Digimon Zero - The Lost Gate escrita por Anelim Marhizee


Capítulo 3
Episódio 02 – Na Floresta do Cântico


Notas iniciais do capítulo

Boa madrugada, gente! (Eu sei, já faz um tempão que estou sumida, mas aqui estou com um novo capítulo) Esperam que estejam bem, porque essa pandemia não tem pena de ninguém (e fazer quarentena é um saco. Vamos torcer para que isso acabe de uma vez).
Chega de enrolação e vamos ao que interessa: boa leitura!



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Acordar numa floresta rodeada por montanhas brancas como açúcar não estava nos planos de Haruka.

— Onde eu estou? — se perguntou enquanto sentava e olhava em volta. As árvores ao seu redor eram altas e de folhagens curiosamente douradas e prateadas, das quais cresciam frutos e flores de aspecto brilhante (brilhante que nem diamantes, rubis, safiras, ágatas, jades, âmbar…). Filigranas de ouro formavam a grama abaixo dele, se estendendo até onde sua vista podia alcançar. Ele passou a mão pela grama, ela era tão macia quanto grama de verdade, mas tinha o mesmo toque de embrulhos de alumínio que as pessoas às vezes usam em presentes. Que bizarro, parece tão real.

Olhou para o alto, o céu era azul-dia e tinha algumas nuvens. Acima das nuvens brilhavam várias estrelas de formato engraçado (aquilo eram… números?!). Olhando com mais atenção, ele percebeu que o céu era todo tracejado por linhas quase transparentes. Como se linhas cósmicas traçassem o universo numa folha… O mapa do universo?

— Ahn? O que eu tô pensando? Tenho que achar mamãe e as outras. — Ele pegou no bolso de sua jaqueta larga seus fones e colocou nos ouvidos, religando a música em seu walkman. O ritmo inicial de Black or White, de Michael Jackson, o acalmou na hora, aliviando os nós de tensão em seus ombros. O garoto se pôs de pé, determinado em encontrar sua família. Tem que ter alguém por aqui que possa me ajudar a voltar para o aeroporto. Lamentava tanto não ter levado sua mochila consigo na hora que foi no banheiro. Guardei tantos biscoitos lá. E agora não tinha nada para comer. A última coisa que queria era desmaiar sem encontrar ninguém. Tenho que resistir.

Ele nem parou para pensar no quanto aquele lugar era estranho. Só queria retornar ao aeroporto. Aceitava até ir para a Rússia e lidar com seu avô.

Nos primeiros minutos, ele não pensava em nada além de seu objetivo. Mais alguns minutos, começou a pensar que talvez estivesse sonhando. A Coca não deve ter batido bem no meu estômago. Era isso, estava sonhando! Só podia estar. Devia ter batido a cabeça na parede do banheiro e tirado um cochilo forçado.

Depois de quarenta minutos, Haruka cansou de procurar (aquela floresta parecia nunca acabar!). Deve ser infinita. Pensou, mas logo percebeu o quanto aquilo era idiota. Que bobeira. Não existem florestas infinitas! Ele ia sentar numa pedra para descansar quando viu aquilo. Saindo por entre uma montoeira de arbustos havia um pé usando meia — meia de caveirinhas, bem ao estilo roqueiro. Aquilo intrigou Haruka. Afinal, ele tinha achado alguém. Alguém claramente desmaiado.

Foi correndo ao socorro da pessoa, surpreendendo-se ao se meter por entre os arbustos. O pé pertencia a uma garota, ela usava uma blusa do Guns N’ Roses, um blusão xadrez vermelho e preto, uma calça jeans tão surrada que parecia ter sido usada umas quinhentas mil vezes e tinha perdido um de seus tênis All Star amarelo. O rosto dela estava meio encoberto por algumas mechas de seu cabelo castanho de corte Chanel, mas Haruka percebeu a pintinha que ela tinha bem no meio da bochecha direita. Ela tinha uma mochila nas costas. O que ela faz aqui? Foi uma das tantas perguntas que se passavam pela cabeça estressada do menino.

— Ei, acorda… — Ele foi para tocar o ombro dela, mas antes que seus dedos a tocassem, as pálpebras da garota mexeram, tremendo um bocado. Haruka se afastou um pouco, dando espaço para ela (não queria que a única pessoa que achara em quase uma hora inteira se assustasse e saísse correndo dele). A garota sentou e virou a cabeça na direção dele e, ainda de olhos fechados, perguntou:

— Quem é você? Não é meu Salen.

Meu Salen? Quem é esse? Por acaso, é o namorado dela?

— Ha- Haruka. Kanata Haruka. — Ela abriu os olhos e o mirou sem esboçar nenhuma expressão. — Eu me perdi nessa floresta, e estava procurando por alguém que pudesse me ajudar a sair daqui. Tenho que encontrar minha famí- Hum!

— Silêncio. Ouviu? — Os olhos de Haruka gritavam “o quê?!”, mas a menina continuou tampando a boca dele, e fez pior. Abraçou-o e arrastou para trás de um monte de arbustos com amoras roxas e meio rosadas. Hum! Me solta, sua maluca! — Ouviu agora? — Haruka parou para prestar atenção em volta, tentar entender do que ela estava falando. Não precisou de muito, bastou ficar quieto para escutar com perfeição.

Algo (ou alguém, nunca se sabe se tem um pervertido a solta por aí) fuçava, o som da respiração era muito ruidoso. Incômodo. Assustador. Haruka parou para analisar melhor e se deu conta de que animal estava por perto. Um urso… Pelo menos, fuçava igualzinho. E estava perto. Haruka olhou alarmado para a menina, ela continuou a silenciá-lo com a mão. Os olhos dos dois se cruzaram e ela fez sinal de silêncio para ele e descobriu sua boca. Ele fez como pedido, afinal, não estava com vontade de entrar para o cardápio de um predador, nem de bicho nenhum. UM URSO. Como fariam para escapar?! Se ele sentisse o cheiro deles, seria o fim!

Foi nessa hora que Haruka ouviu uma voz — a garota das caveirinhas também deve ter escutado, já que apertou os dedos envolta do pulso dele. A voz era feminina e muito doce, ela parecia vir de toda parte — suas palavras ditas numa língua estranha eram um calmante para a alma amedrontada do menino, apesar de não entender o que dizia. Ela começou a entoar uma suave canção, sua voz se assemelhando a uma caixinha de música (cada nota, uma palavra. Tão bonita que dava vontade de chorar).

