Esvaecer escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo Único




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— Minha primeira memória? — Ele pensou por alguns segundos antes de continuar. — Solidão. É, com certeza foi a solidão. Eu tinha o quê? Uns quatro ou cinco anos? Quando é que a gente começa a se lembrar da vida? Ah, não importa. Eu tenho esses lapsos, essas imagens. Eu, enquanto criança, sozinho em casa. Foi do nada, entende? Meus pais estavam lá e eles estavam bem. Entretanto, de um instante para o outro, os dois simplesmente desapareceram. Fiquei sem entender e comecei a sentir um profundo pânico. Não havia ninguém para me acalentar e eu estava condenado à solidão eterna.

— Uau — ela tinha uma empolgação que contrastava com as dores expostas pelo rapaz. — São palavras um tanto quanto pesadas para serem pensadas por uma criança.

Eles estavam se encontrando pela terceira ou quarta vez. Não era um encontro comum, ou ao menos não do tipo que você está acostumado. Quinze anos se passaram desde o Esvaecer e as regras sociais haviam se transformado. Ao invés de compartilharem a mesma mesa e se olharem diretamente nos olhos, havia uma clara separação. Entre eles, uma manta de vidro impedia que se tocassem. Além disso, o restaurante não tinha tantas mesas quanto o espaço permitia. Para evitar qualquer contato físico, quatro mesas se espalhavam por um espaço de cerca de 20m². Não sabe mensurar o quanto isso representa? Eu ajudo: é muito espaço, simples assim.

De qualquer forma, estavam acostumados. Nas outras três mesas, três casais também trocavam as primeiras ou últimas ideias, dependendo de como o relacionamento andava. O cardápio? Uma mesa digital, sendo as comidas entregues por garçons que apareciam com roupas que cobriam o corpo inteiramente. É, não havia espaço para falhas e o mundo já havia aprendido a lição.

— É claro que eu não pensei nessas palavras, mas a dor é a mesma, não? — o rapaz prosseguiu. — A criança que chora não difere em nada do adulto que se desilude. Talvez sejamos apenas isto: bebês em uma bola gigante que se chama Terra. Enfim, onde eu estava mesmo? Ah, a solidão. Levou um tempo, mas finalmente os homens do governo apareceram. Eu achava aquelas roupas amarelas assustadoras, principalmente pelas máscaras. Chorei e me escondi, mas eles logo me acharam e me levaram para fora de casa.

— E então você foi direto para o orfanato estatal — ela deduziu.

— Exato. Levou um tempo, mas eu entendi: o Esvaecer tinha acontecido — ele parou mais uma vez pois o garçom havia chegado.

Com dois pratos nas mãos, deixou cuidadosamente um em cada lado da mesa. O rapaz e a moça começaram a comer vagarosamente, enquanto vez ou outra trocavam tímidos olhares.

— Foi tudo tão louco — ela dizia com certa leveza. — Eu tive sorte, sabe? Minha mãe descobriu a questão da letalidade do Toque antes que algo pior acontecesse. Mas imagine a dificuldade de explicar para três que crianças que elas nunca poderão ter contato físico com qualquer outro ser humano que seja?

— Isso explica os arranhões — o rapaz apontou para as marcas no braço da garota.

— Ah, isso? — Com o braço levantado, ela sorriu. — Pois é, eu troquei os abraços de mãe pelos dos gatos. Nem todos são simpáticos, mas ao menos eu consigo sentir algum calor. É o que as pessoas mais sentem falta, não acha? O calor.

— O calor?

— Sim, o calor de um abraço, de um beijo. O calor do simples Toque, não sei — ela se conteve por um instante. Parecia ter certo medo de prosseguir com sua ideia. — Você não sente falta de tocar nos outros? Quer dizer, você viveu parte da sua vida cercado de dezenas de crianças, mas ainda assim um tanto quanto isolado.

— Ah! — Apesar de falar com certo desdém, havia uma porção de dor nos olhos dele. — Eu acho que eu me acostumei. Quer dizer, faz parte da existência, não? Nós temos que evoluir, temos que sobreviver.

— Evolução? Acha mesmo isso? — Ela questionou.

O garoto ficou em silêncio. Parecia meio incomodado com aquela pergunta, mas tentou esconder a todo custo. Mais afastado da mesa, uma TV mostrava as notícias. Com o corpo inteiramente coberto, um repórter falava sobre os processos de desenvolvimento de humanos em laboratório. Isso era óbvio: sem Toque, sem sexo. Para nascermos, precisávamos de um novo meio. As novas crianças não tinham mais pai ou mãe, mas eram filhas do Estado.

