Depois da Ruína escrita por Bzllan


Capítulo 21
Revelações




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Revelações - Ilustração Rafael

— Eu não sei nada sobre vocês. 

Diego, parcialmente recuperado depois de uma noite de sono, decide quebrar o silêncio enquanto Alex gentilmente limpa seu ferimento.

— O quê? - Maia, com o rosto ainda amassado e os cabelos desgrenhados, pergunta deitada no sofá.

— É claro que sabe, cara. - Murilo corta com uma faca uma maçã que achou na pilha de alimentos da saleta.

— Não, não sei do passado de nenhum de vocês.

O passado. Ninguém gosta de tocar nesse assunto.

— Por que essa agora? - Rafael ainda se recupera da noite anterior, mais abalado do que achou que estaria.

— Logo antes de eu ser baleado, eu… me dei conta que nunca falamos sobre isso. E vocês são a única família que me restou. Eu quase morri ontem, e eu não quero correr o risco de novo sem saber quem são as pessoas que eu amo.

— Awn.— Maia se senta no sofá. - Você ama a gente.

Ela faz uma expressão fofa com o rosto, que desperta risadas em todos.

— É, não vou dizer de novo. Mas sério, o que você fazia antes?

— Bom, - Maia abraça a perna e encara o teto, pensativa. - Eu tinha meus doze aninhos, fiz aniversário de quarentena, foi uma bosta. 

Os outros se entretém com a história.

— Eu, minha mãe e meu padrasto morávamos perto do porto. Meu pai deixou a gente assim que eu nasci. Minha mãe estava grávida durante a quarentena, ia nascer dois meses depois. Mas as coisas não melhoraram, como podem ver. - Maia tenta sorrir, mas sai apenas um sorriso triste.

— Me conta algo feliz. - Diego insiste.

— Tá, deixa eu pensar. - Ela coça a nuca. - Eu era uma ótima bailarina.

— Sério? - Rafael pergunta, rindo incrédulo.

— É claro! Por que é difícil de acreditar?

— Você é… sabe? A Maia. Meio ogra.

— Uma coisa não exclui a outra, eu dançava bem pra caralho. Às vezes, quando bate a saudade, eu ainda danço escondida no pomar. E eu nunca contei isso pra ninguém. É isso.

Ela consegue arrancar risadas e sorrisos de todos.

— Ok, minha vez. - Diz Murilo, com a boca cheia de maçã farinhenta.

— Nossa vez. - Rafael se aconchega no lugar. O papo o entretendo.

— A gente não nasceu grudado, criatura. Só porque você tem a mesma cara que eu, não significa que a gente tinha a mesma vida.

— A nossa rotina era igual! - Ele levanta os ombros, indignado. - Você vai contar todas as coisas legais e eu vou ficar com… inglês.

 - Você gostava de fazer inglês.

— Esse não é o ponto.

— O ponto é - Murilo continua - que nós morávamos com nossos pais e mais dois irmãos, e em certo ponto a nossa avó paterna.

— Meu Deus. - Diego ri.

— É, família grande, casa grande, foi daora. A gente tinha… Quantos anos?

— Quinze.

— Isso, quinze, quando o vírus explodiu. Mas foi uma quarentena divertida.

— E seus irmãos? - Alex pergunta, quieta até então. - Desculpa a pergunta, eu…

— Não, relaxa. - Rafael responde. - Éramos os caçulas. Os outros já tinham dezenove, vinte. Não tinham entrada no trem. Não soubemos de mais nada de ninguém.

— Ok, coisas felizes, ou eu vou me arrepender de ter perguntado. - Diz Diego, se ajustando no lugar, ao lado de Alex, que termina de limpar seu machucado.

— Tá, coisas felizes. Eu tinha uma namorada, Amanda, que inclusive morava nessa rua e salvou nossas bundas, viva à Amanda.

— Amém. - Maia brinca.

— A gente terminou quando ela foi morar na Alemanha, mas ela era uma coisa feliz na minha vida. Eu não entrei no mundo pós quarentena virgem, igual o Rafa, fala aí.

Rafael o fuzila com os olhos.

