A Ilusão da Realidade escrita por Kisara


Capítulo 10
As Várias Faces de Emily


Notas iniciais do capítulo

Olá! Essa parte vai ser grande, desculpem se ficar cansativo... mas espero que tenha ficado bom mesmo assim ♥

As notas finais desse capítulo também são muito importantes! Por favor, não deixem de ler!

Boa leitura! ♥



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Pensando bem, não sei o que eu tinha em mente. Não era porque Emily gostava de baladinhas e festas que o espaço estaria cheio de luzes piscantes com um globo espelhado no lugar da lâmpada ou sei lá eu o quê. De qualquer forma, o fato era que eu nunca tinha visto tanto rosa na minha vida, nem em cabelos cor de chiclete. As paredes eram de um tom leve, assim como os lençóis, fronhas, travesseiros e almofadas. Havia uma escrivaninha branca encostada à parede com um notebook rosa choque fechado e vários ursinhos de pelúcia de todos os tipos espalhados por cima, além de uma cadeira de escritório da mesma cor. Também encontrei mais bichinhos de pelúcia sobre as mesas de cabeceira e um abajur rosa. Por um segundo, eu até esqueci que estava no quarto de Emily e me senti como se tivesse encontrado o esconderijo secreto de uma garotinha; naquele local, olhando ao meu redor e vendo aquele lado novo e tão íntimo de Emily, eu finalmente consegui começar a me sentir mais à vontade.

Se ela tinha me deixado entrar naquele espaço, talvez eu devesse dar a mesma chance a ela. E a mim mesma, também.

— E aí, o que vamos ver?

A voz de Emily, logo seguida pelo riso de Roy, me surpreendeu.

— Hmm… que tal alguma coisa da Disney? — arrisquei. — Ou algo assim?

— Ótima ideia! — Emily sorriu. — Vai pensando em alguma coisa que eu vou ver aquela pipoca com a minha mãe.

Aquela animação parecia ser verdadeira, mas eu não conseguia ignorar o medo. Algo ainda parecia estar fora do lugar.

— Emily, espera! — chamei assim que ela virou as costas.

— Oi? — Emily olhou para mim outra vez. — Tá tudo certo? Você quer mais alguma coisa? Acho que o refri já tá gelado!

Senti o meu corpo congelar. Se a situação fosse diferente, talvez eu só tivesse balançado a cabeça e a deixado continuar. Mas, olhando ao meu redor mais uma vez, eu consegui compartilhar os meus pensamentos em voz alta.

— Não, tudo bem — tentei imitar um sorriso. — Eu só queria ter certeza que tá tudo ok.

— Como assim?

Ela arqueou a sobrancelha, a confusão evidente em seu rosto. Droga. Uma dose súbita de coragem não era o suficiente para fazer milagres com as minhas péssimas habilidades sociais.

— Bom, é que… não sei, pra falar a verdade… — tentei encontrar um jeito de começar o assunto. — É que ficar em casa e ver desenho não parece ser o seu programa favorito pro final de semana. Você quer mesmo fazer isso comigo?

— Ora, por que acha que eu te convidei para ficar aqui hoje? — Emily deu de ombros e respondeu com uma tranquilidade que, para mim, era invejável. — Eu sei que sair para festas não é a sua coisa e eu também tô começando a cansar disso, viu? Fazia tempo que eu não tinha uma festinha do pijama com uma amiga assim! Eu tô bem animada!

Realmente, aquele sorriso não me pareceu ser falso. A situação era estranha, ou melhor, inesperada, porém isso não precisava ser algo ruim… certo?

— Posso ir, então? — Emily perguntou.

— Claro! — Dessa vez, sorrir de volta não foi nada difícil. — Vai lá!

A voz de Roy encheu os meus ouvidos assim que a perdi de vista:

— Ora, ora… e não é que as coisas já estão ficando interessantes, loirinha?

 

***

 

Meus olhos estavam quase fechando sozinhos lá pelo final do terceiro filme. Emily estava em sua cama e eu já estava ajeitada no colchão improvisado que a mãe dela tinha arrumado. Por mais que eu gostasse de fazer maratonas, ainda mais de desenhos da Disney, o cansaço estava começando a me vencer e, quando olhei para Emily, percebi que não estava sozinha. Será que eu devia dizer alguma coisa?