— Existe uma evolução, você não vê? — ele insistia, forçando um sorriso e uma crença que não os pertenciam. — Parece haver uma certa união nessa separação. E a gente vai escapar. Quer dizer, já se passaram quinze anos e não fomos extintos. Já é um começo!

— Escapar? — A garota foi jocosa. — Por favor, Victor. Nós vivemos nesse mundo e ele é o que é. Não tem como fugir do inevitável. O Toque, a morte... essas coisas vão acontecer cedo ou tarde. Eu não acho que essa noção de progresso ou evolução é realmente boa. Talvez o melhor seja simplesmente assumir que algo nos falta e, a partir daí, tentar trabalhar para ter uma vida melhor. Não acha? Até porque, para ser sincera, a gente não sabe realmente o que acontece após o Toque. Talvez as pessoas não morram, mas só sejam transportadas para outro lugar? Não dá para ter certeza.

— Sério isso? — Victor não escondeu a irritação. — Se você realmente acredita nisso, por que não dá uma passadinha na Igreja do Toque? Aqueles malucos incentivam o povo a ficar encostando uns nos outros. Eu não sei como o governo permite que eles ainda funcionem.

— Talvez haja uma questão paradoxal aí — ela limpou a boca com o guardanapo. — Eu valorizo o Toque, mas não vou querer esvaecer do nada. Ainda tenho uma vida para viver. Eu assumo as dores e vivo com o que tenho, sem demagogia. O que a igreja faz é pegar o dinheiro de todo mundo e prometer algo que não pode cumprir. E aí um estranho se encontra com o esquisito, eles se abraçam e ambos desaparecem. E então o Bispo do Toque fica com as duas contas bancárias. Não, eu não sou tão idiota para apoiar isso.

— Mas qual a diferença, Lilian?

— A diferença? — Lilian escutava com atenção e pensava muito bem antes de responder. — A diferença é que eu abraço a dúvida como uma amiga e não um monstro. Eu não tento derrotá-la, tento integrá-la. Faz parte da vida, Victor. E assim, eu acho que assumir o malefício da coisa, sem um otimismo falso, é mais benéfico que prejudicial. Sem exageros, simplesmente aceitando a vida como ela é.

Pensativo, o rapaz não teve tempo para responder. Poucos segundos depois da moça falar, um sino tocou intensamente dentro do restaurante.

— Ah, droga — Lilian reclamou enquanto se levantava. — Eu realmente estava gostando da conversa.

Victor apenas sorriu e se levantou. Acenou para a garota e se despediu. Saíram cuidadosamente juntos dos outros casais. Do lado de fora, uma fila – como cada pessoa muito bem separada da outra – aguardava a vez de usar o Restaurante do Amor, como era chamado. Moça e rapaz foram para lados distintos.

Ele atravessou parte da cidade por cerca de trinta minutos. No caminho, encontrou um cenário já bem conhecido: ruas desertas e, das poucas pessoas que caminhavam, muitas usavam roupas em excesso. Pernas, braços e até mesmo os rostos estavam cobertos. Caminhando como trabalhadoras de uma zona com alta radiação, elas se afastavam de qualquer um que pudesse se aproximar.

Durante a caminhada, além do vazio populacional, Victor encontrou ruas limpas e uma ausência quase total de pobreza. Alguns sociólogos da época já haviam explicado: o Suicídio via Toque era uma opção simples e não costumava ser ignorada, sendo a alternativa mais adotada por famílias extremamente pobres (e aqui me refiro a moradores de ruas, por exemplo) e pessoas depressivas. Com a mente a mil, o próprio rapaz se questionava se aquilo realmente poderia se enquadrar como “suicídio”. Porém, não obteve resposta alguma.

Caminhou mais alguns metros e fez uma curva fechada. Em um dos becos, um homem de terno falava alto:

— Venham sentir calor humano! É como se fosse real!

Não era a primeira vez que Victor aparecia ali. Era como um vício, mas um daqueles que se tem vergonha de dizer. Foi até o homem de terno e, estando a uns dois metros de distância, acenou.

— Ah, você! — O empreendedor parecia animado. — O de sempre?

— O de sempre — Victor respondeu enquanto tirava um cartão do bolso.