— Desculpa se eu tava ocupado estudando e construindo um futuro!

— Pois é, olha onde isso te trouxe, né?

— Filho da puta.

Diego pensa em zoar um irmão por chamar o outro de "filho da puta", mas se contém.

— Sua vez. - Diz Maia, olhando para ele. - Quem era você?

— Bom, eu já era velho. Aquele ano eu fiz vinte anos, na quarentena também, igual você. É, é uma bosta. Eu já morava sozinho por causa da faculdade e não consegui voltar pra casa. Eu… estava no exército. Me recrutaram dois anos antes. Tentaram me levar pra essa de "mundo novo" depois de um tempo de quarentena com várias promessas de melhora de vida. Foi foda resistir, eles prometeram cuidar da minha família, mas eu não sou um… fascistinha. Ninguém acreditou em mim quando eu contei do governo, mas por uma… sei lá, muita sorte, eu era seu vizinho.

Alex demora a perceber que ele fala com ela. Suas sobrancelhas se cerram, em dúvida.

— Como assim?

— É, eu tinha me mudado pro prédio da frente. Sua mãe me deu as boas vindas, ficamos amigos… Ela me recrutou pra resistência. E estou aqui.

Alex está sem palavras.

— Por que não me disse antes? Eu não me lembro de você…

— Eu era bem careca. - Ele ri. - Desculpa, não soube como introduzir o assunto. Mas é por isso que eu sei exatamente como chegar na sua rua.

Ela concorda com a cabeça, processando as informações, e rindo de como o destino dos dois se cruzara dessa forma.

— Ainda não agradeci por salvar minha vida. - Ele sorri para Alex, que, sem graça, não sabe como responder.

— Foi um prazer.

— Mas e você, novata? - Rafael pergunta, abrindo um pacote de trakinas vencido.  

— O que tem eu?

— Sua história.

— Vocês sabem a minha história.

— A gente só sabe o que contaram pra gente. A gente não conhece a Alex ainda.

Pensativa, Alex conta da vida com os pais e Ivan. Conta da vida no bunker. Conta sobre Nic e como está preocupada com ele.

Os outros escutam em silêncio.

— Caralho, novata, você tá tendo que processar tudo muito rápido.

Ela ri, meio triste.

— Obrigado por vir com a gente. - Com seu jeito doce, Diego a agradece.

— Era o mínimo.

— Satisfeito? - Murilo pergunta a Diego, jogando os caroços da maçã no chão.

— É, posso morrer em paz agora.

— Ah, vá se foder! - Maia joga uma almofada empoeirada em Diego, que se protege com o braço bom e finge sentir dor.

Os quatro começam a conversar desembestadamente, como se estivessem em uma reunião de amigos, menos Alex, que sorri e olha de um para outro. 

Está feliz.

 

x

 

Ivan não encontrara a namorada durante o resto do dia inteiro.

O dia se arrastou. Ele ajudou no pomar, ajudou na cozinha, levantou peso e tudo mais, quando o que mais queria na verdade era sair para caçar.

Sua cabeça cheia parecia que ia explodir a qualquer momento. A dor nas têmporas que sente toda vez que pensa na irmã e nos amigos, na história de Nic e em todas os piores cenários para aquele episódio se encerrar é torturante. É cedo quando vai se deitar.

Acorda com a porta do quarto rangendo ao abrir. Do escuro, ele consegue ouvir Júlia chorar.

Preocupado, se levanta o mais rápido que pode.

— O que foi? - Ele acende uma vela ao lado da cama e estende os braços para acolhê-la. - Não te vi o dia inteiro, o que aconteceu?

— Preciso te contar uma coisa. - À luz de velas, Ivan limpa suas lágrimas. Seus olhos inchados denunciam que o que quer que fosse a aflige o dia inteiro.

— Claro, pode me contar o que quiser.

Júlia se recompõe e coloca os cabelos loiros caídos no rosto atrás das orelhas.

Ivan está preocupado. Júlia nunca chora. Ele a vira chorar apenas uma vez, quando perderam Lucas sob seu comando ano passado.

Ela se levanta e vai em direção ao banheiro.