Os créditos estavam rolando e a música preenchia o nosso silêncio. Até ali, foi fácil continuar sorrindo e conversar de vez em quando sobre alguma coisa que estava acontecendo na tela. Eu sabia que não ia ter como me esconder atrás disso para sempre, mas agora que a hora estava chegando, senti as palmas das minhas mãos começando a transpirar.

— Eu ia perguntar se você quer ver mais um — Emily resmungou enquanto mexia no controle remoto — só que a sua cara de sono já me respondeu.

— Você já quer ir dormir? — perguntei. — Não pensei que você gostasse de dormir cedo assim.

— Dormir? Há! Você pensa que sabe tudo de mim, né? Vou é dar um jeito de te acordar!

— Ah… tá.

O que ela queria dizer com aquilo? Respirei fundo e me levantei antes que Emily falasse qualquer outra coisa.

— Deixa que eu levo isso pra cozinha, então — sugeri e apontei para as bacias de pipoca. — Andar um pouco vai me acordar.

— Eu te ajudo!

Emily se levantou com um pulo e juntou os nossos copos de refri. Nós estávamos tentando não fazer muito barulho para não chamar atenção, então percorri o caminho imaginando Roy e Liesel conversando ao meu lado. Eles sempre seriam o meu maior conforto, minha segurança. Quanto tempo fazia desde a última vez que eu conheci uma casa estranha de um novo amigo? Aos poucos, usar essa palavra para me referir a Emily não me parecia mais tão desconfortável.

Voltamos para o quarto e eu comecei a procurar pelo meu pijama na mochila. Emily me mostrou onde ficava o banheiro e, quando eu voltei, ela também já estava vestindo um pijama rosa da mesma cor das paredes. De repente, olhando para a minha roupa pálida e sem cor, eu me senti sem graça.

Ajeitei o colchão e deixei os óculos sobre a mesa de cabeceira. A luz já estava apagada, porém Emily tinha deixado o abajur aceso.

— Então… — comecei. — Você mudou de ideia e quer dormir?

Esperei a resposta sentindo o meu coração disparar, as minhas orelhas ardendo, enquanto Emily continuava serena e as minhas perguntas não pareciam incomodá-la. Ela se sentou sobre a cama, sorriu e respondeu:

— Acho melhor a gente pensar no que vamos fazer amanhã — sugeriu com um sussurro. — Que horas a festa começa?

— Nove — suspirei. — Nem sei que horas termina…

— Provavelmente no meio da madrugada — Emily afirmou com firmeza. — O que significa que eu ainda tenho bastante tempo para te convencer. A gente pode dormir até a hora que quiser amanhã de manhã, depois almoçar no shopping e olhar umas roupas por lá, aí voltamos pra nos arrumar aqui. Que tal?

— É, acho que tá bom… Vamos almoçar no shopping e depois decidimos o resto, ok? — respondi mesmo sem ter muita certeza e olhei para Emily.

Aquele sorriso continuava em seus lábios e ela parecia estar muito animada com os nossos planos. Ainda assim, algo ainda não me parecia estar certo.

— Emily, posso fazer uma pergunta?

Eu não sabia como chegar ao assunto e, parando para pensar bem… como eu tinha deixado isso chegar tão longe?

— Claro! O que foi?

Respirei fundo mais uma vez para tentar encontrar coragem. Ser direta era a única solução.

— Você acha mesmo que isso é uma boa ideia? Não, aliás — interrompi o meu próprio pensamento. — Você quer mesmo fazer parte disso? Se nós formos lá, vai sobrar para você também, com certeza.

— Ora, amigos são pra isso, ué — Emily retrucou sem hesitar. — Eu vou estar lá do seu lado, aconteça o que acontecer.

Bem que eu gostaria que fosse simples assim.

— Mas será que invadir o espaço dela assim é mesmo uma boa ideia? — Repeti a pergunta e deixei mais um suspiro escapar. — A gente já brigou tanto a vida inteira… ela sempre viveu no mundinho dela e eu nunca fui convidada para nada. Acho que é normal não querer alguém que você não gosta na sua festa, né?

