A Caçadora escrita por Janus


Capítulo 5
Capítulo 5




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Tinha nascido camponesa. Destinada a uma vida dura, severa, previamente definida com época para ser casada, tentar sobreviver aos partos quase anuais dos filhos, e provavelmente morrer após os trinta anos. Essa ainda era a realidade dos franceses que nasciam no campo no século XVII.

Sua vida tinha sido quase a de um trabalho escravo, sendo obrigada a ajudar sua mãe nos campos e muitas vezes roubando trigo e ficando horas moendo estes numa velha e desgastada pedra no porão de sua casa – se é que tal coisa podia ser chamada de casa. Chegou a desenvolver músculos exagerados nos braços de tanto moer os grãos com a ajuda apenas de outra pedra de granito.

Contudo, mal se lembrava desta vida agora, exceto pontos marcantes, principalmente a corvéia, que era onde aproveitava para roubar o trigo para sobreviver as secas futuras. Outro ponto que marcou sua infância foi quando foi dada em casamento aos doze anos.

Chegou a ter dois filhos, e após o parto do segundo – no qual ela quase morreu – já estava tão esgotada com aquela vida insana que pensava varias vezes em se suicidar, e não era a única.

Foram poucas semanas após isso que ocorreu a mudança em sua vida, a mudança que a levou onde se encontrava agora, em outro mundo, com um corpo que nada se parecia com o daquela menina gorda, marcada com cicatrizes e envelhecida precocemente que tinha sido. A mudança que no fim a fez se tornar uma tenente de elite de lorde Severino.

Sempre pensava nisso quando abria a cômoda de seu quarto e via os fios de cabelo que tinha guardado em um envelope quando ainda era criança e chegou ali naquele mundo. Tinha-o feito justamente para se lembrar de seu passado, do que tinha deixado para trás, e do porque não ter nenhum arrependimento do que fez, mesmo o de abandonar um filho ali – o segundo filho tinha morrido no parto.

Pegou um sutiã da cômoda e o vestiu – realmente, algumas coisas das quais roubaram a idéia do seu antigo planeta eram muito uteis – e foi em seguida se olhar no espelho para verificar se o fecho nas costas estava dobrado. Quando fez isso viu a marca em seu ombro e sentiu uma certa tranqüilidade, bem como um certo orgulho. Severino tinha sido o primeiro e até o momento único com quem tinha feito um contrato durante os quase trezentos anos em que esteve ali.

Abriu sua mão e tocou na sua testa, avaliando o estado geral de sua saúde. Ainda tinha uma pequena dor de cabeça do abuso da bebida da véspera, mas estava em perfeita saúde. E pelo que viu sua futura companheira que compartilhava o seu nome também estava, excluindo-se, claro, a adaptação que as células de seu corpo estavam sofrendo ali. Talvez devesse ter-lhe dito a verdade, que as dores que sentia se deviam as células que se dividiam e começavam a ficar diferentes com as proteínas processadas, causando espasmos nas outras ao redor ainda normais. Mas imaginava que ela ficaria assustada com isso.

Foi até o seu armário e desta vez achou melhor usar um vestido branco, com saia curta. E iria usar botas naquele dia, nada de sandálias. Como Cloni só iria treinar a percepção da caçadora enquanto a roupa dela não ficasse pronta, estava querendo aproveitar para agir mais como se estivesse passeando.

Olhou-se no espelho para verificar como estava e resistiu à tentação de usar o pincel para se maquiar. Se a outra Silvia a visse assim, com certeza iria atacar seus cosméticos, e isso ela não tinha nenhuma disposição para dividir.

Satisfeita, saiu de seu quarto e cumprimentou a ichis que fazia a patrulha no corredor, e novamente sentiu uma certa irritação dela não poder usar roupas mais coladas ao corpo. A armadura de escamas que a ichis estava usando estava bem modelada em seu corpo quase humano. Mas se ela usasse qualquer coisa diferente de tecido leve ou macio, teria dificuldades para usar sua habilidade. Afinal, esta era uma irradiação de seu corpo, não apenas de suas mãos.