— De onde isso está vindo? — perguntou a menina, olhando em todas as direções.

— Não sei. É lindo. — Mais alguns segundos e todo o medo que oprimia Haruka se apagou, só deixando restar uma boa sensação de paz, não sabia como explicar como acontecera. Foi a música? Foi pensar isso que a voz se calou, cessando o som agradável de caixinha de música. Haruka olhou para o céu e soltou um suspiro. Aquelas estrelas eram estranhas, mas tão bonitas. Se for um sonho, minha imaginação deve estar em um período criativo. Ele pensava isso toda vez que sonhava coisas inesperadas como aquela (mas ele geralmente não sonhava com meninas, e não se lembrava de conhecer aquela menina estranha). É sonho. O que mais poderia ser? Afinal, não existiam estrelas numéricas.

— Parou. Bem, seja lá o que fosse essa música, parece que adiantou — observou a menina, olhando por uma fresta nos arbustos. — Não vejo nem ouço nada. — Verdade. Haruka também não ouvia nada. O urso ou o animal que fosse tinha ido embora.

— A voz… nos salvou? — o garoto disse num misto de surpresa e espanto.

— Olha, nada disso é normal. Eu sugiro que a gente dê no pé antes que apareça algo pior e arranque nossas cabeças. — A garota se ergueu e saiu de trás dos arbustos. Antes de levantar e ir atrás dela, Haruka encheu os bolsos com as amoras dos arbustos (não sabia quando veria comida de novo, tinha que usar o que estava a sua volta a seu favor).

— Sabe para onde ir? — Correu até a garota, ela andava como se pisasse em gelo e olhava ao redor cautelosa.

— Não. Não sei onde estamos e nem para onde ir. Mas tenho que tomar algum rumo.

— Posso ir com você? — Ele queria comer as amoras, mas elas tinham que ser lavadas primeiro, então mandou seu estômago ficar quieto e continuou a caminhar.

— Tá. Se prometer não me atrasar, não ligo. — A mini-roqueira deu de ombros.

— Eu sou o mais rápido da minha turma na escola. As pessoas que costumam me atrasar. — Foi a vez dele de dar ombros.

— Hilário. De qualquer forma, eu sou Tila.

— Haruka. Como veio parar aqui, Tila—san? — perguntou, tomando cuidado com o modo que a chamava. Ela falava em japonês, mas seu sotaque parecia ser de algum lugar da Europa, talvez Espanha ou Itália.

— Não sei muito bem. Num momento, eu conversava com meu irmão, no outro, acordei aqui — ela contou sem parar de prestar atenção em volta. — Espero que Salen tenha encontrado o vovô.

— Eu também. — Ela enfim olhou para ele, os olhos expressando clara desconfiança. O que você está dizendo, Kanata Haruka? Vocês acabaram de se conhecer! — Quer dizer, empatizo com sua preocupação — emendou nervoso. O olhar de Tila suavizou e ela sorriu, voltando a atenção adiante. — Quantos anos ele tem?

— Sete. E você?

— Onze.

— Que nem eu. — Ela parou de repente e Haruka fez igual, logo vendo o motivo dela ter parado. À frente a floresta de peculiares árvores e plantações rasteiras que pareciam feitas de prata e ouro se dividia em dois corredores naturais, ali havia mais arbustos com amoras (Haruka lamentou em não ter mais espaço em seus bolsos). — Droga, uma bifurcação, isso não é bom. Separar é uma péssima ideia.

Ele observou as trilhas por mais alguns instantes e se decidiu.

— Vamos por aqui.

— Por que quer ir por aí? — quis saber Tila. Haruka parou de andar depois de dar alguns passos. Tinha escolhido o corredor à direita.

— Aqui tem luz e ali não. Se a gente andar no escuro, não vamos ver se algo estiver chegando — sua explicação foi o bastante para convencê-la.

— Por favor, Deus, protege meu irmãozinho — ela disse baixinho, caminhando ao lado dele. Haruka se compadecia da situação de Tila, ao passo que se preocupava com sua família. O que será que elas estão pensando? Na certa, Suya devia estar procurando por ele. Tomara que ela ainda esteja no aeroporto. Seria péssimo se mais alguém sumisse, já basta eu.

Ele se sentiu melhor por não estar mais sozinho, por mais que não ficasse muito confortável a sós com garotas que não fossem sua mãe e suas irmãs. Como Tila, orou, pedindo para achar logo o caminho de volta para o aeroporto o mais depressa possível.

#          #          #

Joseph não teve a mesma sorte de Haruka ou Tila. Já andava por duas horas e não vira nenhuma viva alma ainda. Esse raio de floresta não acaba nunca! Só não tinha morrido de fome porque achara uma macieira ali perto (colocou quantas maçãs couberam na mochila e nos bolsos do casaco. Já estava na sua quinta maçã, tinha que começar a maneirar se quisesse ter comida pelas próximas horas. Em momentos assim, ser comilão atrapalhava bastante).

Estava muito bem no aeroporto, falando com Jurema, quando viu aquele portão gigantesco que ia contra as leis da física e da química. Foi sugado pelo portal e lá dentro viu um monte de estrelas esquisitas — as mesmas que iam no céu sobre sua cabeça — e apagou totalmente. Depois do que pareceu séculos, acordou naquela floresta estranha. Desde então estava procurando por comida, uma fonte de água e por seus pais (até agora, só achara a primeira). Qualquer ajuda seria bem vinda. O lado bom nisso tudo era que não tinha esbarrado com nenhum bicho perigoso — passarinhos, esquilos e joaninhas não metiam medo nele.

Ele já não aguentava mais andar — o lugar ao redor parecia ser sempre o mesmo —, a mochila começava a pesar nas costas e ameaçar arrancar seus ombros. Pra mim já deu! Quando desistiria de procurar por qualquer ajuda ou lugar para passar a noite, avistou a alguns metros mais à frente uma cabana de madeira, troncos maciços compunham as paredes e os telhados eram de telhas de aspecto firme (pelo menos, Joseph imaginou que se tratasse de uma cabana. Uma cabana quase tão grande quanto uma casa de acampamento de verão no meio de uma floresta. De uma floresta de ouro, prata e rubis. Animal demais, cara). Ótimo, tenho onde dormir agora!