— Credo, Mel — Emily balançou a cabeça. — Vocês são irmãs. Não é possível que ela não se importe nem um tantinho assim com você.

— Sermos irmãs não faz mágica nenhuma. Eu já tentei de tudo, mas ela não quer ser minha amiga. Eu entendi o recado.

— Bom, eu não entendo. Ou melhor, entendi uma coisa, você sempre faz o que ela quer e ela reclama de tudo que você faz mesmo assim.

A voz de Emily se tornou mais séria. Ela estava ficando com raiva por mim?

— É mais fácil assim — assenti. — Se ela não me quer por perto, então não vou incomodar mais ainda…

— Pode até ser. — Emily foi interrompida pela própria risada e eu senti o humor da conversa se tornar mais leve no mesmo instante. — Mas, se você está começando a pensar em fazer isso, deve ser porque também já tá de saco cheio disso tudo, não é?

Dessa vez, eu ri junto com ela, só que de nervoso. Eu nunca tinha sentido vontade nenhuma de armar planos como uma criança e, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de me deixar levar. No fundo, as palavras de Emily não estavam muito longe da verdade. Talvez eu e a minha irmã nunca fôssemos nos tornar amigas e invadir uma festa onde eu não seria bem-vinda nem de longe não mudaria nada, com certeza, mas não dava pra continuar brigando o tempo todo daquele jeito, independente do que eu fizesse ou deixasse de fazer.

— Eu não sei mais o que pensar, Emily… só quero viver em paz, sério. Seria bem mais fácil se a Larissa ignorasse a minha existência, mas ela faz questão de me lembrar que eu não fui convidada toda vez que me vê. Parece que ela se diverte com isso, que gosta de me castigar eu sei lá pelo quê.

As palavras saíram sem que eu pensasse muito, sem que eu percebesse que pensava aquelas coisas. Elas não estavam mais apenas nos meus pensamentos mais escondidos agora, porque Emily também as tinha ouvido. Só por saber disso, mesmo que fosse uma sensação esquisita, eu senti o peso do mundo sair de cima dos meus ombros.

— E os seus pais? — Emily finalmente questionou. Eu já estava me perguntando se ela ia tocar no assunto. — Eles não falam nada? Não tentam fazer alguma coisa?

— Bem que eles tentavam quando a gente ainda era criança e a Larissa até passou a me ignorar mais com o tempo. Foi assim que ela ganhou essa festa de aniversário.

— Como assim?

Era estranho me abrir daquela forma. Eu estava começando a me atropelar nos meus próprios pensamentos de novo.

— Foi um acordo — expliquei. — Ela faria mais um ano de cursinho, se dedicaria aos estudos e não implicaria tanto comigo e, em troca, meus pais organizariam uma baita festa de aniversário com tudo que ela sempre sonhou desde que era pequena para os amigos que ela está conhecendo desde que a gente se mudou para cá.

— Parece mesmo tipo de troca que se faz com uma criança — Emily tentou abafar mais um riso. — É uma coisa meio tipo “se comporte e o Papai Noel vai trazer o seu presente”. E pior que ela nem está cumprindo a parte dela tentando jogar essa festa na sua cara o tempo todo!

— Eu pensei a mesma coisa! — Mesmo sem querer, acabei rindo junto. — É assim que se convive com a Larissa. E com a minha família, também. Desde que as nossas notas estejam boas, o resto não importa. E, se isso não acontecer, eles vão tentar garantir que o próximo semestre não vai ser igual. A pressão às vezes é um saco, viu?

— Eles forçam muito a barra? — Emily me encarou com seus olhos grandes. — Brigam com você?

Tive que pensar antes de dizer qualquer coisa. Eu nunca tinha parado para pensar muito nisso.

— Não exatamente… — tentei encontrar uma resposta. — teve uma vez que eu tirei oito em química e o meu pai ficou falando que eu “tirei uma nota baixa e ia ter que recuperar”. É mais ou menos assim que funciona.

