mas parecia também surpreso. Logo depois ela percebeu cochichos na platéia que tinha se reunido ali para presenciar o pequeno treino. Não entendia suas palavras, mas as ouvia claramente sendo ditas por eles. E algo que ela percebeu nesta cacofonia era uma constante repetição do som Inoztoca. Já tinha ouvido esse som antes quando andava pelo castelo ou na vila situada dentro deste, e já tinha avaliado que era uma forma de se referir a ela, mas ainda não sabia o que significava.

- Você está bem, caçadora? – perguntou Silvia segurando em seus ombros de forma suave. No mesmo momento ela sentiu algum formigamento ao redor de onde as mãos dela a tocavam.

- Parece que meu pescoço foi atingido por um martelo – chorou ela movendo a cabeça devagar, tentando dar algum alivio para a dor que sentia – Pode fazer algo sobre isso?

- Chorona – ela maneou a cabeça – não vou gastar minhas habilidades para algo que uma simples compressa possa resolver.

- Então faça logo esta compressa – ela esfregava a sua nuca suavemente – antes que minha cabeça receba a dor que está subindo pela minha nuca.

- É o bastante por enquanto – disse Jota se afastando um pouco e colocando a barra de ferro que tinha usado como arma em um canto da parede próxima – você é surpreendentemente mortal com estas orvis. Por incrível que possa parecer, seu treinamento será baseado em controlar seus instintos homicidas, para não cair em armadilhas como esta que acabei de fazer contigo.

- Instinto homicida? – murmurou ela arregalando os olhos.

- Porque está surpresa? – questionou ele a observando quase que de forma incrédula – seus olhos me disseram isso. Há poucos instantes tudo o que lhe interessava era me atingir, fato claramente visível em seu olhar.

Ela piscou os olhos várias vezes, lembrando-se do momento em que tinha se condicionado para unicamente se preocupar em acerta-lo. E acabou reconhecendo que era verdade. Naquele momento, deve ter agido exatamente como qualquer fanático de qualquer tipo de movimento existente agiria, visando unicamente seu objetivo e ignorando qualquer outra coisa.

- Até então – continuou ele após uma breve pausa – estava agindo de forma excepcional, observando meus movimentos e se adaptando a eles. Estas orvis realmente parecem ser os melhores equipamentos ofensivos ou defensivos que você poderia usar.

Não conseguiu evitar sorrir, apesar de fazer um esforço considerável para tanto.

- O que significa Inoztoca? – perguntou ela de repente.

- Hum... – Silvia coçou o queixo pensativa – não é uma palavra que tenha correspondência na sua língua, mas o mais próximo seria novata, ou iniciante. Mas é usado como referência a companheiros de armas.

“Colega novata”, pensou ela. Sentiu-se de certa forma lisonjeada por tal referência. Ergueu-se tentando estalar os ossos de sua nuca – para aliviar a dor que sentia ali – e observou novamente aquele couro muito bem assentado em sua pele, quase como se fosse algo de borracha. Incrível como não se sentia apertada com aquilo, mas sim como se fosse parte de seu corpo.

Mas por outro lado, se sentia muito, mas muito chamativa assim. E percebeu – de uma forma um tanto inusitada – o quanto sua percepção estava elevada. Notava facilmente quem desviava o olhar na sua direção conforme caminhava, e estes eram quase sempre os seres de forma humana como ela. Ao menos, os atrativos sexuais ali pelo jeito eram os mesmos com os quais estava acostumada, infelizmente era provável que a quantidade dos que poderiam valer a pena seria muito reduzida, como no seu mundo.

- Vamos indo, caçadora – disse Silvia tocando sua nuca novamente e felizmente aliviando um pouco a dor que sentia nesta – vamos comer e depois você fica livre com Cloni para que ele continue a te treinar.