Desceu dois andares e por alguns instantes pensou se devia ter verificado se a caçadora tinha se levantado, mas mudou de idéia. Seguiu pela sala do andar térreo da torre onde ficavam aquartelados a maioria dos grupos de tenentes de elite e entrou na primeira porta a esquerda, onde haviam algumas mesas que eram usadas para servirem-se do desejum.

Assim que entrou viu dois serviçais retirando uma travessa vazia logo após ter terminado de colocar uma nova cheia de frutas sobre a mesa. Ela foi na direção desta quando quase deu um pulo de susto devido a Leonardo te-la cumprimentado de surpresa.

- Bom dia, sacerdotisa sagrada.

- Como? – perguntou ela não entendendo o que ele quis dizer com aquilo. Alguns outros que o ouviram falar tal coisa começaram a rir levemente.

- Bom, foi como a outra Silvia, quero dizer, como a caçadora te chamou ontem.

- Nunca fui sacerdotisa de nada! – retrucou retomando seu caminho a travessa e pegando uma fruta alaranjada de lá, arrancando um grande pedaço em seguida com os dentes.

- Eu sei, mas achei que era uma forma bonita de chamá-la.

- Sou uma curandeira, e em menor grau uma maga como você – ela chegou a fazer bico com isso – E onde está Jota? Não me diga que ele foi acordar a caçadora de novo. Já é hora dela se levantar sozinha, não acha?

- Jota está falando com lorde Severino – disse ele em um tom mais sério – e a caçadora já se levantou pouco antes do raiar do dia. Está no alto da torre sul praticando com Cloni.

- Ela está ficando dedicada – murmurou mordendo outro pedaço da fruta.

- E aceitando muito bem tudo o que lhe ocorreu. Eu diria que ela está até empolgada.

- Bem diferente do que houve comigo... maldita idade das trevas!

Quando ela chegou naquele mundo pela primeira vez, acreditou que estava no purgatório, sendo punida por ter pensado em suicídio. Via lorde Severino como o demônio em pessoa e todas as outras criaturas como as vis criaturas que seus pais tanto comentaram a noite enquanto se reuniam ao redor da fogueira em casa. Levou muito tempo para ela compreender a realidade do que tinha ocorrido. Felizmente Leonardo sempre foi paciente com ela, insistindo dia após dia nas explicações e lhe dando conhecimento suficiente para compreender onde estava e como tinha chegado ali.

- Talvez ela mude de idéia após o primeiro trabalho – comentou ele pegando também uma fruta agora – que pode ocorrer muito antes do que imaginávamos.

- Como assim? – ela olhou na sua direção séria.

- Ontem chegou um novo mensageiro da cidade de Mojafa – disse ele calando-se em seguida.

- É por isso que Jota está falando com lorde Severino? – ela arregalou os olhos incrédula. E diante da confirmação dele, continuou – E esses outros grupos de elite aqui? – ela abriu o braço mostrando os outros seres na sala – porque não mandar um desses? Nosso grupo está incompleto ainda!

- Nenhum dos outros três grupos aqui presentes possui um rastreador – respondeu ele.

- Nem nós!

- Infelizmente, você esta errada. Temos Cloni e este tem uma parceira que pode compreendê-lo e lhe dar comandos.

- Ela não vai sobreviver! – murmurou ela o olhando atônita – seu corpo já está mais resistente mas não é o bastante. E Cloni não pode simplesmente se aventurar em território hostil.

- É isso que Jota deve estar tentando explicar para nosso lorde.

- Porque não contratamos um caçador temporário? – murmurou ela levemente. Mas já conhecia a resposta.

- Se tivéssemos essa possibilidade...

- Eu sei! Só estava desabafando – cortou ela irritada.

Ela olhou para a fruta em sua mão com marcas de seus dentes e apesar de ter perdido toda a fome pela irritação sentida com aquela novidade, resistiu ao impulso de joga-la fora. Desperdiçar comida era algo que ela se recusava a fazer por causa de como tinha sofrido privações quando jovem, de forma que se forçou a terminar de comer toda a fruta e deixar apenas as sementes e pequenas partes intragáveis como sobras.