— …Nossa — ela murmurou vagamente. — Eu fico tão feliz quando consigo fazer o milagre de tirar um oito…

— Eu juro que aquela voz de decepção é pior que qualquer briga. A Larissa vivia de recuperação, aí acabava sempre sobrando mais pro lado dela. Acho que eles têm medo de eu ficar igual.

Esperei por uma resposta, mas Emily se jogou no colchão e olhou para o teto em silêncio. Por mais que eu quisesse continuar a conversa, não conseguia pensar em mais nada. Talvez fosse melhor falar sobre algo um pouco mais animado…?

Emily retomou o assunto antes que eu conseguisse dizer qualquer outra coisa.

— Mel, posso te dizer uma coisa?

— Hm? — Senti meu estômago gelar outra vez. Por que ela estava perguntando antes? — O que foi? Falei alguma besteira?

— Não, não é isso. — Ela se sentou sobre a cama outra vez e cruzou as pernas. — Não sei se isso vai parecer estranho… eu queria agradecer por você ter aceitado o meu convite. Faz tempo que eu queria te chamar pra fazer alguma coisa assim, começando com aquele cinema. E, sabe, é bom finalmente entender um pouco do que acontece nesse seu mundinho aí.

— Obrigada… eu acho — tentei sorrir quando olhei para Emily.

— Ei, é um elogio! Pra te falar a verdade, eu sempre senti que você seria uma ótima amiga. Eu te conto tudo o que eu faço, te falo dos lugares que eu vou, mas nunca ouvi você falar sobre a sua vida antes.

De repente, Emily estendeu o braço na minha direção e me ofereceu o dedo mindinho. Sempre pensei que só se fazia esse tipo de coisa em filmes bobos, mas aquele gesto me deixou feliz por estar ali. Ofereci o meu dedinho, também, e nos cumprimentamos rindo.

— Agora eu que quero dizer uma coisa — falei. — Eu nunca imaginei que alguém como você quisesse mesmo ser amiga de alguém como eu.

Emily colocou as mãos no quadril, sorrindo torto e fingindo indignação.

— E o que a senhorita quer dizer com isso, hein?

— Ah, sei lá — comecei a me atrapalhar sozinha de novo. É claro que eu ia fazer besteira. Eu sabia que ia acabar falando alguma bobagem! — Caso você não tenha percebido, nós somos bem diferentes.

— E por que você tá dizendo isso como se fosse uma coisa ruim?

A confusão na voz de Emily não era fingimento; quando ouvi aquele questionamento em voz alta, eu comecei a me fazer a mesma pergunta.

— Não sei — admiti. — Não é ruim, só é… inesperado?

— Talvez. Mas, caso você não tenha percebido — ela me imitou — eu também não sou exatamente uma das pessoas mais populares por aqui e nem quero ficar perto de muita gente. Tem noção do tipo de coisa que eu já tive que ouvir por ser uma das poucas alunas negras de lá? Primeiro eles diziam que as cotas já tinham chegado no colégio rindo da minha cara. Depois, começaram a perguntar se eu tenho bolsa por ser filha da faxineira e até falam que eu passo barro na cara quando eu decido colocar um pouquinho de maquiagem, mas eu vou continuar me arrumando como eu quiser… e isso é só o começo, são só uns exemplos.

— Caramba, Emily…

Aquela palavra idiota foi tudo que eu consegui dizer e a minha voz não passou de um sussurro, felizmente, Emily logo continuou com a história:

— O meu pai também já ouviu muita coisa e até hoje olham torto para ele quando acontece qualquer coisinha na empresa que ele trabalha, até se alguém perde alguma coisa, e olha que ele é um dos diretores mais importantes dali. Ele tenta esconder de mim, mas eu ouço o que ele fala com a minha mãe quase chorando, eu vejo quando ele chega… — Aos poucos, Emily abaixou a cabeça enquanto falava sobre o pai, mas ela logo se reergueu outra vez. — E, aliás, pensando um pouco mais longe agora… você já notou que os caras podem encher a cara em todas as festas e pegar todo mundo que tá tudo bem, enquanto eu só fiquei com um garoto uma vez e tenho fama de vadia porque gosto de uma baladinha de vez em quando? Deixa eles falarem o que quiserem, Mel! Eu tenho muito orgulho da minha cor, de quem eu sou e do quanto os meus pais lutaram para chegar até aqui. Não tô nem aí pra um rótulo idiota como esse de “vadia” e vou continuar fazendo o que me der vontade, não quero nem saber o que vão dizer. E também vou aproveitar essa chance de poder estudar em um colégio forte! Vou estudar e me esforçar muito para também conseguir chegar longe!