Cloni bateu suas grandes asas e alçou voo, arrulhando para ela se alimentar bem, pois só retornariam tarde da noite. Ela observou seu companheiro, ou melhor, seu parceiro animal se afastando e pousando em uma das torres mais próximas. Já tinha percebido que ele gostava de locais onde podia observar tudo ao redor.

Acompanhou em silencio seus colegas enquanto retornavam a torre onde ela tinha seu quarto, a mesma torre onde no térreo havia uma sala com várias mesas que eram usadas durante as refeições. Para ela, aquilo era como estar em um hotel, com um refeitório no estilo de auto serviço. As várias travessas com comida preparada ficavam em uma grande mesa central e as pessoas – ou criaturas – pegavam o que queriam comer.

A diferença era que aparentemente eles não tinham a menor ideia do que seria uma fila, de forma que ela preferia chegar um pouco depois dos outros ou as vezes antes destes, para evitar ficar se engalfinhando para pegar alguma coisa.

Quando entraram na sala ela viu aliviada que a mesa central onde a comida ficava estava razoavelmente livre. Sua nuca também estava com uma dor muito menor agora, e sem nenhum tipo de receio – da primeira vez ela ficou muito indecisa sobre como agir – pegou um dos pratos de madeira e serviu-se do que queria.

Era verdade que estava ali agora fazia muitos dias, mas ainda lhe era estranho não haver quase nenhum tipo de comida preparada, exceto a carne e alguns grãos cozidos. Nada similar a tortas, molhos, bolos ou outros alimentos elaborados parecia existir naquele mundo – ou ao menos, não era servido para eles.

Seu prato era uma mistura de frutas – muitas desconhecidas cujos nomes ela ainda penava para pronunciar – e carne assada ou frita. Percebeu que ultimamente estava adorando mais e mais comer carne, e imaginava se isso seria alguma influencia de seu parceiro animal. Leonardo tinha tentado ao máximo lhe explicar essa transferência de características que ocorria entre o caçador e seu parceiro, mas a rigor era impossível realmente determinar até onde isso podia se estender. A única coisa realmente certa e que iria sempre ocorrer era que o parceiro animal iria obter racionalidade e o caçador obteria algumas – senão todas – habilidades deste. Normalmente as áreas afetadas eram o olfato, visão e audição.

Adicionalmente poderiam ocorrer outras interações, como uma pele mais resistente similar a couro, instintos de caça, aversão a conversar, e outros efeitos colaterais.

No seu caso, ela achava que seu efeito colateral estava no gosto da comida, ou melhor, na comida que ela estava tendo preferencia agora. Preferia frutas e carnes, dispensando quase sempre grãos – como o ihtos que era parecido com o arroz – que precisavam ser cozidos. Mas adorava aqueles que eram crus – ou que precisavam ser assados - e salgados, como um tipo de soja – que ela nunca perguntou o nome – que era fornecido como tira gosto ou mero enfeite nas travessas de comida.

- Caçadora – chamou Jota enquanto abria a casca de uma fruta de tamanho e textura similar a de um abacate – não tente ir além de suas capacidades. Nesse treino que tivemos eu notei que você estava tentando se superar, e em várias ocasiões.

- Isso é errado? – ela estava claramente surpresa com o comentário, tanto que quase se engasgou com a fruta que mastigava.

- Bom, eu acredito que é melhor não ultrapassar seus limites enquanto seu corpo ainda está se adaptando a este mundo – disse ele em um tom bem mais cordial e quase pedindo desculpas. Silvia pensou que talvez houvesse alguma outra razão para o comentário, mas não conseguiu determinar qual seria.

- Você precisa ser ágil, não forte fisicamente – interveio a outra Silvia a olhando diretamente nos olhos – os alimentos que você está ingerindo aqui estão mudando seu corpo, e caso continue com este tipo de esforço, irá acabar ficando bem mais forte mas sem a agilidade que seu status necessita. Com certeza você já é agora mais forte fisicamente que qualquer outra pessoa que tenha conhecido em seu mundo, mas sua adaptação ainda está incompleta. Na verdade ela está no começo ainda.

