A Ilusão da Realidade escrita por Kisara


Capítulo 2
Quietude em Família




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Eu nunca fui muito fã de acordar cedo, mas me senti desperta assim que abri os olhos. Algumas imagens vagas daquele sonho estranho ainda estavam marcadas na minha mente e eu não sabia muito bem o que pensar, então o alarme continuou tocando até eu conseguir apertar o botão para desativá-lo no meio da minha confusão. Respirei aliviada quando me vi sozinha com os meus próprios pensamentos outra vez, o silêncio preenchendo o meu quarto aos poucos. No entanto, por mais que eu gostasse de apreciar momentos de calma e paz, não pude aproveitar a minha própria companhia exatamente do jeito que eu queria.

Alcancei meus óculos na mesinha de cabeceira. Quando o mundo ao meu redor voltou a fazer sentido, encontrei Roy sentado em frente ao meu computador, olhando para a tela. Se fosse qualquer outra pessoa, eu não teria gostado nem um pouco da invasão de privacidade, com certeza. Como era apenas Roy, eu apenas o cumprimentei com tranquilamente.

— Já está acordado por algum milagre, ou ainda não foi dormir? — arrisquei, ainda ajeitando os óculos no meu rosto.

Minha voz estava um pouco rouca e Roy nunca deixaria que isso passasse despercebido. Na verdade, ele riu antes mesmo de me dizer qualquer coisa.

— Olha só quem fala! — ele continuou rindo sem fazer cerimônias, provavelmente porque me conhecia bem demais para se deixar intimidar quando cruzei os braços. — O que foi que você fez o final de semana todo, mesmo? Hoje é segunda-feira, loirinha. Bem-vinda de volta à realidade. E, por sinal, bom dia, Melissa.

— Realidade, hein? — repeti e me deixei apreciar a ironia enquanto aquela palavra saía da minha boca. — É… acho que é hora de encarar a realidade. Você vem comigo?

— E você ainda precisa perguntar? — Roy fez questão de deixar o sarcasmo visível no jeito como disse aquela resposta.

 

***

 

Pelo jeito, eu tinha sido a primeira a acordar e consegui entrar no banheiro antes que a minha irmã aparecesse. Tomei um banho rápido, vesti o uniforme e tentei deixar o local livre antes que os meus hábitos acabassem cruzando o seu caminho, pois Larissa nunca acordava de bom humor.

Eu não sabia o que esperar quando desci as escadas e fui para a cozinha. As manhãs na minha casa não costumavam seguir alguma rotina, nem manter algum tipo de padrão, ao menos. A intensidade geralmente variava entre “caos total” e “vazio perturbador” sem encontrar nenhum meio termo. Ou estavam todos correndo e com pressa para sair logo, ou já tinham saído e eu tomava meu café da manhã sozinha. Dessa vez, meu pai estava de pé ao lado da mesa, arrumando documentos em sua pasta e bebendo café em uma xícara gigante.

— Bom dia, Mel! — Ele sorriu assim que me viu e eu tentei sorrir de volta. — Estou quase saindo… quer uma carona para o colégio?

— Ainda preciso tomar café — respondi balançando a cabeça. — Mas obrigada.

— Certo. Desculpe não poder esperar.

— Tudo bem.

Meu pai me olhou como se quisesse continuar a conversa e eu também tentei pensar em qualquer coisa que estivesse na ponta da língua, mas desviamos o olhar para o objeto inanimado mais próximo bem antes que eu finalmente achasse algum assunto.

— A mãe já saiu?

A resposta era óbvia, mas eu preferia conversar sobre o óbvio a manter aquela quietude em família.

— Um pouco antes de você levantar. Ela vai dar a primeira aula da manhã e não quis te acordar.

— Ah, entendi. A universidade fica longe mesmo.