— Tomara que não tenha ninguém aqui — disse consigo mesmo, avançando devagar. Caso tivesse, torcia para que o dono o deixasse passar a noite ou ao menos deixar que ligasse para mamãe ou papai. E comer algo. Ia ser tão legal almoçar. Por mais que se amarrasse em maçã, ia enjoar se só ficasse comendo isso. Andou curvado, praticamente agachado, pela lateral da cabana, sendo o mais silencioso que conseguia (difícil, chão de madeira não é nada bom para abafar passos, e o garoto descobriu isso da pior forma possível).

— Quem está aí? Aparece! — uma voz o abordou, e a dona dela surgiu na porta armada com um bastão de beisebol (como assim, produção?!).

— Pera aí, pera aí! — Ele ergueu as mãos em sinal de rendição, parando em frente a menina. — Calma, eu vim em paz. Me perdi dos meus pais e tô tentando achar eles, só isso.

A expressão dela suavizou e ela abaixou o taco, dizendo com um tom doce (nada a ver com o tom ameaçador que tinha usado uns segundos atrás):

— Também estamos perdidos. — “Estamos”? Mal pensou isso, e um menino baixinho de cabelos ruivos lisinhos apareceu do lado da menina, ele fazia uma cara séria de dar medo. — Eu sou Lua, esse é Salen.

— Joseph — se apresentou, e as duas crianças deram espaço para ele passar. Joseph assobiou, impressionado com o que viu. Por fora, a cabana era responsa, mas por dentro ela era uma belezura! Tinta branco-baunilha pintava a sala inteiro e aos fundos do cômodo um hall com duas escadas de mármore de cada lado, o chão de granito maciço e o teto de madeira. Tinha janelas arqueadas numa das paredes, o vidro de um sépia-translúcido dava um quê envelhecido a paisagem do bosque ouro-prata. Tirando uns vasos de planta bonitinhos num canto e ladeando as escadarias, não tinha móvel nem decoração alguma — havia desenhos em algumas partes das paredes feitos com grafite de várias cores, mas era discreto demais para ser levado em consideração (Joseph só notou esse detalhe minutos mais tarde). Após sua breve observação, virou para Lua e Salen e comentou — Eu fui abduzido por um portão esquisito pra cacete, e vocês?

— O quê? O que você disse? — indagou o cabelinho de cenoura, os olhos arregalados.

Merda, eu não era pra ter falado isso. Agora eles vão achar que sô maluco. Burro, burro! Joseph se autocriticou, sentando no último degrau de uma das escadas enquanto tirava a mochila das costas.

— Eu estava no aeroporto com minha família e apareceu um portão que parecia feito de água e números, algo assim. Então acordei aqui — contou a menina, ela tinha uma cabeleira cacheada que por pouco não alcançava as coxas. — Eu sei do que você tá falando… Joseph. — Ele ficou aliviado ao ouvir isso. Ufa, não fui o único! Em seguida, se arrependeu em pensar assim. Droga, estamos numa cabana abandonada e eu aqui comemorando por não ser louco. Ele devia ter problemas de cabeça mesmo, como seu pai vivia suspeitando.

— Eu também tava no aeroporto! — apontou animado, levantando do degrau.

— Comigo, idem. Tanto o aeroporto quanto o portão sobrenatural — contou Salen, esfregando as mãos de forma tímida. — Lua me encontrou pouco tempo depois de eu despertar. Buscamos por ajuda por algum tempo, foi dessa forma que esbarramos com esse lugar. Achamos alimentos e quartos bem aquecidos. Achamos um telefone também, porém ele não funciona. Eu devia ter imaginado que não teria sinal aqui… — Salen suspirou extasiado. Joseph começou a suar de nervoso, como se já não tivesse suado o bastante.

— O que vamos fazer agora? Sem telefone, não dá!

— Não desanimem, meninos. Temos que ter esperança. A gente vai dar um jeito nisso. — A gente tá perdido num matagal, merda! Como ela consegue ficar tão calma? Joseph não recebeu bem o otimismo de Lua, dizendo irritado:

— Como? A gente não faz ideia de onde é aqui e não tem como a gente se comunicar com ninguém. Tamô ferrado, merda! Cai na real, eu, hein. — Ele não percebeu o quanto grosso soou até a garota atrair sua atenção com um soluço. O rosto mimoso dela estava lavado em lágrimas. — Ahn? Ei, não chora! — Cara, eu só faço besteira! Se recriminou, correndo até a garota. — Ei, Lua! Lua, não chora, poxa! — Quanto mais ele falava, ela mais chorava, e isso o deixava mais nervoso.

— Pare, está assustando-a. — Quem diz “assustando-a”? Enfim, Joseph pensou que seria melhor não perguntar. Salen podia ser um pirralho baixinho, mas ele tinha um olhar prudente bem intimidador, e isso foi motivo o suficiente para fazer Joseph calar a boca. O ruivo baixinho abraçou a menina, ela não pensou nem duas vezes antes de retribuir o carinho dele. Joseph fez um muxoxo, olhando com pena para Lua, e foi à caça da cozinha (sentia que um buraco se abriria em seu estômago a qualquer instante!).

Estava feliz por ter dado de cara com duas crianças, não com dois adultos ignorantes que podiam não entender sua situação. Sou sortudo, isso é fato. Tá, um pouco sortudo. Ainda não descobrira uma forma de voltar para o aeroporto. Antes de voltar a procurar, preciso tirar uma sonequinha. Com uma soneca e três ou quatro sanduíches bem recheados, voltaria a raciocinar direito.

Vasculhou sem muita paciência a gigantesca geladeira de inox e os armários sobre a extensa bancada da pia da cozinha, pegando material para dois sanduíches, uma bebida láctea de fruta (sem soja. Joseph odiava soja), um pote cheio do que parecia cereal de milho, a louça e os talheres que ia precisar — um prato, uma tigela, um copo e uma colher — e foi almoçar/tomar café da manhã.

Já tinha terminado seus sanduíches e quase acabava sua porção de cereal, quando uma voz surgiu atrás dele:

— Vem, Joseph, chegou mais gente. — Era Salen, e ele foi embora assim que terminou de dizer aquilo, deixando a porta aberta. Joseph matou em algumas goladas seu copo de iogurte e em três colheradas o cereal e saindo correndo atrás do ruivinho (estava curioso para ver a cara de seus novos colegas de cabana). Uma se chamava Tila, a irmã mais velha de Salen, e o nome do outro era Haruka, um moleque de olhos puxados. Essa tinta dele é da hora.