Agora entendeu o porque do comentário de Jota, mas ficou reticente sobre o motivo dele não ter explicado isso diretamente. Observando como ele parecia agora um pouco encabulado e talvez até irritado, entendeu que ele não queria dar tal informação para ela.

Ela estava ali para ser uma caçadora, era esse o seu destino. Sua “classe” ou status como Silvia tinha falado. Aparentemente não haveria volta para isso, ao menos, não naquele mundo. Uma profissão permanente ou quase isso. Bom, considerando sua “ligação” com Cloni, provavelmente ela não tinha outra escolha. Ao menos, não por algum tempo. Mas se lembrava vagamente de que quando foi visitada pela primeira vez, aquele homem cheio de piercings tinha dito que o trabalho não era vitalício, ou algo parecido.

Decidiu não se preocupar com isso e continuou a comer com vontade, já que depois iria sem dúvida ter um treino cansativo e longo com Cloni a fazendo compreender as suas capacidades de caçadora.

oOo

A maioria deles andava de um lado para o outro, e os que ficavam parados mostravam claramente que estavam irritados. Belos líderes esses... mas ele não podia reclamar, pois não foi contra eles quando a fome comprimia sua barriga e deixava seus filhos agonizantes. Chegaram a comer cascas de árvores, folhas secas, insetos, qualquer coisa que podia enganar a fome.

Ele não era um soldado, muito menos um bandido - ou melhor, não era um bandido antes – apenas queria sobreviver, e logicamente queria proteger sua família. Enfim, tinha que fazer o que um rila faz: Cuidar de sua tribo. Neste caso, ele considerava apenas sua família como parte desta tribo, coisa comum quando se vive junto a outros povos.

Parou de prestar atenção no que eles faziam e recostou-se melhor na grande árvore frondosa em que tinha se acostumado a ficar após a refeição. Podia ouvir as crianças gritando a distancia em suas brincadeiras, no mundo simples deles em que não se preocupavam muito com a sobrevivência a não ser quando a fome vinha e não havia o que comer.

Olhou para as unhas negras de sua mão e apertou os lábios quase sentindo a argola de metal do lábio inferior se entrelaçando com o pino metálico do lábio superior. Duas de suas unhas provavelmente nunca mais iriam crescer. Já não doía como antes, quando tinham sido cortadas por aquela espada do soldado, mas a irritação da perda lhe era grande, como seria com qualquer rila.

Fechou a mão em um punho e quase rosnou entre dentes. Só não o fez para não chamar a atenção de ninguém para si. Precisava decidir o que fazer agora. Ele estava com o grupo que estava de tocaia na estrada aguardando uma caravana passar quando presenciou outros jintanos fugindo, e atrás destes vários soldados de Hala os perseguindo. Como todos os outros presentes então, fugiu em desespero de volta ao seu acampamento, e por sorte, pareceu que não foram percebidos.

Mas a situação agora era muito desesperadora.

Antes de Vanir invadir sua terra natal, ele tinha a vida que todo rila adoraria ter... simples, estável e satisfatória. Tinha uma esposa e três filhos, sendo que a filha mais velha estava próxima de sua primeira ferida – como seu povo chamava a época em que começavam a colocar enfeites de metal no corpo. Ela até estava esboçando a forma como queria faze-los com tiras de couro.

Lembrava-se de quando seu pai endossou sua escolha de esposa. Foi quando pode escolher o seu próprio nome, o nome do clã que agora ele tinha o direito de formar. Mas não quis faze-lo. Estava satisfeito sendo parte do clã de seu pai e não viu motivos para mudar isso. Sua esposa também aceitou participar daquele clã. Assim, seu nome não mudou, continuou sendo Kenfatde do clã halja.