O desabafo me pegou de surpresa, mas eu fiquei muito feliz por perceber que Emily também estava se sentindo à vontade e compartilhando suas preocupações comigo. Aos poucos, eu estava começando a ver novas faces e outros lados dela que eu ainda não conhecia e nem imaginava que existissem: a estudante ansiosa, a filha única mimada, a festeira, a menina do quarto rosa que gosta de ver desenhos sobre príncipes, a garota que não desistia. Cheguei a sentir um pouco de vergonha por nunca ter notado que havia tão poucos alunos negros naquele colégio… eu nunca tinha percebido nada do que ela tinha que enfrentar, mas só o fato de eu nunca ter parado para pensar nisso me incomodava agora, depois de ouvir aquele relato. Eu me sentia até um pouco envergonhada.

Pensando em tudo isso, não consegui evitar imaginar o que ela estava vendo com as minhas confissões.

— Às vezes é melhor assim — comentei, tentando demonstrar apoio do jeito que eu conseguia.

— Com certeza que é — Emily concordou. — Aquele colégio é pesado, o clima é carregado. Parece até que todo mundo já esqueceu o que aconteceu no ano passado e nem lembram mais da Maya. Não sei como eles conseguem…

Mordi o lábio para não dizer nada. A conversa estava tomando um rumo que eu não queria seguir.

— Desculpa — Emily murmurou, desviando o olhar. — Eu sei que você não gosta de falar nisso.

— Não gosto nem de lembrar… podemos mudar de assunto?

Eu me senti mal por interromper a conversa daquele jeito tão brusco, mas aquilo era algo que eu definitivamente não estava pronta para compartilhar com ninguém. As coisas ainda estavam confusas na minha cabeça. Eu nem sabia por onde começar a desembaraçar aquele nó e também era difícil dizer até que ponto eu conseguiria falar sobre Maya. Ou melhor, o que eu poderia dizer sobre ela sem desrespeitar os desejos dos que mais a amavam?

— Eu entendo, tudo bem — Emily assentiu, interrompendo meus pensamentos. — É melhor esquecer tudo mesmo. Sempre foi assim por aqui. Eu nunca pensei que as coisas fossem chegar ao ponto que chegaram, mas sempre foi assim. Até pensei que fosse começar a mudar… acho que me enganei, porque parece que ninguém se importa mais. Realmente, parece até que nem lembram.

— Nunca se importaram. — Apesar de eu concordar, o pensamento me fez balançar a cabeça. — É melhor a gente não pensar nisso. Eu quero deixar tudo o que aconteceu lá pra trás.

— Você tem razão. Chega de pensar nisso.

O que seguiu foi apenas silêncio. Nós duas levamos algum tempo para conseguir deixar as lembranças de lado e, como eu já esperava, Emily foi a primeira a retomar a conversa:

— Seus outros amigos são mais legais?

Demorei um pouco para processar a pergunta e, ainda assim, não consegui pensar no que dizer. A resposta mais sincera seria “meus outros amigos não existem” e, apesar de eu me sentir mais confortável do que pensei que seria capaz naquele momento, isso ainda era mais do que eu poderia compartilhar.

Minha cabeça estava começando a doer. Eu nunca tinha parado para pensar no quanto era até mesmo senso comum imaginar que eu teria outros amigos e não sabia como explicar a minha completa falta de capacidade de me socializar.

— Mais ou menos. Eu meio que acabei perdendo contato com os amigos que eu tinha.

