Shadow of the Colossus - O Guerreiro e a Entidade escrita por PZero


Capítulo 4
Caçada




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Após seu encontro proibido com Mono, Wander retornou a Eelry já prevendo seu próprio fatídico destino. O rapaz foi levado diretamente ao líder dos sentinelas de Emon, e lá foi friamente julgado pelo roubo de um dos cavalos direcionados aos guerreiros do vilarejo, e por causar grande confusão ao atravessar os portões sem motivo. Os Tsa’hik sempre foram um povo simples cujos costumes traziam sua maior essência. O nível de organização da tribo poderia ser considerado duas ou três vezes maior que o de uma comunidade comum do mesmo tamanho, e todos os outros povoados da região reconheciam isso. Tratava-se de algo repassado por gerações através dos anciões de Eelry, e por isso a palavra do xamã sempre sobressaía qualquer opinião ou ato de rebeldia. Além de colocar em risco a própria vida, Wander causou danos a equipamentos valiosos, e isso era imperdoável. Após ser praticamente humilhado diante de todos os sentinelas, Kuba, e até mesmo Skjor, o rapaz fora permanentemente proibido de realizar trabalhos nos estábulos, visto que a proximidade que teria dos animais poderia representar um risco à integridade dos mesmos; isto, é claro, de acordo com o líder da guarda do vilarejo. Como Wander ainda vivia com Kuba, não havia como tomarem a decisão de o jovem também deixar seu próprio lar... Mas o mesmo fora avisado que se algo do tipo se repetisse, uma punição maior seria aplicada, e o ruivo certamente seria expulso de lá. Skjor; como o superior responsável por seus caçadores, decidiu que aplicaria o corretivo de Wander, e sendo assim, o rapaz fora amarrado nu a um poste isolado durante boa parte da madrugada, onde recebeu banhos de água fria e varetadas por todo o corpo por cerca de uma hora e meia. Punições como esta sempre foram comuns dentro dos costumes dos Tsa’hik... Mas Wander nunca passou por uma tão intensa; ainda mais vinda de Skjor.

Três longos dias se passaram. Graças ao erro cometido, além de não poder mais cuidar dos cavalos ao lado de Kuba, Wander foi obrigado a prestar serviços diretamente aos sentinelas de Emon durante as noites, o que fez com que o rapaz não conseguisse mais sair escondido para seus encontros com a misteriosa garota de branco. Ás vezes o ruivo se pegava cantando a mesma melodia que ela o agraciara de ouvir dias atrás, sempre mantendo um tom baixo e tímido para não chamar a atenção de ninguém. Wander se lembrava perfeitamente de suas expressões e da linda voz que viajava até sua alma; havia momentos em que era algo tão vívido, que parecia que o ruivo estava lá; ao lado dela, sentado sob a mangueira enquanto observava as nuvens e as estrelas no céu escuro. Se pudesse conseguir uma oportunidade para escapar de novo, sem sombra de dúvidas ele o faria... Mas sendo observado quase o tempo todo e com tantos sentinelas por perto enquanto consertava e limpava arcos e flechas, ficava impossível sair do vilarejo. A menos que algo como um incêndio acontecesse de repente, Wander estava fadado a continuar ali até que sua punição terminasse, sendo obrigado a voltar para seu leito depois dos trabalhos obrigatórios. Ao acordar, sua nova rotina como caçador recomeçava... Não havia descanso ou uma oportunidade para sair escondido do vilarejo. No final, foi como se houvesse quebrado sua promessa... Isso era o que trazia a maior aflição; tão intensa quanto aqueles serviços forçados.

— Hoje é o último dia... — Wander disse a si mesmo enquanto olhava para o próprio reflexo dentro de uma larga vasilha d’água.

O ruivo colocou as mãos dentro do recipiente, molhando-as para então esfregar o rosto e secá-lo em seguida. Seu quarto era pequeno, porém relativamente bem organizado. Não havia muito o que seu dono guardar, portanto, encontrava-se bastante ‘’vazio’’, por assim dizer. Além da cama, Wander tinha apenas um armário, a pequena mesa onde lavava o rosto todas as manhãs, e uma cadeira para quando raramente recebia visitas. Os móveis estavam empoeirados como sempre; já fazia algum tempo que o caçador não fazia uma limpeza geral... Não passava muito tempo em seu leito, afinal, e por isso faxinas acabavam não fazendo muito sentido.