Ivan se aconchega na cama, forçando a vista para enxergar melhor no escuro.

A namorada volta com algo nas mãos e se senta ao seu lado. Com as mãos trêmulas e as lágrimas recomeçando a escorrer por seu rosto, Júlia lhe mostra o teste.

O queixo de Ivan vai ao chão. Ele pega o pequeno objeto das mãos trêmulas da namorada.

— Isso é…?

— É.

— E dois pauzinhos significa o quê?

Ela balança a cabeça positivamente.

A reação de Ivan é a única que ela não esperava.

— Ai meu Deus! - Ele a abraça, rindo e sorrindo, e beija o rosto molhado de Júlia com toda sua vontade. - Você está grávida?

Ela concorda.

— Ai, cacete! Grávida!

Ivan a abraça forte, mas a garota está incrédula.

— Como pode estar feliz?

— Ué, é meu, não é?

— É claro que é, idiota. - Ela seca as lágrimas, sorrindo pela primeira vez.

— Não entendo. Eu sempre quis uma família, Júlia. E você também…

— Sim, claro! Mas… Que péssima mãe eu vou ser colocando uma criança nesse mundo, Ivan?

— Júlia, a melhor mãe…

Ele pega as mãos da namorada.

— Eu sou o homem mais feliz do mundo desde que eu te encontrei, não importa o que está acontecendo lá fora. E construir uma família com você vai ser a coisa mais incrível que eu já fiz na vida. Vamos… vamos dar um jeito, ok? Nossos amigos vão voltar em muito breve e nós vamos… deixar esse lugarzinho mais habitável pra essa criança. Pode ser?

Ela balança a cabeça, sorrindo.

— Está feliz? - Ele pergunta.

— É claro que estou. - Ela concorda, com a mão sobre a barriga, pensando no futuro.

— Ótimo. - Ele puxa a namorada para cima de si, deitando novamente no colchão. - Só mais uma pergunta.

— O quê?

— Você me deu um palitinho mijado pra eu eu segurar?

Ela ri, e dá um demorado beijo no garoto, finalmente ansiosa pelo futuro que irão construir.

 

x

 

Levi observa Naomi colocar o sono em dia. Deitada na pilha de espumas velhas, tão encolhida quanto consegue, já dorme há horas.

O dia se arrasta, entediante.

Lá fora, tão cedo, o dia começa a virar noite. As nuvens de chuva carregam o céu, anunciadas por raios e trovões.

Naomi acorda com as primeiras gotas de chuva caindo sobre o telhado.

— Bom dia. - Levi diz, seco, olhando para fora por entre os buracos no teto. - Bom, foi um desprazer passar esse dia com você, mas acho que já está escuro o suficiente pra gente ir.

Naomi se levanta, o corpo ainda dolorido de dormir no chão duro, mas a cabeça renovada.

Por uma fresta da janela, ela olha lá fora. A chuva, que costumava passar a sensação de conforto, agora só lhe causa calafrios.

— Então vamos. 

Levi pega o walk talk.

— Hora de irmos, vagabundos. Tirem a bunda das cadeiras. - Ele envia a mensagem. 

De início, ninguém responde. Antes que possa repetir, um chiado precede a voz de Murilo.

— Estamos prontos. Qual o plano?

— Fale com a chefe.

Naomi revira os olhos e tira o monitorador das mãos de Levi. Ainda olhando para fora, começa a falar o que arquitetara em sua cabeça durante a noite.

— Vamos continuar separados. Vão na frente, nós fazemos a retaguarda. Diego conhece alternativas para entrar na casa de Alex correndo menos riscos. Tenham cuidado, as coisas por lá não vão estar fáceis. Mesmos times, Murilo e Maia levam Alex até lá. Diego e Rafa, deem cobertura pelo lado esquerdo do prédio, fiquem bem escondidos. Eu e Levi estaremos de olho do outro lado. Qualquer coisa, estaremos lá para vocês.

Silêncio. Apenas o barulho da chuva os conecta.

— Tudo bem. Vamos acabar com isso logo.

 







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Notas finais do capítulo

essa primeira parte ta acabandoo
o que estão achando?



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