Como ele e os outros dois, Haruka e Tila estavam igualmente perdidos — no caso deles, com fome e sono e suados também (problemas que eles foram resolver logo a seguir). Por sorte, tinha cinco banheiros na casa — três no corredor principal da cabana e um em cada um dos dois quartos da casa na floresta —, permitindo privacidade para todos. Deu certinho, que ironia do destino! (Mal Joseph saber que era mais que o destino atuando detrás do encontro deles cinco). Misteriosamente, no fim do corredor dos quartos tinha um closet cheio de roupas que serviam nas cinco crianças. Bizarro demais… Joseph não sabia se gostava ou se saía correndo de medo, porque nada do que estava acontecendo era normal (e tinha plena de que não estava dormindo. Seus sonhos não eram tão bem elaborados daquele jeito). Enfim! Desde que não tivesse uma morte trágica, tudo era lucro.

Como só tinha dois quartos, não teve muito jeito: ficou garotos em um e meninas no outro (menos Salen, que dormiu no das garotas. Exigência de Tila, a qual Lua não se opôs, comovida com a linda amizade entre os irmãos. Joseph achou a desconfiança de Tila de não querer deixar seu caçulinha dormir com outras pessoas uma tremenda psicose, mas deixou pra lá). Eu só quero dormir.

Lua até pareceu querer conversar, mas ninguém deu trela para ela — todos estavam cansados. A menina das meinhas listradas — tão exausta quanto o restante — foi para o quarto sem reclamar.

Chegando ao quarto, os garotos foram direito para as camas, trocaram só algumas palavras antes de pegar no sono. Mesmo estando perdido no meio do mato com um monte de pirralho que mal conhecia, Joseph estava animado. Sempre quisera experimentar algo novo, que jamais imaginara. Talvez estivesse vivendo o prólogo (ou seria epílogo? Divisões de livros não são sua praia) de uma aventura inesquecível. Aventura inesquecível? Gostei dessa.

— Vai ser legal pra caramba… — resmungou o jovem rebelde, soltando um grande bocejo e cerrando os olhos. Bastou relaxar para adormecer (com um colchão confortável daqueles, seria difícil sentir insônia).

Teve a melhor noite de sono, até receber o olá de uma madrugada coberta de enigmas.

#          #          #

Nos vinte minutos que Haruka dormiu, foi atormentado por sonhos perturbadores. Retornou ao mundo real aos ofegos e tremidas, agarrando-se aos lençóis em uma vã tentativa de se livrar da sensação ruim que acometia sua alma (demorou alguns instantes para perceber que estava tudo bem). Ele viu uma versão dele mesmo sendo separado de sua família por uma parede de chamas. Ele se viu andando por ruas congeladas e vendo pessoas que amava serem transformadas em estátuas de gelo sem que pudesse fazer nada. Ele se viu correndo por uma galeria de corredores rochosos, tateando através da escuridão e dos rugidos que pareciam mais próximos a cada esquina (tremia tanto agora graças a tudo que vira e ao medo de ser devorado pelo leão que o seguia através das sombras de seus pesadelos).

Sentou-se, limpando as lágrimas que embaçavam os olhos e pegou o walkman e os fones debaixo dos travesseiros macios como bolinhos manjuu (tinha eletricidade na cabana, por mais inexplicável que isso fosse. Graças a isso pudera carregar seu aparelho). Só música para ajudar numa hora como aquela (pena, só tinha uma fita cassete consigo. Morreria de tédio sem todas as outras músicas de sua extensa coleção). Clicou no play e voltou a se deitar, deixando que a música cuidasse de sua mente assustada.

Cantarolava uma canção pop coreana, quando foi surpreendido por aqueles sons, que se fizeram mais altos que sua música (Haruka baixara o volume do walkman até ser apenas uma leve melodia coçando seus ouvidos, por isso escutou aquilo). Ele sentou de novo, olhando em volta para ver se Joseph tinha acordado. Nem pensar, ele continuava roncando. Pausou a canção, envolvendo o pescoço com os fones e guardando o walkman no bolso do pijama, e levantou na ponta do pé. Abriu a porta e deu uma espiada do lado de fora, vendo de relance Tila e a outra menina (se não se enganava, Lua) andando por ali, já no fim do corredor. Ele as viu dobrando a esquina, bem para o lado onde ficava a sala comum que levava a entrada da cabana. O que elas pretendem fazer? Elas não podiam estar pensando em andar por uma floresta no meio da madrugada, não é?!

Pelo sim ou pelo não, Haruka decidiu segui-las.

— Ei, aonde você vai? — Ele se deteve no arco da porta por causa daquela voz. Tomou um susto ao ver Joseph, o cara tinha simplesmente surgido do seu lado!

— Atrás de Lua e Tila. Acho que elas vão lá fora.

— Lá fora? A essa hora? Não é uma boa ideia — avaliou Joseph e teve uma ideia para lá de brilhante. — Vamô atrás delas! Alguém tem que proteger elas!

Haruka só concordou com um aceno de cabeça, e os dois saíram do quarto, apertando o passo para não as perder de vista de vez. Andar no escuro era umas das últimas coisas que gostaria de fazer, mas Haruka não teve muita escolha. Não estou sozinho, vai ficar tudo bem. Lembrou-se do suposto urso de mais cedo e estremeceu. Temos que parar aquelas duas loucas, antes que elas se matem!

O que ninguém viu foi Salen saindo da cama. Ele acordara com sua irmã e Lua conversando, e foi atrás delas quase um minuto depois (ninguém o viu andando no escuro. O pequeno garoto era melhor em se ocultar do que os mais velhos). Depois do que aconteceu no aeroporto, não quero me perder da maninha nunca mais. Essa era uma promessa que ele faria de tudo para cumprir.

#          #          #

Lua não conseguia dormir, não importando o esforço que fizesse. As últimas horas passavam diante de seus olhos, sendo rebobinadas diante de seus olhos a quase todo momento. Tinha a desconfiança de que aquele 01º de janeiro ficaria grudado na sua mente para sempre (falando em desconfiança, Tila não tinha ido com sua cara, e isso deixou Lua meio tristinha).

Por mais maldoso que Albert fosse, ela queria voltar para casa, para sua família. Papai, mamãe, quero ver vocês. Sentiu vontade de chorar novamente, mas se conteve. Tinha que ser grata por estar viva e ter um teto sobre sua cabeça.