— Só mais uma caçada, e eu vou poder ver Mono novamente. Só espero que ela não me odeie por ter sumido... — Completou o rapaz, levando a máscara de águia até seu rosto. Como esteve usando-a nos últimos dias, já estava se habituando ao formato, que infelizmente era um pouco maior que o necessário para sua cabeça. Era um acessório que mudava de dono conforme as gerações passavam. De fato, não havia sentido em reclamar sobre sua falta de perfeição no quesito conforto.

Seu tom de lamentação se dava pela distância que esteve de Mono durante aqueles três dias. Wander realmente queria poder vê-la... Mas se fugisse novamente durante aquele período, poderia muito bem ser expulso do vilarejo por tamanha rebeldia e incompetência. O ruivo pegou o arco de tom avermelhado sobre sua cama, e equipou uma faca de caça na cintura junto de seus adornos feitos de osso. Wander enfim saiu do quarto após fazer uma breve reverência a um pequeno vaso com as cinzas de seu pai, descendo então as escadas até os estábulos, onde inevitavelmente encontrou Agro. A égua estava comendo quando seu único amigo chegara. Nada havia mudado... Kuba não deixou de lado sua decisão sobre a execução do animal, que apenas aguardava o próprio abate planejado para quando os outros cavalos chegassem de Hwen. Ainda havia muita indignação presa ao coração de Wander... Mas se o rapaz se focasse em colocar toda a sua atenção nisso, não sobraria nada para o que realmente importava. O jovem caçador planejava soltar a égua quando sua hora estivesse prestes a chegar... Mas até lá, se contentaria em acariciá-la toda manhã antes de sair para suas caçadas, afinal, já não podia mais cuidar de nenhum dos animais de Kuba. Isso incluía Agro.

— Sinto muito, Agro... Não posso montar em você hoje também. Sei que deve ser bem chato aqui dentro... — O garoto disse em voz baixa enquanto a acariciava por entre as proteções de madeira, sorrindo. Apesar do confinamento não intencional que Kuba a estava impondo, Agro parecia relativamente bem. Como se soubesse exatamente o que estava havendo, e de modo aplicado se controlasse para não causar problemas maiores.

Ao sair dos estábulos, Wander viu Kuba conversando com dois guerreiros de Emon acompanhados de seus cavalos. Os homens pareciam estar discutindo alguma coisa sobre os dentes dos animais... Mas não havia muito o que o ruivo bisbilhotar, afinal, aqueles assuntos já não mais eram mais de sua conta. Apesar do erro terrível que o rapaz cometera, Kuba não demonstrava desgosto ou ódio do que aconteceu. Sua paciência era feita de ouro... Mas ainda assim, seu trabalho fora diretamente afetado pelo afastamento de Wander, seu único ajudante. Ainda demoraria para que Kuba encontrasse outra pessoa competente para o trabalho... Infelizmente, o homem estava tendo que lidar com tudo sozinho, e por isso estava tão empenhado naqueles dias. Isso trazia certa culpa ao rapaz, que não podia fazer absolutamente nada a respeito. Diante daquelas punições e situações tão estreitas, Wander só conseguia pensar em como era impotente diante das regras e comandos vindos de pessoas superiores. Sempre que estava com os pés dentro de Eelry, desconhecia o significado da palavra ‘’liberdade’’.

Após uma curta caminhada, o detentor da máscara da águia chegou até a entrada do vilarejo, onde encontrou seus parceiros de caça que haviam sido escolhidos para aquele dia: Uta; o mais jovem e infantil de todos, Deven; o mais velho e fisicamente forte, Emil; um garoto inteligente e pouco entusiasmado, e por fim, Raff; o que geralmente era escolhido para fazer os pequenos trabalhos de auxílio graças a sua falta de habilidade comparado aos outros. Os quatro pareciam estar um pouco tensos diante de uma situação que para Wander era extremamente fácil de se deduzir: Skjor havia faltado.