- Afinal, qual o problema com essa cidade? – perguntou ela enquanto colocava as sementes em uma travessa destinada para este fim e as outras sobras em um balde de madeira que estava servindo de lixeira.

- O pouco que descobri com os mercadores é que ela está tendo dificuldades com um grupo de jintanos.

- Metade do reino tem problemas com jintanos – ruminou ela – e metade do reino vizinho também.

- Verdade, mas Mojafa é uma cidade fronteiriça. Sabe o que isso significa.

Ela parou sua mão a meio caminho de pegar outra fruta e ficou estática com aquela informação. Primeiro franziu o cenho acreditando que devia estar enganada, mas em seguida começou a pensar que talvez não estivesse, ou melhor, que talvez estivesse desatualizada sobre algumas coisas.

- Desde quando Mojafa é cidade fronteiriça?

- Desde a ultima colheita – respondeu Leonardo com uma expressão muito séria – Legha agora faz parte do reino de Hala.

Realmente, ela estava desatualizada.

- Isso não é um serviço para tenentes, mas sim para os soldados!

- Você conhece nosso governante, Silvia – disse ele de uma forma um pouco mais autoritária – o mesmo governante que foi paciente contigo...

- Eu sei! – disse ela de repente para que ele não continuasse. No momento em que ele começou a falar do lorde Severino ela se arrependeu do que tinha dito.

Ele ia usar todos os meios possíveis para evitar uma chacina, sabia disto. E não tinha absolutamente nenhum tipo de argumento para questionar tal coisa. Os jintanos estavam pressionados, desconfiados, e com um crescente numero de criminosos se desenvolvendo em seus grupos que se escondiam em acampamentos feitos as pressas e sem nenhum tipo de apoio externo. Era possível compreender isso, assim como era possível compreender o quanto aqueles que foram suas vitimas desejavam um basta.

Não era mesmo uma situação fácil para ninguém, e o pior era que o tempo para cuidar do assunto estava se esgotando. O reino poderia acabar se fragmentando ou as cidades iriam começar a resolver o problema por si mesmas. Ou até mesmo as duas coisas.

Percebendo que ela ficou em silencio e que estava perdida em pensamentos, Leonardo se afastou um pouco, fazendo um pequeno gesto com as mãos e com isso movendo algumas frutas do cesto através da sala e logo em seguida elas atravessaram a porta.

- O que planeja? – perguntou ela quando notou o que ele fazia.

- Fazer a caçadora comer um pouco – ele murmurou com um sorriso – ela acordou antes da primeira hora e está na torre desde então. E ela não tem permissão para deixar de comer na hora apropriada, correto?

Ela sorriu um pouco com aquilo. Antes era ela quem sofria com essas brincadeiras de fantasmas que ele fazia.

oOo

Era um grupo bem misto, um ichis, uma humana e seu parceiro animal, um klorfe que chamava a atenção por ter um grande machado preso as costas e um uhfar claramente ansioso. Tinham acabado de entrar na cidade, mas fora a heterogeneidade do grupo, o que chamava mesmo a atenção de quem os via eram os símbolos flutuando em suas vestes, símbolos que os identificavam como tenentes de elite do reino de Hala.

Tinham acabado de chegar a cidade e seguiram diretamente onde estavam agora, diante das escadas que davam acesso ao palácio onde o governante do reino se encontrava.

- Você conta ou eu conto? – questionou a mulher com certo sarcasmo na voz.

Ele olhou para a humana franzindo ameaçadoramente suas sobrancelhas. Seu sorriso mostrava como estava prazerosa com o seu desconforto. Até pensou em deixá-la reportar-se ao lorde, mas cabia a ele liderança do grupo, bem como a responsabilidade pelas tarefas cumpridas, ou nesse caso, da falha em cumpri-las em sua totalidade.