Encostou o cartão em uma máquina e, com o crédito debitado, o homem de terno permitiu que o rapaz adentrasse a pequena sala ali perto.

— Aproveite! — Recomendou enquanto já olhava para os futuros clientes.

Do lado de dentro, Victor quase não enxergava nada. Era uma salinha pequena e todas as janelas estavam fechadas. Levou um tempo até que seus olhos se acostumassem com a escuridão e ele começasse a ver. Sentiu um certo encantamento quando começou a compreender o que havia lá. No centro da sala, uma aparente mulher estava sentada em uma cadeira.

Victor foi se aproximando lentamente dela. Não costumava andar devagar, mas agora parecia haver um certo respeito na maneira como o rapaz se locomovia. Quando ficou realmente perto, pôde ver o rosto sem vida dela. Não era uma mulher de verdade ou mesmo um ser humano qualquer. Era uma boneca, um simulacro.

Emocionado, o garoto se aproximou dela e lhe deu um tenro e longo abraço. A pele da boneca era feita de silicone e outros materiais sintéticos, dando assim a sensação de uma pele humana real. Havia ainda um sistema que funcionava a base de uma bateria que fazia com que ela emitisse calor, estando sempre a 36ºC. Dessa maneira, a boneca até poderia parecer falsa, mas as sensações que ela trazia – e aqui estamos falando do Toque – era exatamente como a de qualquer outro ser humano, com uma pequena exceção: ela não se mexia. Ah, e você também não morria ao tocá-la.

Isso, talvez, explicasse o sucesso daquele empreendimento. Victor, enquanto abraçava a boneca, sentia-se um pouco mais vivo, um pouco mais amado. Vez ou outra deixava que algumas palavras escapassem de sua boca, como por exemplo:

— Mãe!

É, o amor tinha um preço e era uma mera simulação. Que mundo. Talvez o governo realmente tivesse motivos para proibir serviços do gênero. Especialistas – sim, aqueles “especialistas” que ninguém sabe dizer o nome – falavam que o serviço dos Humanos Artificiais (como eram chamados) era um verdadeiro risco para o país.

— Provocaremos um afastamento humano ainda maior — um desses especialistas falou na TV uma vez.

Victor não se importava: o calor e o suposto amor enxiam seu coração e ele se sentia completo. Ao menos até o momento em que o sino tocava e ele tinha que deixar a boneca para alguma outra pessoa carente.

Saindo da sala, sentia um grande desânimo tomar conta de seu ser. Após o breve momento de alívio, parecia que todo o resto era horrível. As pessoas na rua, o trabalho, o cheiro da vida. Tudo parecia só mais uma desculpa para manter a separação. Ainda assim, ele colocava um sorriso no rosto e dizia para si mesmo que “era o preço do progresso”.

Voltou ao lar. Morava sozinho em um pequeno apartamento. Trancou a porta, trocou de roupa e foi até a poltrona. Sentou-se e ligou a TV. Victor assinava um desses pacotes de streaming. Ele era um fã incondicional de filmes de romance, mas não contava isso para ninguém. Parado, via e revia cenas de filmes marcantes. Naquele momento, para ser exato, assistia uma das milhares adaptações de “Romeu e Julieta”. A cada palavra de amor, abraço ou beijo, o rapaz sentia um arrepio e estranha completude. Era difícil para ele não começar a se imaginar naquelas situações.

Fantasiando, via Lilian a sua frente. Ela era linda: olhos grandes, cabelos longos e uma boca que dava os sorrisos mais lindos desse mundo. Victor se aproximava dela e tocava em seu braço. Sentindo a pele da moça, um calor tomava conta do corpo do rapaz e ele sentia uma explosão de sensações que nunca imaginava serem possíveis. Arrepiado, ele também deixava que ela a tocasse. Com delicadeza, Lilian sentia seu rosto, seu peito, seus braços. E, cada vez mais, um se perdia no outro.

Enquanto sentia prazer e alegria ao pensar nisso tudo, paradoxalmente, Victor se via desolado. O Toque, o beijo e o amor eram apenas ilusão. Ele sabia o mundo em que vivia: os relacionamentos haviam se transformado em bate-papos de redes sociais, em que a coisa que mais importava era concordar com a opinião política do cônjuge. Você apoia aquele partido? Então tudo bem. Está acompanhando a causa dos leitões-dourados do norte da Ásia? Então seguimos firmes. Mas espera, você compartilhou aquela postagem daquele artista idiota? Assim não dá, meu ex-amor. Victor sabia: viramos apenas dados, estatísticas em redes sociais. É, talvez a falta de Toque fosse só a última coisa antes de um apocalipse há muito previsível.