Um pouco depois que acordou naquela curiosa floresta de frutas preciosas, encontrou Salen, ele estava chorando e chamando pela irmã sem sair do mesmo lugar (ela tinha omitido a parte do choro na hora que contou aos outros como o achara). Lua o acalmou, emprestando seu ombro para o menino derramar suas lágrimas. Mais tarde, quando ela chorou, foi a vez de Salen a consolá-la. Eles se conheciam a pouquíssimo tempo, porém já se preocupavam com os sentimentos um do outro.

Antes de Tila pegar no sono, Lua conversou com ela. A irmã de Salen era um tanto desconfiada (era superprotetora com o irmão, e isso era motivo o suficiente para ser arredia com ela). Lua não se importou, Tila ia ver que ela era de confiança.

Acendeu o abajur do seu lado e foi escrever em seu diário (que bom que tinha o guardado dentro de sua mochilinha). Apoiou o diário sobre os travesseiros e começou a transcrever o dia turbulento que vivenciou naquele início de Ano Novo. Se escrevesse um pouco, talvez a vontade de dormir viesse.

— O que você tá fazendo?

— Ahn?! — Assustou-se Lua, fechando o diário. — Acordei você?

— Não. Tô sem sono. — Lua achou aquilo equivocado, há pouco ela dormia pesado, roncava até! — Você também escreve diário?

— Esse é o primeiro que eu… espera, você também? — Tila afirmou com um aceno de cabeça. — Oh, que legal. — Segurou seu diário na mão, estendendo na direção dela. — Quer ler?

— Não, dispenso. — Lua recuou de leve com a resposta arisca de Tila. Ela ainda está arredia comigo… Pensou a menina sonhadora um pouco triste. — Quer dizer, é seu, é só pra você ler. Diários são coisas particulares, não é pra ser compartilhado. — Ela ficou aliviada ao ouvir isso. Ela respeita a privacidade dos outros, não é antipática. Só tem um temperamento forte. — Já até sei o que você tá escrevendo aí. O que rolou ontem, né? — Tila adivinhou com um sorriso arteiro.

— Sim… — Lua nem tinha percebido que já passava da meia-noite. Ela acabou de verificar a hora em seu relógio de pulso da Hello Kitty e olhou de volta para a cama ao lado. Tila não estava ali. Ué? Cadê ela? Procurou-a com os olhos e a achou diante a porta do quarto, girando a maçaneta. — Ei, aonde você vai? — Calçou suas mais novas pantufas e foi até a colega de quarto.

— Dar uma geral.

— Mas já olhamos a cabana toda.

— Não a cabana. Lá fora. Na floresta. — Lua estremeceu. Ela é doida? Está escuro, não podemos fazer isso! — Tem árvores de ouro. Você não ficou nem um pouquinho curiosa? Tá na cara que não estamos na Terra (deve ser um mundo mágico ou algo do tipo). — Olhando por esse ângulo, dava água na boca e uma vontadezinha de explorar.

— Espera, Tila, isso não é arriscado? Não vamos nos colocar em perigo se sair andando na floresta no meio da noite?

— Madrugada, mas tanto faz.

— Não sei, não. Acho melhor a gente ficar aqui. — Lua tocou o ombro de Tila. Ela se afastou, livrando-se de sua mão.

— Pode ficar. Eu já volto. — Tila foi para abrir a porta, mas Lua impediu.

— Espera! E Salen? Vai deixar ele aqui?

— Toma conta dele para mim, vou confiar em você para isso. — Ela tentou abrir a porta, Lua continuou segurando a maçaneta. — Sai, por favor.

— Eu vou com você. Vai precisar de alguém para olhar sua retaguarda.

Tila a observou por um tempinho, parecendo avaliar a sugestão dela.

— Você tem um ponto. Vamos, Lua.

— E Salen?

— Vou estar de volta antes dele acordar. — Tila caminhou decidida até a cama onde se deitava o garoto em sono profundo, do outro lado da cama dela. Lua observou a outra beijar a testa do menino; aquele gesto aqueceu o coração de Lua. Queria ser assim com Albert. Talvez em outra vida. Enxugou uma lágrima que já principiava descer dos olhos. — Já volto, irmãozinho. Fica quietinho, até eu voltar, ok?

— Não seria melhor trancar a porta?

— Eu não vi nenhuma chave por aqui. Vamos só deixar encostada. — Lua escutou a instrução de Tila, fechando a porta a suas costas depois que elas saíram. As duas rumaram pelo corredor, um breu total, tomando cuidado para não pisar com força e acordar os meninos.

Salen não ia ficar quietinho como a irmã pedira. Ele também estava curioso em relação aquele bosque anormal, fora que estava preocupado com Tila (e não queria mais se separar dela). Vou com você, querendo ou não, maninha. Ele fez bem em ir. Seu intelecto seria muito necessário para o que estava para acontecer.

#         #          #

Tila e Lua levaram lanternas em sua empreitada, só as acendendo na sala que dava na porta de entrada (Tila tinha levado mais duas lanternas, só por precaução). Além do relógio da Hello Kitty e do prendedor de cabelo que Lua pôs antes de sair, elas não tinham muito mais que a roupa do corpo. A dupla descobriu que as lanternas eram inúteis assim que saíram porta afora.

A floresta era um mar de luzes — luz dourada, prateada — que rasgavam a escuridão, reluzindo numa linda confusão de cores preciosas. As flores e frutos nas árvores e arbustos agora pareciam joias de verdade, o céu era uma manta azul, violeta e verde costurada com números que se passavam por estrelas, dando o toque final de iluminação na noite.

— Que bom que tive a ideia de vir aqui fora — desabafou Tila.

— É… — Suspirou Lua.

— Caraca! — Tila virou com os punhos já erguidos, pronta para socar quem quer que fosse. Mas era só Haruka e Joseph, que sorriu que nem um lesado. — Muito animal, meu! — Fora ele a falar agora pouco.

— Oi, gente — disse Haruka sem graça.

— O que fazem aqui? — quis saber Tila.

— A gente seguiu vocês, querendo saber o que iam fazer — Joseph respondeu confiante. Tila ergueu uma sobrancelha, virando para a colega de quarto.

— Se bem me lembro, não convidamos vocês para vir conosco, não é, Lua?

— Qual é o problema da gente sair? — Joseph retrucou um tanto petulante. — aru

Não precisamos ser convidados por ninguém! Somos donos do próprio nariz!