Bem, não era propriamente uma falha, apenas algo inesperado que tinha ocorrido.

- Eu conto para ele, humana.

- Eu tenho nome, azulão! – tornou ela com as mãos na cintura.

- Sei que você tem, verdoca.

Ela fez uma careta com os lábios e maneou a cabeça rapidamente, mostrando que não tinha achado muita graça na brincadeira. Mas ele não tinha brincado, apenas devolveu a leve chacota dela no mesmo estilo. Ademais, uma humana com cabelos esverdeados não devia reclamar disto chamar tanto a atenção em seu físico. Ela até pintava os lábios da mesma cor para combinar...

- Não acabem com toda a juga no bar antes de eu chegar lá – rosnou ele para os três enquanto confirmava que seu escudo estava bem preso nas costas. Ia ter de deixá-lo ser reparado devido aos danos que ele sofreu na tarefa.

- Diga isso para Drako, não para mim – disse ela batendo palmas e atiçando seu lagarto como se fosse um mero animal de estimação.

Logo ele ficou pulando ao redor deles como um cão domesticado. Um “cão” com um metro e meio de comprimento da cabeça a cauda, com quatro patas e com asas. Ainda lhe custava aceitar que aquela jovem tinha conseguido ser parceira daquilo. E aquilo gostava mesmo de beber!

- Você paga o estrago que ele fizer desta vez – tornou ele irritado.

Subiu os degraus sem se incomodar em ouvir uma resposta. Sabia que ela iria com certeza lhe mostrar a língua em um tolo comportamento humano infantil. Mas não tinha nenhuma raiva dela ao contrário do que podia parecer.

A meio caminho da entrada parou por alguns instantes e observou o palácio do lorde Kobe, senhor do mais jovem reino daquele mundo. Ele tinha feito muito em quarenta e tres ikunis, e pelo jeito iria fazer bem mais quando tirasse o incômodo dos jintanos de sua agenda.

Sorriu a ver a esquerda o enorme moinho de vento girando suavemente, provendo água corrente para os poços comunitários da cidade ao redor do palácio e eletricidade para alguns cômodos privilegiados.

Eletricidade... nome estranho. Os magos pareciam entender do que se tratava, mas o resto dos mortais comuns como ele não. Só sabia que era bom poder ter luz em seu quarto sem precisar carregar fogo com uma tocha de um lado para o outro. Kobe tinha acabado de implementar aquilo quando a guerra do reino de Jinta contra Vanir irrompeu.

Recomeçou sua caminhada e diante das portas do palácio aguardou os guardas o identificaram e permitirem sua entrada. Tinha chegado no horário em que lorde Kobe fazia audiências, e como apenas iria se reportar, não havia necessidade de interrompê-lo. Aguardaria a vez de quem estava tendo uma audiência com ele terminar e então seria permitida sua reunião com ele.

Atravessou os portões e andou pelo extenso corredor observando ao redor. Haviam algumas pessoas sentadas nos bancos nas paredes deste. Era fácil reconhecê-las pelas roupas e forma de se comportar. A maioria eram enviados de cidades, representantes destas para solicitar ou agradecer por algo. Haviam umas três pessoas ali que eram fazendeiros, e portanto iriam receber atenção um pouco especial, já que lorde Kobe privilegiava aqueles que cuidavam dos alimentos da população. Continuou andando e ao fim do corredor chegou ao seu destino. A sala do trono.

Apesar do nome pomposo, não era um local onde o governante de algum lugar apenas ficava sentado tentando evitar de cochilar. Era na verdade um instrumento fundamental nos antigos reinos terrestres, um local para audiências com o duque, governante, rei ou imperador de determinada nação. Era sempre ostentado com opulência para demonstrar a riqueza e o poder da nação ou território. Era o local onde o governante estava acessível a todos, desde que fosse possível obter uma audiência com o mesmo.

No reino de Hala tal local era reservado por três horas ao dia para o governante conceder audiências para as petições de pessoas mais comuns. E por algum tempo a maioria destas petições foram quase sempre variações do mesmo problema.