Saiu de seu torpor com uma batida na porta. Olhou para trás e logo adivinhou que ninguém o aguardava. Como de costume, um dos vizinhos sempre dava uma batidinha antes de deixar algum panfleto por baixo da porta. Levantando-se, Victor se aproximou e pegou o panfleto. Seus olhos quase saltaram quando viu o que era: Igreja do Toque. Já havia falado disso com Lilian, mas sentiu uma curiosidade ainda maior quando leu que haveria uma celebração especial. Ela ocorreria no dia seguinte, logo pela manhã. Desocupado, Victor logo tratou de criar um lembrete para ir até tal celebração. Não pretendia esvaecer tão cedo, mas não custava nada conhecer como a coisa toda funcionava, não é mesmo?

E lá estava ele. Trajando um grosso moletom, o rapaz ainda tinha uma parcela de desconfiança. Céus, como não ter? Estava prestes a participar da celebração de uma seita para lá de estranha, sendo ela responsável pela morte – ou esvaecer, como você preferir chamar – de centenas de pessoas. Nervoso, Victor não olhava para os lados, mas apenas para o que havia a sua frente.

O local? Um dos parques da cidade. Se antes era um dos lugares mais movimentados, agora contava com um certo vazio. As gramíneas invadiam as calçadas, assim como as árvores não eram podadas há tempos. De certa forma, a natureza se expandia e o verde ia tomando uma forma cada vez maior em relação ao cinza da grande metrópole. E, no meio daquele paraíso natural, algumas tendas foram levantadas. Bancos de madeira eram espalhados pelo local e, mais a frente, numa posição central, o púlpito.

Não havia paredes ou símbolos sagrados conhecidos. Victor entendia que estava em um território completamente novo, mesmo quando se falava de fé. Ao lado dele, dezenas de pessoas se reuniam em busca de um novo sentido para existir ou simplesmente esvaecer. Uma resposta, um motivo. O rapaz até mesmo se impressionou com o número de presentes: de fato, a Igreja do Toque parecia realmente fazer sucesso.

No púlpito, um homem de terno, cabeça raspada e uma longa barba negra que descia até a altura do peito. Além disso, óculos escuros cobriam seus olhos. Ele parecia uma estranha mistura de CEO com pastor e Victor até mesmo duvidou de sua habilidade de se comunicar com o público. Entretanto, tal dúvida se dissipou quando as primeiras palavras foram ditas. Ao ar livre e sem microfone, a voz do Bispo do Toque saía de sua boca como um trovão, sendo grave e extremamente forte. Mais do que isso: ela trazia um certo calor, um certo cuidado. Era como se uma nuvem de carinho saísse da boca do homem, abraçasse os presentes e, logo em seguida, dissesse que “tudo vai ficar bem”.

— Irmãos e irmãs — o Bispo do Toque começou de forma pouco original, mas os efeitos de sua voz eram fantásticos. — Estamos aqui reunidos para uma celebração especial. Vejo, entre vocês, vários rostos novos. Encho-me de júbilo diante disso. Percebo que, a cada novo dia, mais pessoas percebem que o Toque faz parte da essência do que é ser humano. Vocês concordam com isso?

Em uníssono, os presentes disseram “sim”. Com certa timidez e cuidado, Victor mantinha-se calado, mas concordava com cada palavra que o Bispo pronunciava. Vez ou outra, o rapaz olhava para os lados e tremia ao ver qualquer pessoa se aproximando. Por sorte, o seu moletom estava ali para protegê-lo de qualquer contato.

— O questionamento do século é: o que acontece com as pessoas que esvaecem? Elas morrem? Elas encontram o Senhor do Universo? E, assim como surgem perguntas, muitos aparecem para respondê-la — havia calma e confiança na voz do Bispo do Toque. — Vocês mesmos podem perguntar: “Um monte de gente diz ter a resposta, então por que eu deveria confiar na Igreja do Toque?”. Sabe, eu estava lá. Eu vi minha mãe e meu pai desaparecerem bem diante dos meus olhos, quinze anos atrás. Eu não era nenhuma criança: tinha meus vinte e cinco anos. Sabem o que eu senti?