Ele fazia trabalhos em madeira, coisa que aprendeu com o irmão. Acabou se mudando para outra cidade a conselho de seu próprio pai que viu que ali haviam melhores oportunidades para ele. E ele estava certo. Não ficou abastado como esperava, mas podia se dar ao luxo de não se preocupar muito com o futuro próximo.

Mas houve o ataque de Vanir, e ouvindo histórias de que a população das cidades conquistadas eram transformadas em escravas e usadas para trabalhos forçados decidiu – como milhares de outros – pegar sua família e fugir. Afinal, sua principal meta era proteger sua tribo!

Não se lembrava muito bem de como foi. Sua mente piedosamente bloqueava detalhes deste período. Não se lembrava dos corpos que viu pelo caminho, dos desesperados implorando ajuda, de sua esposa e filhos as vezes gritando em desespero...

Sabia que tal coisa tinha ocorrido, mas não podia lembrar os detalhes. E agradecia por isso.

Varias e varias vezes, sua família acabou se juntando a outras famílias, formando grupos de pedintes e esfomeados que as vezes recebiam comida, as vezes até tinham convite para trabalhar em fazendas por algum tempo em troca de abrigo e refeição e que em outras vezes roubavam e matavam para sobreviver.

Várias foram às vezes que escaparam por pouco de serem mortos por animais selvagens, isso graças a resistência de seu povo que os permitia escapar de suas garras, e estes predadores preferiam pegar outros do grupo mais lerdos e fracos.

Por um curto período, acabou se unindo a um grupo que estava conseguindo montar um acampamento mais permanente, caçando nos arredores e coletando plantas e raízes para sobreviver. Até mesmo podiam ameaçar uma ou outra caravana para conseguir roupas ou outras necessidades – como panelas, facas, talheres... essas coisas que antes não davam importância no dia a dia – chegou mesmo a acreditar que podia ficar um pouco menos incerto sobre o futuro.

Ele foi um tolo... reconhecia isso agora. Algum tempo depois disto, uma delegação do reino de Mira – foi só então que ele soube onde estava – tinha aparecido perante eles ofertando um lugar para viver, mas em troca de precisarem trabalhar pelo seu sustento como o faziam em suas cidades natais.

Alguns aceitaram. Ele não foi um deles. Estava acostumado a pegar o que queria naquele momento, e não aceitou que sua família fosse registrada como fugitivos. Não queria tal coisa.

Ele devia ter aceito... agora era tarde. Depois disto, achou melhor sair daquele local para não ser caçado – afinal, tinham feito uma oferta para aquele grupo, e os que não aceitaram seriam vistos como criminosos e tratados como tal – e acabou se unindo ao grupo atual. Um verdadeiro grupo de criminosos, tinha de reconhecer.

Sua esposa o avisou disto, sua filha mais velha – ainda sem nenhum ornamento – também. Mas era isso ou morrer de fome, e elas sabiam disto. Foi só por isso que não expressaram nenhuma desaprovação. Seus filhos mais novos estavam magros, fracos, e muito apáticos. Não tinham escolha a não ser ficar com eles por algum tempo.

Isso já tinha sido um ikuni atrás.

Sua filha ainda não tinha nenhum ornamento, e apesar de nada falar, era evidente como isso a irritava. Sorte que eram a única família de rilas ali. Se houvessem outros, ela dificilmente suportaria e talvez até arriscasse se adornar de forma imprópria, danificando seu corpo e sua futura beleza a ser usada para atrair um companheiro. Ademais, não havia ali naquele acampamento meios de forjar nenhum adorno, argola, nada! Não tinham ferreiro. Ela só podia se contentar com pequenos brincos que ocasionalmente ele obtinha dos assaltos que faziam.