Jintanos!

Ele imaginava que isso aconteceria desde que o reino de Jinta foi invadido e se mostrou incapaz de resistir a isso. Kobe tentou se antecipar propondo alianças com as cidades daquela nação que faziam fronteira com a sua. Até conseguiu expandir seu reino quando algumas das cidades governadas por seres mais sábios aceitaram abandonar Jinta e se unir a Hala.

Mas não podia fazer isso com muitas cidades ou a guerra que Jinta travava contra Vanir iria se tornar sua guerra também. Quando ficou evidente que o reino iria cair, muitas cidades tentaram se unir a Mira e a Hala, mas os pedidos foram sabiamente rejeitados por ambos os reinos.

Se tinha algo que não queriam enfrentar era uma guerra contra Vanir. Apesar de haver uma excelente possibilidade de vitória, guerras eram custosas demais para os cidadãos. Exceto os próprios habitantes do reino desejarem uma guerra, nem Hala, nem Mira iriam se embrenhar nisso.

E foi justamente o que ocorreu com os refugiados.

Vendo o seu reino cair, e extremamente temerosos de seu destino como conquistados, hordas de jintanos invadiram esses dois reinos, e logicamente pelo seu elevado número não puderam ser absorvidos pelas cidades. Em Hala cogitou-se criar cidades para eles onde poderiam se auto governar. Mas não era tão simples. Não havia ninguém para liderar essas hordas de refugiados. Eram simples bandos de abandonados famintos desesperados para sobreviver.

Foram contabilizados cerca de trinta mil jintanos que morreram de fome, de frio, de doenças ou atacados pelos animais. Ele nada sabia de oficial, mas acreditava que os números deveriam ser similares em Mira. Isso levou lorde Kobe inicialmente a tentar auxiliar os refugiados, mas no fim provou-se ser apenas um adiamento do inevitável.

Sem tempo para localizar e se comunicar com todos, o que veio a seguir foi inevitável. Logo os sobreviventes mais ágeis e engenhosos se organizaram em grupos e desta forma começaram a fazer ataques organizados pilhando as cidades e as rotas comerciais. Houve até casos em que cidades inteiras eram reféns destes grupos. Cidades que pediram, imploraram e exigiram uma solução vinda de Kobe.

E lorde Kobe executou uma solução.

Já faziam duas colheitas que a ordem tinha sido dada, e houve grande aprovação das cidades afiliadas ao reino. A única solução que sobrou tinha sido a de livrar-se do problema de vez! Os tenentes de elite iriam localizar os locais destes grupos de jintanos e fornecer sua localização para divisões estrategicamente selecionadas do exercito. Depois os guiariam até onde os jintanos estavam e deviam se livrar deles, informando o resultado diretamente a Kobe.

E era isso que ele estava fazendo ali na sala do trono, aguardando a sua vez para falar com seu governante e empregador.

A sala era circular, e na parte oposta a onde o corredor dava estava lorde Kobe conversando com algumas pessoas. Ao redor haviam alguns guardas perfilados apenas para garantir proteção, e circulando eventualmente haviam serviçais levando alguns petiscos aos que ali estavam aguardando. Um klorfe lhe estendeu uma bandeja com algumas frutas secas salgadas e com um sorriso ele pegou um punhado, colocando rapidamente na boca e mastigando com gosto. Como todo ichis, ele adorava frutas secas. Salgadas então eram quase que um manjar de deuses para este povo.

Ele era um ichis do tipo protetor, similar a um soldado com ossos grossos e resistentes, juntamente com músculos fortes, porem também era ágil para o seu tamanho. Tinha a pele azulada e suas sobrancelhas eram bem grossas, e também tinha uma testa um pouco alta. O resto de seu corpo era basicamente em forma humana – apesar de ser claramente exageradamente musculosa - como a maioria do seu povo.

Haviam poucos ichis em Hala, já que a maioria se tornaram cidadãos de Mira. Ele acabou indo para lá após fazer um ritual de oferta e ser posteriormente chamado. Acabou gostando do trabalho e estava ali desde então, acompanhando o desenvolvimento daquele reino com o tempo.