Silêncio. Victor tinha certeza de que a resposta seria “solidão”, mas manteve-se calado. A curiosidade era maior que a vontade de responder.

— Paz — o homem de cabeça raspada respondeu. — Eu senti paz. Uma paz tão grande que cheguei a me questionar se aquilo era mesmo certo. Meu Deus, todos choravam e gritavam aos quatro cantos sobre como o Toque era mortal. Mas eu não vi assim. Quando meus pais se tocaram, no dia em que tudo aconteceu, eles estavam se reconectando com o próprio ser, com a própria essência. Eles eram casados há anos, mas andavam brigando muito. Aquele Toque foi, antes de tudo, um momento de reunião, integração. Eles, ainda que de forma simbólica, estavam voltando a ser um só, aquilo que o matrimônio verdadeiramente representa. Em meio ao esvaecimento, o desparecimento deles não me pareceu outra coisa a não ser a integração absoluta. A integração final que todo humano precisa. Afinal de contas, no fim não somos um, mas somos tantos em um só espírito. Somos unidos por natureza e, a meu ver, Deus nos dá a chance de nos reunirmos com Ele mais uma vez. É uma pena que andam espalhando que isso é uma tragédia, não uma benção.

“Então por que você não tenta esvaecer para se integrar com Deus mais uma vez?”, Victor questionou em silêncio. Por sorte, tinha alguém mais corajoso que ele para fazer a mesma pergunta.

— E o que você faz vivo? Por que não tocou em ninguém ainda? — Com um tom um tanto quanto jocoso, uma mulher perguntou.

— Ah — o Bispo sorriu. — Essa é uma pergunta maravilhosa. Qual seu nome, irmã?

— Luísa — ela olhou com estranheza para o homem.

— Ótimo, Luísa. Vou explicar tudo para você. Sabe por que eu mesmo ainda não me dei ao prazer de sentir o Toque? — Ele fez uma longa pausa antes de dar a resposta. — Porque alguém precisa anunciar a verdade ao povo. Luísa, entenda: eu me sacrifico todos os dias. Venho aqui falar dos prazeres do Paraíso e o poder divino do Toque, mas eu mesmo não posso aproveitar essas coisas, ao menos não enquanto a mensagem não for passada por completo. Um dia, tenho fé nisso, as pessoas compreenderão e eu serei livre para esvaecer.

Atento, Victor se sentia meio dividido. Por um lado, um grande encantamento tomava conta de seu corpo. O Bispo de Toque sabia mesmo falar e suas palavras eram doces. Entretanto, o rapaz ainda tinha uma grande parcela de desconfiança. Quer dizer, ele sabia muito bem que o homem barbudo era extremamente rico. Além disso, o religioso tinha uma sugestão um tanto quanto suspeita. Por sorte, Victor pôde comprovar isso logo em seguida.

— Vejo olhos de emoção. Vejo lágrimas, fé e, principalmente, verdade. Vocês sabem que esse é o caminho — o Bisco se conectava com cada um dos fiéis. — Acho que esse é o melhor momento para o Toque. Peço que olhem para o irmão sentado ao lado de vocês. Olhem no fundo dos olhos, conectem-se. Então, deem as mãos. E assim, sintam a chegada do Paraíso, a chegada do Esvaecer. Antes disso, porém, uma coisa muito importante!

“É agora!”, Victor apostou. “É o momento do assalto”.

— A frente de vocês, há um pequeno envelope com uma caneta — o religioso prosseguiu. — Nele, peço que escrevam seus dados bancários, senha, todo esse tipo de coisa. Há ainda um contrato de cessão de bens e afins. Por que vos peço isso? Para mantermos a Igreja do Toque viva. Dessa forma, ela pode chegar a novas pessoas e, dessa forma, espalhar a libertação pelo mundo. De onde vocês acham que vieram os panfletos?

O Bispo riu, mas Victor não. Olhando para baixo, viu o envelope e sentiu raiva. Entretanto, ao olhar as pessoas ao redor, percebeu que elas estavam cheias de júbilo e felicidade. Algumas até mesmo choravam de emoção e, com grande fé, escreviam seus dados no envelope para, logo em seguida, esvaecerem com a pessoa ao lado. Foram abraços, mãos dadas e até mesmo beijos no rosto. Ao longo daqueles longuíssimos segundos, Victor testemunhou algumas dezenas de esvaecimentos. Antes de tudo, havia o Toque. Depois de uns instantes, os corpos começavam a ficar transparentes. Por fim, o esvaecimento completo acontecia: as pessoas simplesmente desapareciam, deixando roupas e pertences para trás.