Minha mãe quase sempre saía para dar aulas antes do amanhecer e trabalhava até tarde para corrigir as atividades dos alunos ou preparar suas aulas de literatura… isso quando ainda não encontrava tempo no meio disso tudo para participar de alguma pesquisa. Enquanto isso, meu pai costumava ter reuniões importantes com os clientes da firma de advocacia onde trabalhava com bastante frequência, ainda mais depois que viemos morar na capital e ele passou a trabalhar para um dos locais mais requisitados da região. Aquela rotina era um tanto solitária, mas eu já tinha me acostumado há algum tempo porque sabia que era como as coisas tinham de ser. Afinal, sempre tinha sido assim desde que eu podia me lembrar e eu entendi que a vida na capital seria bem mais complicada desde que soube que a minha mãe seria transferida para cá.

Depois de mais uma pequena pausa, foi meu pai quem tentou retomar a conversa.

— E a sua irmã? Ainda não levantou?

— Você sabe como ela é, gosta de aproveitar até o último minuto e depois sai correndo feito louca… — Tentei forçar mais um sorriso, porém não tive muito sucesso. — Não tinha nem saído do quarto quando eu fui tomar banho.

— Ela vai se atrasar para o cursinho de novo desse jeito… — meu pai comentou com um suspiro. — Não sei mais o que fazer com essa garota. É o terceiro ano de curso preparatório para o vestibular… eu pensei que as oportunidades aqui seriam melhores…

Dessa vez, preferi não tentar participar da conversa. Fiz o possível para manter a boca cheia com pão e tentei olhar para o meu copo de achocolatado. Minha irmã sempre foi um assunto sensível; meus pais sempre a lembravam de que ela precisava dar um jeito na própria vida e ela respondia se trancando no quarto e vivendo em seu próprio mundo, sobre o qual não sabíamos quase nada. Por mais que nunca tivéssemos nos entendido muito bem — ou que quase nunca conseguíssemos conversar por mais que três minutos — encontrar conforto na sua própria segurança era algo que eu podia compreender sem ter que fazer muito esforço.

— Ah, droga, olha a hora! — ele reclamou e eu quase deixei o copo cair com o susto. — Você não quer vir mesmo?

— Tudo bem, ainda não estou pronta. Até mais, pai.

— Até.

Acenamos um para o outro do jeito mais rápido e constrangedor possível. Quando me vi sozinha outra vez, voltei a pensar em Roy ainda me esperando no quarto.

 

***

 

— Ah, finalmente um pouco de ar fresco! — Roy se espreguiçou ao sair da casa e olhou para o céu claro. — Eu não aguentava mais ficar trancado. Não sei como você consegue.

— Estou bem — eu menti como se já não soubesse que Roy sabia a verdade. — Você pode ir para onde quiser, ora. Prefiro ficar no meu quarto.

— É esse detalhe que realmente te atrapalha, Mel. Você sabe disso.

Roy adorava começar aquele assunto e eu detestava repetir aquele diálogo todos os dias.

— Roy, pela última vez… — suspirei enquanto tentava encontrar as palavras. — Não quero sair com a Emily. Que bom que ela gosta de ir para festas todo final de semana, mas multidões, aglomeração e música alta não são lá a minha ideia de um fim de semana divertido. Será que você entendeu agora?

Mesmo sem poder me ver, eu me conhecia o suficiente para saber que estava de cara amarrada quando terminei de falar e fingi não me importar. No fundo, eu sabia que aquela discussão seria inútil e Roy jogou os cabelos para trás naquele exato momento só para me lembrar disso.

— Ora, vamos! Eu sei que você tem curiosidade! — ele riu e passou a mão no cabelo, deixando-o ainda mais bagunçado.

— É perda de tempo! — insisti.

— Se acha mesmo, por que não manda ela te deixar em paz?

Mordi o lábio para evitar um xingamento. Roy sempre sabia como chegar ao ponto principal de questões que eu nem sabia que me perturbavam.

— Não, e nem vou fazer isso — respondi, embora minha voz não parecesse ter tanta certeza. — Ela foi uma das poucas pessoas que não me trataram como uma caipira idiota quando viemos para cá no ano passado. Sem contar que, depois de tudo que aconteceu, ela é a única pessoa que se aproxima de mim sem tentar me usar por causa de notas ou algo assim… eu gosto de ter ela como amiga.

— Mas eu estou sempre com você, ora!