- Senhor Porten... – disse uma serviçal em voz baixa.

- Sim?

- Lorde Kobe irá atendê-lo agora – disse ela humildemente.

Ele anuiu com a cabeça e sorriu levemente para a serviçal quando viu que era uma rila. Não eram só os machos que gostavam de usar adornos metálicos no corpo, as fêmeas também o faziam, mas eram em menor quantidade e esteticamente distribuídos. Ele descobriu-se um admirador de rilas fêmeas, de sorte que ocasionalmente tinha interesse em uma para companhia noturna. Talvez ele tivesse fetiche por mulheres com adornos metálicos, mas isso não o perturbava nem um pouco.

Olhou na direção de seu lorde e tirou aqueles pensamentos da cabeça. Se bem conhecia a verdoca – talvez começasse a chamá-la assim a partir daquele dia – e seus companheiros, já deviam estar no terceiro pote de juga agora, e aquele lagarto já devia ter engolido sozinho um barril inteiro da deliciosa e alcoólica bebida. Não podia deixá-los se divertirem tanto assim sozinhos, não sem ele.

Encaminhou-se na sua direção e dobrou o joelho direito diante dele, se apresentando.

- Lorde Kobe – disse ele em voz normal, cuidando para que sua voz não reverberasse na sala – trago informes sobre os jintanos nas cercanias da cidade de Legha. Os dois acampamentos foram destruídos, e a maioria deles foram exterminados.

Aguardou um instante e depois olhou em sua direção. Ele estava com os braços cruzados e o observava impassível, aguardando mais alguma coisa, com certeza.

- Alguns escaparam para as florestas próximas, nossa rastreadora perseguiu estes fugitivos, e agora estão prisioneiros em Legha. Provavelmente serão executados em breve.

Tornou a olhar para ele e agora ele estava bem mais pensativo. De uma certa forma, era estranho ver um humano sendo governante de um reino, ainda mais um humano com o histórico que Kobe tinha. Antes de assumir tal posição era um mago de extremo poder que diziam que tinha trabalhado no reino de Vanir. Não se sabia exatamente como ele tinha acabado por se tornar governante da cidade de Hala, mas sua política inovadora e forma de reinar logo garantiu que a cidade ficasse independente e em pouco tempo outras se uniram a esta, criando o novo reino que levava o mesmo nome da antiga cidade.

- Quantos sobreviveram?

- Dezenove, senhor. E acreditamos que alguns conseguiram escapar pela fronteira. No entanto... – hesitou ele – houve um incidente inesperado.

- Fale – comandou o lorde novamente assumindo uma face inexpressiva.

- Um terceiro grupo foi identificado durante o ataque. Estavam aguardando na estrada, provavelmente por uma caravana mercante. Ao verem os soldados eles debandaram para a fronteira. Eles foram rastreados e encontramos seu acampamento no reino de Mira. Como a fronteira ainda está indefinida desde que Legha uniu-se ao reino, eu achei prudente não irmos atrás deste grupo sem sua autorização.

Ele levou sua mão até seu queixo e ficou esfregando seus dedos neste, ponderando sobre a informação.

- Nossa tarefa não foi completamente cumprida, senhor – finalizou ele apertando os lábios e aguardando a resposta de seu lorde.

- Identificaram algum motivo para eles estarem fazendo tocaia dentro do reino de Hala?

- Só posso imaginar que Mojafa está utilizando os guardas da própria cidade para mantê-los sob controle, mas não nos aventuramos em Mira o suficiente para verificar tal coisa.

- Obrigado, Porten – disse ele de forma calma – falarei mais tarde contigo. Pode ir agora.

Ele curvou-se de forma respeitosa e saiu da sala calmamente, sem demonstrar pressa. Apesar de não parecer, Kobe com certeza ficou irritado com a informação. Cruzar a fronteira com uma pequena divisão do exercito, ainda que para dizimar um acampamento de bandidos não seria bem visto por lorde Severino. Mas por outro lado não poderiam deixar essa divisão de soldados de prontidão indefinidamente aguardando eles avançaram novamente em seu território.