— Joseph, calma. Nós só ficamos preocupados, Tila. Estamos sozinhos numa floresta. Quem sabe o que pode haver nesse lugar? — Haruka tentou apaziguar a situação, mas Tila resolveu dificultar tudo.

— Eu me garanto.

— Não é seguro pra nenhum de nós ficar andando por aí. Vamos entrar — Haruka aconselhou, a paciência começando a se apequenar.

— Se alguma coisa vier, dá pra gente ver. Vamos ficar bem. — Tila começou a puxar Lua para longe deles.

— Vamos com vocês, então — disse Haruka, persistente.

— Sai, garoto. Não preciso de guarda-costas. — Tila o empurrou de leve. Ele quase perdeu a paciência com a atitude dela.

— Não seja teimosa!

— Tem certeza que não quer proteção, meu bem? — Joseph chegou perto, piorando a situação. — Não que eu fosse proteger você.

— Joseph! — Haruka ralhou com ele. Lua só olhava para eles, mordendo os dedos, tensa. Se continuar assim, eles vão se agredir! Isso era apavorante, mas o que ela poderia fazer para impedi-los?

— Como se eu precisasse de algo de você! — Tila empurrou Joseph com força, jogando-o sentado no chão. Como Lua temia, eles começaram a brigar. Haruka foi para separá-los, quase levando um soco de Joseph; ele e Tila se batiam. Lua olhou em volta, por um momento se esquecendo de que não adiantava procurar por ajuda. Foi nessa que ela o viu. Salen estava ali, olhando temeroso para a irmã e Joseph (Haruka levou um soco de Tila ao tirar Joseph do trajeto do punho dela).

Lua segurou na mão de Salen e berrou:

— GENTE, PARA. — Conseguiu fazê-los parar e ainda olhar em sua direção. Tila levou um susto ao ver seu irmão. — Estão assustando ele!

— Salen? — disse Tila receosa.

— Vamos entrar, maninha — pediu o mais novo do grupo (Lua quase derreteu ao ver aquilo. Salen era muito fofinho!). — Estamos num lugar claramente sobrenatural. Não quero que nada de ruim aconteça contigo.

E não acontecerá. — Todos correram para perto um do outro, formando um círculo e olhando para tudo ao redor (a voz tinha simplesmente surgido no ar!).

— Quem disse isso?! — perguntou Joseph, tateando aqueles que o cercavam (Tila estapeou sua mão).

— Não fui eu — afirmou Lua, engolindo em seco.

— Quem é você? O que quer de nós?! — inquiriu Tila, dando um passo adiante. Haruka a puxou pela barra da blusa do pijama de volta para trás.

— Ai, meu Deus, a gente vai morrer! Eu era para ter ficado lá dentro! — esperneou Lua. Tila olhou preocupada para seu irmãozinho. Ele observava os elementos no local com olhos frios, averiguando a situação. Nada para se preocupar. Ele era bem meticuloso, principalmente em momentos assustadores. Por isso ele conseguia ver filmes de terror sem piscar e Tila via com as mãos na cara (não conte isso pra ninguém).

Está tudo bem, eu não lhes farei mal — a voz voltou à tona, ecos de bálsamo aos seus ouvidos. — Estou aqui para ajudá-los no percurso de sua missão.

— É isso… eu tava certo! Eu vou viver minha primeira aventura, eba! — Do nada, Joseph se empolgou. Os outros fizeram cara de tacho para ele, e Salen comentou:

— Eu entendi missão, não aventura.

— Por que diz isso? O que quer que façamos? — perguntou Haruka, perguntando-se se a dona daquela voz (claramente uma mulher) não teria a ver com eles terem sido trazidos para ali. Onde quer que seja “aqui”.

— Seja lá quem for, não vamos fazer nada pra você. — Tila se empertigou, com direito a dedo indicador apontado em direção ao céu. — Você vai nos levar de volta, ouviu bem?

— Acho que não estamos na posição de exigir nada — aconselhou Haruka, e a voz voltou a se fazer presente:

Acalmem-se, crianças. Fui eu quem os ajudou. Essa cabana, toda comida, fui eu quem providenciou tudo isso. Seu bem-estar é importante para mim, assim como seus bons corações. Também fui eu quem os trouxe para cá, por que esse mundo precisa ser salvo, assim como o seu.

— Foi você que sequestrou a gente? Cai dentro, safada! — Joseph comprou briga, apesar de estar tremendo de medo dos pés à cabeça. Tila revirou os olhos para ele. Idiota.

Não foi sequestro. Suas presenças foram solicitadas, por isso os convoquei para cá através do Portão Perdido. — Não importasse o que aquela mulher dissesse, Tila não cairia no papinho dela.

— Apareça e nos conte o que sabe. Por favor. — Tila não soube o que seu irmão fez (a voz meiga, talvez? Eram poucos que resistiam à doçura dele), mas bastou ele pedir uma única vez que a mulher misteriosa deu às caras.

O ar tremulou e uma silhueta brilhante nívea surgiu para as cinco crianças. Ela parou de reluzir e eles se viram diante de uma jovem mulher vestindo branco do pescoço aos pés — o vestido rodado com decote, a calça legging, as luvas, as botas de couro com fivelas (Tila se apaixonou por essa parte do look), o laço que atava os longos cachos de seus cabelos azul-glaciais. Suas feições são orientais (parecia mais oriental que Haruka, na opinião de Tila), seus olhos são do verde de prados vívidos e a pele dela é da cor de nevasca. Ela parecia brilhar, emitindo luz própria (isso fez os olhos de Tila arder. Quanto mais escuro para ela, melhor). Os lábios da mulher — pintados de um azul quente — se curvaram num sorriso gentil e ela se apresentou, exalando amor a cada palavra (Eca, pensou Tila enojada):

Eu sou Lírian, o Perdão de Prata. O Segundo Oráculo de Okgeiden, o Mundo Digital, mais conhecido como Digimundo — a voz dela continuou moldada em ecos, mas agora eram ecos mais próximos. Alcançáveis. Ela é tão real. Pensou Tila, franzindo as sobrancelhas. Dá até pra acreditar que ela é de carne e osso que nem nós.

— O que é o Digimundo? — quis saber Salen. Cheio de perguntas. Esse é meu gêniozinho. Pensou Tila orgulhosa.