Uma conversa mais animada chamou sua atenção, e viu três dos lideres discutindo a uma pequena distancia. Era mais do que obvio o motivo da discussão. Quando ele chegou, por um bom tempo participou de assaltos a caravanas que iam para uma cidade relativamente próxima, e eram fáceis esses assaltos. Mesmo com alguns guardas podiam sobrepuja-los com seu maior número. Mas um pouco mais recentemente, foram surpreendidos por um tipo de escolta muito mais perigosa.

Soldados! Soldados da cidade ao qual a caravana se dirigia.

Tinham armas, era verdade. Espadas, alguns escudos, até mesmo umas armaduras de couro que eram muito uteis quando atacavam os comerciantes, já que a escolta normal destes não era páreo para a quantidade de atacantes. Mas quando começaram a enfrentar verdadeiros soldados treinados e equipados para uma luta foi que perceberam que não podiam encarar tal tipo de oposição.

Muitos morreram daquela vez. Na verdade foi um massacre – deles – e só não foi pior porque bem no começo da luta alguém gritou para fugirem. Mesmo assim, mais da metade do grupo atacante pereceu. Também foi nessa ocasião que recebeu o ferimento em sua mão, afetando e muito suas unhas. Sua mão agora tinha uma grande cicatriz nas costas desta e as unhas de dois dedos tinham parado de crescer. Apesar da dor que sentiu, ficou aliviado de ter sido apenas isso.

Observar as famílias que perderam seus entes queridos quando voltaram não foi menos doloroso. E a partir de então começou a ser difícil partir para um novo ataque e as famílias que ficavam no acampamento os olharem temendo que nunca mais voltassem.

Por isso começaram a atacar em outro local, bem mais distante e observando antes a escolta que uma caravana tinha. Não demorou muito para descobrirem que estavam próximos da fronteira e que as caravanas que começaram a atacar agora eram de outro reino, o reino de Hala. Ele tinha ouvido comentários deste reino durante a guerra. Ouviu que cidades de Jinta se uniram a Hala para escapar do ataque de Vanir. Se soubesse quais cidades eram, teria ido para uma delas em vez de se aventurar como tinha feito.

Mas desta ultima vez viram soldados perseguindo um outro grupo de jintanos, não uma caravana. Imediatamente fugiram de volta antes de serem vistos. E surpresa maior foi chegar e descobrirem que no seu acampamento haviam alguns desconhecidos, fugitivos de outro grupo de jintanos que agia no reino de Hala. Eles contaram o que houve... contaram como sem nenhum aviso ou ameaça, os soldados irromperam no acampamento deles matando tudo o que viam sem distinção.

E agora seus lideres discutiam sobre o que fazer.

A verdade era simples... foram tolos em acreditar que ninguém faria nada contra eles. Que ninguém iria reagir ao que faziam, pilhando caravanas, as vezes matando comerciantes e até roubando objetos que não eram necessariamente para sobreviver.

Hala decidiu exterminar os jintanos! Não prender, não expulsar, mas exterminar!

Se Hala tinha tomado tal decisão, o reino de Mira iria fazer o mesmo? Talvez apenas o fato de estarem próximos da fronteira os estivessem preservando de serem atacados por um poderoso exército, mas considerando a feroz escolta das caravanas que encaravam por ali agora, talvez a tolerância que estavam demonstrando finalmente tenha se acabado. Era por isso que seus líderes estavam agindo assim, preocupados, sentindo medo, sentindo-se encurralados.

Era isso que aqueles três deviam estar discutindo. Estava quase apostando que estavam planejando querer fugir e deixa-los ali a própria sorte. E não podia fazer muito a respeito. Ele próprio agora estava pensando em seus três filhos e esposa. Estava avaliando se tinha mantimentos suficientes para sair do acampamento e se poderia alcançar alguma cidade mais distante. Sendo apenas uma família de jintanos havia uma chance um pouco melhor de conseguir um lugar para ficar, embora acreditasse que não seria mesmo nada fácil.


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Notas finais do capítulo

Bem, consegui postar mais um capitulo, mas não posso prometer postar o proximo em um prazo curto.



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