Felizmente não era sua tarefa achar uma solução para esse impasse. Tudo o que queria agora era alguns bons potes de juga para relaxar, bem como endossar a nova forma de tratamento que iria ter com a verdoca.

oOo

- Se não parar de rir juro que arranco suas penas uma por uma, começando pelas do rabo! Agora me passe esse pedaço de carne.

Apesar de tentar, Jota não podia impedir que um sorriso zombeteiro se firmasse em seu rosto. A maneira estabanada como a caçadora falou com Cloni relembrando a todos do incidente daquela manhã tinha sido mesmo hilária.

- Ora, caçadora – disse Silvia contendo as risadas – foi divertido.

- Sei... isso porque não foi contigo – tornou ela fazendo bico.

Já tinha sido divertido de manhã quando ela gritou apavorada achando que as frutas flutuando ao redor dela eram coisa de alguma assombração. Foi mais divertido quando ela disse que foi Cloni quem tinha contado tal coisa para ela, como se por algum motivo desconhecido ele resolvesse participar da brincadeira. O assunto tinha voltado agora no fim do dia, com Silvia relembrando sobre o que houve.

Aquela coruja estava muito mais expansiva do que antes, talvez resultado de sua ligação com a nova parceira. Antes era muito séria e parecia apenas ser mais uma perfeita ferramenta para ser usada pelo antigo caçador.

- Você não sabe o que Leonardo já aprontou conosco antes. Isso não é nada.

Ela apenas bufou irritada e estendeu sua mão para Cloni, maneando esta vigorosamente exigindo que este lhe desse uma porção da carne que estava em seu bico.

E isso era algo também diferente nele. Ele estava... dividindo sua comida com sua parceira, mas o mais absurdo era a caçadora pedir isso, quase como se fossem uma família ou amigos íntimos. Nunca tinha presenciado tal coisa com nenhum outro caçador, nem mesmo com Ghathikatode ou com aquela que primeiro o sucedeu.

Aquela traidora!

- Solta! – disse ela puxando a carne com as duas mãos, partindo o pedaço ao meio e por conseqüência caindo sentada na grama.

A caçadora rosnou alguma coisa de volta – parecia até que tinha arrulhado – para a coruja e esta pareceu arregalar os olhos, sendo que em seguida começou a engolir o pedaço que ficou em seu bico com gosto e até com gula. Do outro lado o mesmo estava ocorrendo com a caçadora.

- Vocês estão se dando incrivelmente bem – disse Leonardo alternando sua visão entre os dois – acho até que Cloni pode se tornar seu parceiro em definitivo.

A coruja arrulhou alguma coisa, e parecia não ter sido algo amistoso. Jota e os outros dois olharam para a caçadora e esta mal percebeu que eles queriam saber o que ele tinha dito.

Depois do longo dia de treino dela, decidiram fazer um pequeno acampamento ali nas cercanias. Cloni aproveitou e levou sua parceira para tentar com ela achar algo para caçar – bem como lhe dar um treino bem mais prático - e voltaram algumas horas depois com um pequeno lojir amarelo espetado em uma flecha. Ficou mais do que obvio que a visão de Silvia era excelente, e que também já tinha se adaptado facilmente a necessidade de compensar o vento e calcular a força necessária para disparar uma flecha em um alvo. Era justamente a carne deste animal que ambos tinham lutado ha pouco para dividirem.

Olhou para ela saboreando a carne violeta em suas mãos. O arco negro estava preso em seu ombro e nas suas costas estavam as orvis – o par de espadas duplas que ela pegou na véspera – com as laminas reluzindo a luz do fim da tarde. Com exceção do vestido azulado, ela se passaria facilmente por uma experimentada caçadora. Sem duvida ela iria estar apta bem mais cedo do que tinham imaginado.