É onde estamos agora. Essa é a Floresta do Cântico, localizada em Rokudokhi, o maior continente desse planeta — respondeu Lírian. — Estamos num dos poucos lugares livres do jugo de Aíria. Muitas partes do Digimundo foram tomadas pela escuridão da crueldade de Aíria, e a cada dia meu povo chora e sucumbe ainda mais, sendo corrompidos pelos poderes dela ou morrendo por não ceder ao domínio do mal. Se o Digimundo for inteiramente corrompido, o próximo alvo de Aíria será a Terra. A grande ambição dela é controlar ambos os mundos, ter todos aos seus pés. Ambos os mundos, o Real e o Digital, precisam ser salvos. Atualmente, Aíria é o ser mais poderoso dos dois mundos, não pode ser parada nem por exércitos inteiros.

Aquela notícia caiu em cheio na cabeça das crianças — Haruka precisou até sentar, acomodando-se em uma pedra de esmeralda gigante ali perto.

— Já era, então — disse Joseph, se jogando na grama dourada do bosque. Lua sentou no chão, abraçando o próprio corpo, testa encostada nos joelhos.

— Quem é Aíria? Por que ela é tão poderosa? — quis saber Haruka, ainda sentado. Os irmãos Gewandsznajder eram os únicos que se mantinham de pé.

Ela é o Primeiro Oráculo do Digimundo, minha irmã mais velha. — Lírian parecia se compadecer do temor deles. Tila pensava se ela não estava fingindo se preocupar. Ou pior: mentindo para acreditarem que ela não pretendia fazer coisas horríveis com eles. Não parece mentira. Eu sinto algo vindo dela. Algo de bom. Estranho, mas não tão estranho levando em conta as bizarrices de ultimamente. Mesmo para a incrédula Tila Gewandsznajder, aquilo tudo era inexplicável demais. Real demais. Ela engoliu em seco, desejando pela primeira vez estar sonhando, não acordada. — Por causa de uma contenda muito antiga, o coração dela foi tomado por um ódio profundo e agora ela está se vingando. E sua sede é de morte e vingança sem medidas.

— Vamos todos morrer? — perguntou Lua, a cara amarrotada de lágrimas.

Não irão se ouvir o que tenho a dizer. Há uma forma de impedir Aíria.

— Como? — Salen permanecia calmo (Tila ficava perplexa como ele era capaz de ficar calmo até quando não devia ser mais possível. Como naquele momento).

— Ei, você não está inventando essa história pra justificar nosso rapto e nos jantar depois? — Tila tinha cansado de ficar quieta. Tinha cansado daquela palhaçada toda. — Oráculos comem criancinhas, por acaso?

— Tila! Perdoe-nos, senhora Lírian, minha irmã está assustada com tudo que está acontecendo — desculpou-se Salen no lugar de Tila. Essa mulher não sabe o que é sentir raiva, não? A garota pensou desacreditada. O Oráculo continuava com aquela carinha amável irritante. — Como Aíria pode ser detida?

Por vocês.

— Nós?! O que-? — Joseph tropeçava a cada palavra.

Vocês foram escolhidos pelos Nigmas Sagrados, os guardiões do equilíbrio do Digimundo. Vocês possuem o brilho do Digicódigo, a energia da vida e do poder de todos os seres digitais. São os primeiros humanos no universo a mostrarem esse lindo esplendor, os primeiros seres vivos que detêm alma com Digicódigo a existirem. Os únicos capazes de suportar o poder atual dos Nigmas Sagrados, que jamais estiveram tão poderosos. Eles se encontram adormecidos no momento, repousando em cristais na Cidade dos Princípios, em Kosumos, onde a vida de todos os Digimons tem início (Digimons são os animais mais desenvolvidos de Okgeiden, dotados da Digievolução, capazes de mudar de forma para se adaptar de acordo com a situação.) Os Nigmas, que são Digimons Primordiais, são os únicos capazes de parar Aíria, e vocês são os únicos capazes de suportar e usar o poder deles no máximo. Eu os levarei a Ilha Kosumos — contou Lírian toda paciente, como se ser paciente ajudasse em alguma coisa. — Sosseguem, Crianças Escolhidas, eu irei protegê-los.

— Nós o quê? — a voz de Haruka saiu esganiçada.

— Não, não, nem pensar. Somos humanos comuns, não Digimons ou o que quer que seja — protestou Tila, segurando na mão de Salen. — Temos que voltar pra casa, nossas famílias devem estar loucos com nosso sumiço. — Tentou sair andando, mas seu irmão não moveu nem um músculo. — Vem, Salen!

Quanto a isso, não tem com o que se preocupar. Não passou nenhum momento na Terra. Pedi a minha outra irmã, Nírian, que paralisasse o tempo em seu mundo. Ser monstro é outra coisa. Tila também gostaria de parar o tempo, só para jogar RPM Racing milhares de vezes e ouvir músicas de todas as bandas de rock que existem até não poder mais. — Assim que retornarem para lá, a normalidade será restaurada.

— Moça, não podemos ajudar. Não dá. Somos humanos comuns, crianças incapazes de fazer magia. E mesmo que a gente tenha esse tal de… — Lua tentou argumentar.

— Digicódigo… — ajudou Salen.

— Digicódigo… — Lua continuou tentando argumentar. — Não sabemos como usá-lo. Se sua irmã já fez tanto estrago, não vai dar tempo de aprendermos a usar nossos poderes.

— Vocês têm os Nigmas Sagrados a seu lado. Eles os protegeram e vocês os guiarão. Juntos, suas forças serão inimagináveis. — Aquilo não convenceu muito a Tila, mas ela preferiu não dizer nada.

— Ter poderes inimagináveis. É, gostei. Maneiro à beça! — gritou Joseph. Nem parece o covarde de um segundo atrás.

— Se tem uma forma, por que não nos mostra, Segundo Oráculo? Estou curiosa para ver o que acontece — provocou Tila. Se essa mulher estiver mentindo, essa é a hora perfeita para ela nos fazer em pedaços.

— Eu não tô. Quero ir pra casa — choramingou Lua, voltando a enterrar o rosto nos joelhos.