Aos poucos, a grama começou a ficar cheia das vestimentas daqueles que esvaeciam. Quando Victor olhou para o lado, viu um homem em prantos. Ele olhava para o rapaz e, em seus olhos, era possível ler a vontade de esvaecer. Ele estendeu os braços e se aproximou para abraçar Victor. O garoto se afastou com certa agressividade. Aqueles olhos inchados, aqueles braços abertos, simplesmente tudo parecia mais um filme de terror que uma grande ode ao Paraíso. Cheio de medo, angústia e incredulidade, Victor saiu correndo sem olhar para trás.

Nem mesmo acreditava estar no controle: tinha certeza de que seu sistema de defesa, o puro instinto, havia tomado o controle do corpo por breves momentos. Quando voltou a consciência, percebeu que já estava a centenas de metros, talvez até mesmo quilômetros da Igreja do Toque. Ofegante, levou um tempo até processar tudo que viu. Quando processou, começou a chorar como uma criança solitária.

Lá estava ele, um homem, chorando como uma criancinha no meio da calçada da cidade grande. As pessoas ao redor seguiam sua vida: caminhavam, olhavam estranho para o rapaz e simplesmente desviavam dele. Não havia palavra acalentadora ou mesmo abraço. Era óbvio: ninguém desejava a morte, ninguém desejava o esvaecimento. Ainda em prantos, Victor sentiu-se mais só do que nunca. Não existia mundo: só existia ele e o sofrimento que era viver.

Entretanto, algo mudou. Em seu bolso, o celular tocou. Enfraquecido e cansado, o rapaz tirou o aparelho e olhou para ele. Lilian era quem ligava. Ainda ofegante, atendeu a chamada.

— Lilian — falou com dificuldade. Tentava disfarçar tudo que passara, mas não era exatamente um bom ator. — Tudo bem com você?

— Victor, você está bem? — Ela sabia como lê-lo, ainda que a distância. — Você está chorando?

— Não! — Victor respondeu de forma automática. Logo em seguida, arrependeu-se da mentira. — Quer dizer, sim.

Ficaram em silêncio por alguns instantes. Era estranho, esquisito. Victor e Lilian não se conheciam há tanto tempo, mas ela era a pessoa com quem ele mais conversava. O oposto também era verdade. Ela podia não ter tantos traumas quanto ele, mas sentia-se, de alguma forma, em um processo de constante integração com o rapaz. Como já dito: ela sabia lê-lo.

— Vamos nos ver — Lilian determinou com confiança. — Onde você está?

Ele informou a localização e ela habilmente deu um jeito de chegar. Victor mal teve tempo de se perder em seus pensamentos: Lilian já estava a sua frente. Naquele momento, as lágrimas do rapaz já haviam secado.

— E aí? Sentindo-se melhor? — ela questionou e viu Victor assentir afirmativamente com a cabeça. — Ótimo. Agora me conta, o que aconteceu?

— Sabe aquela Igreja do Toque? — Ele começou a se sentir envergonhado. — É, eu recebi um dos panfletos deles ontem de noite. Resolvi aparecer numa dessas celebrações toscas. Olha como estou agora: miserável e ainda mais triste que o normal. Sério, por um momento eu acreditei em cada palavra que o Bispo dizia. Graças a Deus eu despertei. Mas quer saber? Parece que eu estou pior ainda. Acho que nunca vou melhorar e estou condenado a sentir essa solidão eterna.

— Como uma criança de quatro anos deixada pelos pais — Lilian lembrou-se e disse com grande leveza. Ela até mesmo se aproximou de Victor, mas não ousou tocá-lo. — Acho que esse é o preço, não? O preço de viver, de existir, ainda mais em tempos como esse. É aquilo que eu disse: eles dizem ter as respostas, mas não tem nada. Por que não aceitar a incerteza?

— É — o rapaz levou um tempo para responder. Precisava pausar, respirar e se reconstruir. — Só que, ao mesmo tempo, essa incerteza me mata. Eu não sei, tudo me mata. Olho para a solidão e ela me sufoca. Ao mesmo tempo, vou para minha casa e vejo aqueles filmes estúpidos de amor. Fico me sentindo ainda mais sozinho e parece que o mundo inteiro me odeia. Por que eu nasci nesta época? Eu daria tudo para ter existido cem anos atrás. Independente das guerras e das pestes, eu tenho certeza de que eu seria mais feliz e completo.