Tentei resumir da melhor forma possível, mas isso nem começava a descrever a situação. Nunca fui popular ou cheia de amigos e também nunca quis isso. Sempre me sentir deslocada aonde quer que eu fosse era o que mais doía e, de alguma forma, eu conseguia fazer a façanha de ser a peça que não se encaixava até mesmo entre os outros “esquisitos”. Eu sempre soube que o resto do mundo todo não tinha como ser o problema e, ainda assim, pensando por outro lado, até que isso não foi tão ruim. Na verdade, foi assim que tudo começou. Também foi por isso que as coisas terminaram do jeito que aconteceu.

Para a minha surpresa, eu ouvi o som da minha própria voz outra vez.

— Nós sempre fomos os excluídos da turma, então sempre sobramos uns com os outros o tempo todo. Acabamos ficando amigos e foi assim por um bom tempo… por anos.

— E o que aconteceu?

A curiosidade de Emily também tirava um peso dos meus ombros. Por algum milagre, ela ainda não tinha se cansado de me ouvir.

— A verdade é que eu nem sei — confessei com mais um suspiro. — Primeiro, as minhas duas melhores amigas simplesmente sumiram e pararam de falar comigo. O último amigo que me restou era um garoto, então você deve imaginar o tipo de coisa que começaram a pensar.

— Disso eu entendo muito bem… — Emily respondeu num tom mais baixo, quase triste. Aquela voz não combinava com ela. — O pior nem é o que pensam, é o que falam por aí. As pessoas dizem coisas horríveis quando querem ser maldosas.

— Acho que essa é a maior verdade do mundo… — concordei. — Começaram a falar todo o tipo de coisa. Que a gente se pegava escondido pelos cantos, que eu era doida e viva atrás dele e por aí vai. Chegaram a nos eleger o “casal do colégio” de piada uma vez, sempre tinha algum babaca aleatório aparecendo só pra dizer que nos shippava. Também teve a vez que me mandaram uma carta no dia dos namorados toda exagerada e bem ridícula assinada por “ele”, que na verdade uma das idiotinhas da turma escreveu e fez questão de ler para todo mundo na aula de educação física. Eu nunca senti tanta vergonha na vida, não gosto nem de lembrar das asneiras que ela escreveu naquele negócio… todo mundo me olhando e rindo como se fosse a piada mais engraçada… do mundo… — Minha voz começou a falhar. Lembrar daquilo ainda me trazia um gosto ruim à boca. — Nem sei se ele acreditou ou se só cansou de aguentar isso, mas eu nunca nem gostei dele desse jeito. É isso que eu não consigo engolir até hoje. Aliás, e se eu gostasse dele ou de qualquer outra pessoa, por que isso seria tão engraçado assim?

— Mel…

Emily me encarou outra vez. Vê-la tão séria e ouvir o meu nome naquele tom baixo também não encaixava com o perfil da Emily que eu conhecia. No fundo, a verdade era que eu não gostava de ser olhada daquele jeito.

— Tá tudo bem, sério — falei para tentar tranquilizá-la. — Eu meio que já me acostumei. Acho que eu vejo coisas assim acontecendo desde que eu me lembro…

Pensei que o meu devaneio fosse enterrar aquele assunto, porém Emily continuou fazendo perguntas e não me deu brechas para escapar.

— E você nunca tentou falar com eles? Não foi descobrir o que aconteceu?

— Até que sim, mas nunca me responderam… e eu acho que isso acabou sendo uma resposta mais forte ainda.

Eu já tinha entendido tudo o que precisava saber: eles não me queriam mais por perto. Por que ficar pensando nisso? Por que eu estava remoendo essas coisas agora? Pelo menos Roy e Liesel nunca me tratariam daquele jeito… e eu só podia esperar que Emily também não fizesse isso.

— Isso é ridículo! — Emily reclamou indignada. — Quem eles pensam que são?

— Provavelmente tiveram lá os seus motivos.

— E isso justifica tratar alguém assim?!

Minha resposta foi um bocejo. Aquele assunto era cansativo e me deixava sem energia para pensar. Eu sempre fui uma esquisita desde que conseguia me lembrar e também sempre preferi me afastar do que me faz mal. Para mim, não havia nada de complicado nisso.