Depois de responder, Roy mostrou a língua. Aquele era o máximo de provocação que eu conseguia aguentar numa segunda-feira de manhã e eu não tentei segurar a minha réplica.

— Eu quero dizer alguém de verdade. Você sabe disso.

— Ai! — Roy levou a mão o peito como se tivesse sido apunhalado. — Dessa vez, você foi fundo! Essa magoou, sabia?

Continuei firme com a minha cara de birra, mas a verdade era que eu tinha conseguido me deixar triste de novo quando pensei naquilo. E, mesmo que fosse estranho, eu realmente sentia os olhos dele sobre mim, como se Roy estivesse mesmo ali. A presença dele era familiar e reconfortante, era a relação mais próxima e duradoura que eu tinha há algum tempo e, mesmo que ele não fosse de verdade, nosso vínculo era real. Eu realmente nunca tinha sido muito boa com interações ou qualquer tipo de contato social e também nunca soube ser simpática ou amistosa, por mais que eu quisesse. E tinha vezes que eu queria, e muito. Só… para mim, não era tão simples quanto apenas querer. Eu ainda estava me esforçando para conseguir chegar lá. Defesas automáticas sempre existiam por um motivo e não eram nadas fáceis de se derrubar. Quando eu pensava em tudo que tinha acontecido para que elas estivessem ali para começo de conversa, ainda doía como se tivesse sido ontem.

No fundo, por mais que fosse difícil admitir, eu odiava aquela solidão ainda mais a cada dia. Era por isso que, apesar de eu já ter quinze anos — dezesseis daqui mais algumas semanas — e não ser mais criança há algum tempo, meus melhores amigos ainda eram os amigos imaginários que eu criei para mim mesma.

Roy continuou acompanhando o meu passo em silêncio e, às vezes, ele desviava olhares breves na minha direção para então olhar para a frente e colocar as mãos nos bolsos. Demorou algum tempo até que ele voltasse a tentar começar alguma conversa.

— No que está pensando? — ele finalmente perguntou, dessa vez olhando para o chão e acompanhando os próprios passos.

— Eu só estou… — respirei fundo antes de repetir a palavra — pensando. Você sabe como me fazer pensar.

— Você sabe que é exatamente para isso que eu estou aqui. Por que você tem tanta certeza de que as coisas vão se repetir?

O que eu mais queria era evitar aquela conversa, mas nós sempre acabávamos naquele assunto de novo.

— Não é uma questão de se repetir, é que sempre foi assim. A minha vida sempre foi assim — repeti. — Eu tento aprender com o que acontece, não quero cometer os mesmos erros de novo… as coisas são muito mais fáceis desse jeito, eu me sinto mais preparada para o que pode acontecer.

— Se o que você está me dizendo é verdade, por que estamos tendo essa conversa?

Outra vez, Roy sabia exatamente o que dizer para me fazer pensar. Eu já estava começando a cansar de falar sobre isso.

— É por isso que eu criei você e a Liesel e passo tanto tempo pensando sobre vocês. Olha, já estamos chegando… — abaixei a cabeça quando percebi que o prédio do colégio estava se aproximando. — Chega disso, está bem? Não quero que me vejam falando sozinha, nem que imaginem a possibilidade de você existir.

— Mas, Mel, eu não existo — Roy riu para si mesmo. — Foi você mesma que fez questão de me lembrar. Por que isso é um problema?

— Você entendeu o que eu quis dizer! Já pensou na vergonha que vai ser se alguém ficar sabendo que eu tenho ainda converso com amigos imaginários com essa idade?

Balancei a cabeça para afastar aquela conversa dos meus pensamentos e Roy não respondeu mais. Ele sorriu com o canto dos lábios, mexeu nos cabelos uma última vez e me seguiu sem dizer mais nada.


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Notas finais do capítulo

Bom, por enquanto é isso ♥ O que vocês estão achando do começo? Como está indo até aqui? Será que algum dos meus leitores lindos ainda está pelo Nyah? ♥ ♥ ♥

Conto muito com o apoio de vocês! Feliz páscoa, FIQUEM EM CASA!!!!!, e daqui alguns dias já vem o segundo capítulo ♥

Até mais ♥ Se cuidem!



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