— Então é isso? Você clama por completude e tem inveja daqueles que viveram em tempos anteriores?

Inicialmente, Victor sentiu um certo ultraje diante daquela pergunta. “Inveja? Esse sentimento é vil, além de ser sujo e pecaminoso”, refletiu por um instante. Entretanto, não podia dizer que Lilian estava errada. Na verdade, ela estava extremamente certa. Sim, ele tinha inveja de quem veio antes. Tinha inveja de quem viveu em um mundo “normal”, onde as pessoas podiam se conhecer, podiam demonstrar amor, raiva ou qualquer outra coisa que fosse através do simples Toque. Agora, ele sentia como se vivesse numa prisão. Pior: apesar de ter crescido nessa realidade, sentia-se como se não pertencesse a ela. Era uma ovelha no meio da alcateia.

Olhando no fundo dos olhos de Lilian, ele acreditou que aquele era o momento. Ela estava em silêncio e seguia olhando para ele. Com tanta dor e sofrimento, por que não buscar alguma felicidade? Victor se aproximou, fechou os olhos e fez menção de beijá-la. Entretanto, nada sentiu. Lilian havia se afastado rapidamente.

— Todo mundo está ferrado até o pescoço — a moça não economizou verdades. O rapaz abriu os olhos com claro desapontamento. — Todos nós nascemos, crescemos e morremos. A morte está gravada no nosso DNA e a história humana está cheia de desgraça. O maior símbolo da cultura ocidental é um homem pregado numa cruz. Não quero fazer uma pregação aqui, mas se segura, Victor. Você não é o único a sofrer. Todos são condenados a existência. E sabe, eu realmente não tenho medo do Toque. Sinceramente, eu até poderia beijar você agora mesmo, mas sabe por que eu não faço isso? Porque eu sinto no fundo no meu coração que eu ainda tenho algo para contribuir nesse mundinho azul. Sinto que minha presença ainda tem uma função e sei que ainda posso ser feliz, independente de todas as desgraças.

Boquiaberto, Victor não sabia o que dizer. E nem precisava, pois Lilian prosseguia:

— Então assim, o que você quer? Quer simplesmente sentir o Toque e torcer para se dar bem? Porque você já sabe o que penso: eu acredito na dúvida. O Toque talvez liberte e talvez seja uma boa experiência para se ter com quem você está conectado. Mas não é algo que quero, não agora. Eu quero viver. É um mundo frio, com pessoas distantes e coisas estranhas acontecendo o tempo inteiro? Sim. A questão é: sempre foi assim. Distanciamento, sofrimento e morte são constantes. Você não é especial por viver nessa realidade, Victor. Você é simplesmente humano.

O rapaz sentia-se cada vez menor. Agora podia enxergar o que de fato era: uma criança imatura de frente para uma adulta que lhe ensinava sobre a vida. Tinha consciência: sentia falta do calor humano, mas usara desculpas demais ao longo do tempo para não viver de maneira plena. Era fraco e, talvez pela primeira vez, assumisse isso de forma verdadeiramente sincera.

— Você quer esvaecer? Então vá lá para a Igreja do Toque e faça o que aquele Bispo maluco pede — Lilian não havia terminado. — Mas não conte comigo para isso. Ou você pensa que eu não sofro? Meus pais podem não ter esvaecido, mas morreram de causas naturais. As doenças, pestes e tudo mais continuam existindo. Então não pense que o mundo acabou, a roda ainda gira. A diferença é só como a gente vai reagir. Eu decidi fazer algo e acredito que você também é capaz. Mas você é capaz de confiar em si mesmo? O que me diz, Victor? Existe esperança para você ou vai ficar atolado nessa lama de autopiedade?

Depois daquela surra moral, o rapaz se sentiu ainda mais desnorteado. Mais do que nunca, dúvidas inundaram sua cabeça. Elas, no entanto, não mais se reduziam a questões do Toque e da existência pós vida. Agora, Victor se preocupava com o que poderia fazer de útil hoje. E, aos poucos, ele sentiu que poderia respirar aliviado. Ainda agradeceria imensamente a Lilian pela recusa do beijo.


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