— Talvez não, mas não muda nada, sei lá — bocejei mais uma vez. — Só quero esquecer tudo isso. Eu queria deixar tudo para trás e recomeçar quando nos mudamos ano passado… bom, você já conhece essa história. Não acredito que acabei voltando nisso de novo.

— Tudo bem, Mel. — Emily assentiu, mas eu ainda conseguia sentir que não estava nada bem. Pelo menos, não pela visão dela. — Você já tá caindo de sono aí! Vamos descansar, amanhã vai ser um dia cheio.

— E longo — adicionei e sorri para espantar aquela sensação ruim. — É, acho que é melhor.

— Boa noite, Mel — Emily se deitou de lado e procurou pela cordinha do abajur. — Se precisar de alguma coisa, eu tô aqui, viu?

— Já aprendi onde fica o banheiro, então tá tudo bem — forcei um riso abafado.

Algo me dizia que não era disso que ela estava falando, porém eu só queria fechar os olhos e dormir. Ouvir Emily falar sobre festas e garotos era fácil, já falar abertamente sobre o que eu pensava ou sentia nunca foi tão simples assim para mim — na verdade, era estressante e cansativo. Saber de toda a sua dor também me deixava sem saber o que dizer ou como agir e eu sentia que ainda precisava aprender a ser uma amiga melhor. Eu me sentia exausta e Emily provavelmente tinha entendido, porque não tentou insistir mais depois que a luz baixa se apagou.

Ali, no escuro, eu ouvi a voz de Roy pela primeira vez desde que a nossa conversa começou:

— Papo interessante, não? — ele riu. Eu conseguia imaginá-lo sentado ao meu lado no chão, jogando os cabelos para trás. — Será que agora você vai começar a parar de fingir que não se importa, loirinha?

Ignorei completamente o comentário e me concentrei em tentar adormecer, mesmo sabendo que provavelmente voltaria a ver as lembranças que eu gostaria de esquecer entre os meus sonhos com cabelos rosa como chiclete.


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Notas finais do capítulo

Então... por onde começar? haha

— Quero reforçar o que falei nas notas do último capítulo: eu não quero escrever só personagens brancos, héteros e dentro de padrões, mas tenho medo de fazer bobagem ou tomar o lugar de fala de alguém. Por favor, sintam-se sempre livres para me dar toques, puxões de orelha ou fazer correções sempre que necessário! Principalmente quanto ao relato da Emily, no caso desse capítulo (ou qualquer outra situação que aparecer no futuro). Tenho lido, pesquisado e me informado muito, mas sei que posso errar mesmo que não seja a intenção. Quero sempre continuar aprendendo e não só pela escrita! Aprender é parte da vida e eu nunca quero parar de aprender mais sobre o mundo que existe além da minha percepção.

— Sobre os amigos da Mel... na verdade, isso tudo se passa em outra história que eu pretendo escrever depois de terminar A Ilusão da Realidade. Eu tenho um universo interligado de várias histórias conectadas que quero escrever, mas também quero que todas essas histórias sejam "independentes" e façam sentido sem precisar uma da outra (consegui explicar? haha). Ainda pretendo falar mais sobre isso e mostrar alguns flashbacks, mas além de ser algo que a própria Mel ainda não processou muito bem, o capítulo já estava ficando longo e eu não queria tirar o foco da importância do relato da Emily. Isso será explicado de uma forma mais ampla quando for a hora certa para a história.

— Eu sei que as menções do que aconteceu no "ano passado" ficaram vagas, mas é essa a intenção por enquanto hahahaha prometo que as coisas vão fazer sentido logo logo!

Ufa! Falei demais, então acho que vou parar por aqui. Muito obrigada a todo mundo que está lendo e acompanhando, esse apoio me deixa MUITO feliz e é o que me dá mais ânimo para continuar! ♥ ♥ ♥ Espero que esse capítulo tenha ficado bom, mas não deixem de me dizer o que acharam, por favor! (sério, um simples "gostei", "tá bom" ou até "não entendi isso/acho que podia melhorar aquilo" já fazem o meu dia porque me ajudam a ver no que estou acertando ou errando! ♥ ♥ ♥)

Até a próxima! ♥



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