Por outro lado, isso também lhe incomodava. Ele tinha conversado com lorde Severino e estavam sem escolha. Assim que ela fosse capaz rastrear por conta própria sem a ajuda de Cloni, teriam que partir para Mojafa. A função dela seria unicamente localizar o acampamento dos jintanos, a deles seria a de conversar com eles, e logicamente proteger Silvia, a caçadora. O problema era que tinham um tempo limite para isso. Duas hoeijes para ser mais preciso. Ou melhor, menos de duas hoeijes.

- Nossa, que coisa deliciosa! – exclamou ela lambendo os dedos como uma menina.

- Quero ver se acha isso daqui há algumas horas – disse Silvia deitando-se na grama e se espreguiçando um pouco.

- Por quê? – perguntou ela a olhando de forma assustada.

- Lembra do que te falamos que havia alimentos aqui que te matariam se comesse antes de seu corpo estar habituado? – Jota viu ela arregalar os olhos – esse era um deles. Mas não se preocupe, você não vai morrer. Seu corpo já se adaptou o bastante para evitar isso. Mas acho que vamos ter que te amarrar de novo para que suporte as dores que vai sentir logo, logo.

Ela olhou para Silvia franzindo o cenho, e logo em seguida colocou a mão por cima do vestido entre seus seios e retirou de lá algumas folhas avermelhadas, mostrando para ela em seguida. Silvia arregalou os olhos quando esta começou a comer aquilo.

- São analgésicas – disse ela de boca cheia.

- Quem lhe ensinou isso? – murmurou ela atônita.

A outra nada disse, apenas moveu a cabeça em direção a coruja que arrulhou de forma rítmica, quase como se estivesse rindo. Sem duvida ela iria estar apta bem mais cedo do que qualquer um podia supor.

- Quando sua primeira muda de roupa ficar pronta – disse Jota em tom grave – vou ajudá-la a treinar com suas armas de mão. Faremos isso no castelo, após seu treino com Cloni.

Ela olhou na sua direção sorvendo os últimos ramos daquelas folhas que estava comendo, mas nada disse. Apenas maneou com a cabeça concordando depois que Cloni piou para ela.

Essa era outra coisa que ele tinha reparado durante aquele dia. Ela e Cloni pareciam muito confidentes, exibindo uma boa confiança mutua, talvez até mesmo segredos mútuos. Imaginava que Cloni tinha pedido para ela não questionar o que ele tinha dito.

- Não vai perguntar nada? – inquiriu ele a olhando fixamente.

- Perguntar o que? – ela parecia confusa – você é um cavaleiro, não? Quem melhor para me ensinar a usar estas espadas?

- Bem, achei que talvez não gostasse de eu simplesmente decidir tal coisa, afinal seu treinador é Cloni.

- Foi ele quem disse que era uma boa decisão essa sua.

- E o que foi que ele disse antes? – perguntou Leonardo.

- Antes quando?

- Quando eu disse que ele poderia ser seu parceiro permanente.

Ela olhou para a coruja e sorriu levemente.

- Que enquanto seu parceiro original estiver vivo, ele irá procurá-lo. E também que ele não fica roubando sua comida – ela olhou feio para a coruja – fui eu quem disparou a flecha, era minha comida também!

Jota se levantou e deixou a caçadora e seu parceiro discutindo ali. Estava ficando preocupado como as coisas estavam se encaminhando. Não duvidava que Silvia iria ser bem capaz de localizar o acampamento dos jintanos quando tivessem de partir. Também tinha certeza de que seu corpo estaria com uma razoável resistência para a tarefa.

No entanto, apesar do teste de aptidão que ela tinha feito, não ficou muito claro como ela iria reagir em uma situação de campo real. Iria ser como esperavam, ou acabaria por se tornar como Amanda? Talvez tivesse alguma resposta em alguns dias, quando fosse treiná-la nas artes do combate.

Até lá, só podia esperar pelo melhor, coisa que tudo indicava que estava ocorrendo. Embora sobre certo ponto de vista era um melhor a mais do que gostaria.


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