Muita vontade é mandá-los para casa, acreditem. Mas se eu fizer isso, em breve as vidas de todos nós serão de Aíria. — Lua voltou a olhar para Lírian. — Os Nigmas são nossa única esperança, e vocês são a única esperança deles. Não se deixem levar pelo desespero, Aíria não conseguirá pôr uma mão em vocês enquanto permanecerem unidos aos Nigmas. — Com aquela confirmação final, qualquer desconfiança que as crianças tinham caiu por terra. — Aproximem-se. — Como se hipnotizados, as crianças se acercaram do Oráculo. — Estendam suas mãos, por favor.

— Por quê? — quis saber Tila, sem abrir mão da desconfiança, mas ainda assim abriu a mão à frente do corpo. Ela esperou por muita coisa (até que Lírian fosse cortar os dedos deles e passar na manteiga e comer), mas não por aquilo.

Esferas de luz concentrada surgiram do nada flutuando sobre as palmas abertas de Tila, Salen, Haruka, Lua e Joseph — cada esfera de uma cor, a de Tila era prateada —, causando espanto em todos. As esferas foram encolhendo e afinando, até pararem de brilhar. Em poucos instantes, eles estavam segurando aparelhos estreitos de formato retangular que eram mais tela do que qualquer outra coisa (tirando por dois botões laterais, não tinha mais nenhum). [Se conhecessem os futuros smartphones, não teriam ficado tão surpresos com aqueles aparelhos peculiares não tão peculiares assim. Apenas um pouco futuristas]. Eles eram cobertos por símbolos intricados que pareciam formar palavras (opinião de Salen, Tila, Haruka e Lua) para uns e só um amontoado de rabiscos simpáticos para outros (opinião de Joseph). O aparelho de cada um era único, com detalhes diferentes entre si, apesar de serem muito parecidos — os formatos era a mesma coisa retangular com muita tela e pouco botão, os símbolos de efeito gradiente.

O aparelho de Haruka era todo branco com símbolos em algo entre vermelho-vivo e violeta-gelo (os símbolos eram cercados por círculos de pequenos cristais reluzentes — os círculos pareciam explosões solares mescladas a ondas de geada, com direito a flocos de gelo e tudo. Aquilo eram fragmentos de diamante de verdade?!). Ele leu no topo da tela a palavra “Chain’relk” em letras brilhantes como um arco-íris confinado em partículas de diamante (os nomes escritos nos aparelhos de todos tinha o mesmo efeito 3D).

O de Tila era inteiramente amarelo-canário (amarelo, sua cor favorita, uma cor menosprezada por muita gente) com símbolos metálicos compreendidos em miniaturas de tufões e lâminas de espadas de cristais coralinos (âmbar?). “Souruki”, a palavra estranha que ia no topo da tela do aparelho.

O de Lua era de um azul mais escuro que o manto da noite, todo marcado com símbolos em verde-seiva e cor de areia dentro de folhas e picos de montanhas entrelaçados por galhos feitos de fragmentos de esmeralda (Lua não tinha dúvida de que eram safiras de verdade. Agora, acreditava que tudo era possível). No topo da tela, tinha escrito “Iania”. O que será que isso quer dizer? Será que é o nome do meu Digimon?

O de Joseph era escarlate e repleto de símbolos azuis imiscuído em tons de dourado que preenchiam as gotas d’água e os relâmpagos que cobriam o aparelho (as gotas e os raios eram fragmentos de turquesa. Ao menos, parecia com as pedras de turquesa que o pai lhe mostra uma vez em fotos). No topo da tela, aquela palavra bizarra — “Mizart”.

Por último e não menos importante, o aparelho de Salen. Esse era de um rosa-choque profundo, cheio de símbolos negros e brancos (nas partes que as duas cores opostas se encontravam, choques de cinza purpurizado) em setas grandes e pequenas feitas de pedacinhos de ametista. O nome Gaihu marcava o topo da tela (Salen sentia que aquilo era um nome). Deve ser o nome da divindade que me representa. O Nigma que me representa. Pela breve descrição dada por Lírian, era evidente que os Nigmas Sagrados se tratavam de criaturas lendárias. Deuses Digimons, suponho.

Esses são seus Digi-vices, os itens que garantem a Conexão entre um Digi-escolhido e seu parceiro Digimon — informou Lírian, após deixar os Digi-escolhidos olharem bem para os protótipos de smartphones. Os Nigmas são os Digimons Primordiais, vai funcionar perfeitamente.

— Que parada mais engraçada, mano — disse Joseph, descobrindo que seu Digi-vice se dobrava ao meio, ficando do tamanho de um quadrado que cabia na palma da mão (um ponto ótimo. Dava para enfiar no bolso e não pesava nada!).

Retornem a cabana agora. Partiremos daqui a algumas horas. Até o amanhecer, Crianças Escolhidas — despediu-se Lírian, sumindo no mesmo brilho branco em que surgira.

Chega do nada que nem uma alma penada, fala um monte de abobrinha e depois some sem mais nem menos. Que recepção calorosa. Tila não fora com a cara daquele oráculo e não sabia se iria com a cara de alguém além de Haruka e Lua (Joseph estava fora de questão, e Salen era quase uma extensão sua, nem entrava na contagem). Diferente daquele trio de pamonhas, tinha a forte suspeita de que não retornaria a Itália por um bom tempo (ela sabia que Salen compartilhava da mesma opinião, por causa do comportamento travado dele com os outros). Foi mal, vovô Teles. Espera um pouco que a gente logo, logo tá de volta, ok? Sentia que estava mentindo para ela própria, mas se essa era a única forma de se animar, iludiria a si mesma com palavras de conforto.

Novamente na cabana, eles foram caçar o que fazer até o sono vir. Fora Joseph, que foi desmaiar no quarto, os outros se juntaram no quarto das meninas e ficaram conversando por um bom tempo. Eles estavam muito nervosos (e assustados, principalmente por Lua e Haruka), imaginando como seria o dia seguinte, o que estaria aguardando por eles. Claro que o grupo ligou os Digi-vices (menos o de Joseph, por mais que Tila tenha quase caído na tentação), explorando os dispositivos eletrônicos de cabo a rabo — mesmo com a escassez de botões, eram mais complexos do que qualquer aparelho que já tinham mexido ou sonhado em mexer. Nigmas Sagrados, né? Tila sentia cheiro de mistério, perigo e emoção sem limites ao pensar nisso (ela tinha lá suas desconfianças de que poderiam morrer nessa porcaria de aventura).


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Notas finais do capítulo

E é isso. Espero que tenham gostado. Vemos vocês daqui a uma semana! (Promessa, sério) Corações e beijos pra vocês S2S2S2



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