— Wander! Você finalmente chegou...! — Raff disse com uma preocupação profunda escorrendo por suas expressões. O garoto se desesperava facilmente, e muitas vezes isso se mostrava um traço irritante de sua personalidade. Assim como Wander, ele tinha uma pele bastante limpa e agradável. Sua cabeleira tinha um volume mediano, e a máscara cinzenta com o desenho de lobo combinava com o visual ordinário.

— Mantenha a calma, Raff... O quê houve? Onde está Skjor? — Questionou o ruivo, tentando encontrar seu líder de caça no meio das outras pessoas que transitavam pelos portões, mas sem sucesso em fazê-lo.

— Skjor ficou doente. — Afirmou Deven, coçando a nuca num suspiro logo em seguida. Seus braços eram bem maiores que os dos outros caçadores, e o rapaz tinha um peitoral que definitivamente se sobressaía diante da maior parte dos Tsa’hik. — Ele disse que não podemos deixar de sair hoje, mas não tem nenhum outro superior para ir conosco. Por isso estávamos discutindo quem ficaria na liderança...

Wander sorriu. — Isso é fácil. Você é o mais forte de nós, seria um ótimo líder... — Após dizer isso, virou-se então para Emil, que sempre se mantinha calado apenas aguardando o momento certo para opinar. Como de costume, detinha um olhar desanimado e sério no rosto. — Emil também se sairia bem nisso, é o mais inteligente. Se um de vocês dois se dispuser...

— Não quero ficar na liderança. — Emil contestou, cruzando os braços. Curto e grosso... Como sempre.

— E-Eu acho que Emil não se daria bem como líder... Nós precisamos de alguém que tenha presença lá fora. Que saiba dar ordens... Não é o nosso caso, por exemplo. — Disse Raff, citando a si mesmo e o colega silencioso. Emil evitava interações. Uma pessoa como ele certamente não daria certo... Já Raff, estava acostumado especialmente a receber ordens para trabalhos simples de executar. Tratava-se do extremo oposto do que precisavam.

O ruivo mascarado suspirou, indeciso. — Uhm... Bom, então... Contamos com você, Deven. — Falou então, olhando para o rapaz alto de arco longo.

— Nós estávamos discutindo sobre a ideia de você liderar hoje, Wander. — Diante daquela resposta, o garoto pareceu muito surpreso. — Você é bem mais inteligente e rápido do que eu, além de ter matado aquela coisa enorme há uns dias atrás... — Argumentou Deven. — Nós precisamos de alguém corajoso e que saiba fazer o grupo se virar caso algo como aquilo apareça.

Wander engoliu em seco, fitando cada um de seus colegas. Não esperava por algo assim... Seu dia já seria difícil, visto que aquela caçada estava planejada para ser longa e cansativa. Ter de liderar só piorava ainda mais situação. — Não tenho certeza se consigo... Nunca liderei antes. Além disso, aquele javali foi um golpe de sorte, Deven...

— Eu voto sim para Wander ser nosso líder hoje. — Disse Deven de repente, levantando a mão direita. Olhava para os outros com seriedade, como se esperasse seus votos também.

— Sim... — Respondeu Raff.

— Wander! — Uta exclamou, animado.

Emil ficou calado por alguns instantes; fitando todos vagarosamente, até enfim responder com profundo desânimo: — Tanto faz... Voto sim.

Deven sorriu para Wander e ajeitou seu arco nas costas. — Certo, então está decidido... Wander irá liderar hoje. — Afirmou com um leve entusiasmo na voz. Deven era um cara legal... Mas não sabia ser compreensivo quando alguém não queria fazer algo. Simplesmente continuava agindo como se estivesse tudo bem. — À caçada, rapazes! Hoje iremos compensar pela falta de alimento de ontem!

Todos gritaram ‘’Sim!’’ após as palavras de Deven, que deu a passagem para que Wander fosse na frente, já que seria o líder da expedição. Embora tentasse fingir estar animado, o coração do rapaz batia forte por dentro. Suas mãos tremiam, e o ruivo suava cada vez mais rapidamente... Wander nunca liderou antes, e apesar de saber o quê fazer nas horas de aperto, não fazia ideia de como daria ordens aos seus colegas se algo emergencial acontecesse. O rapaz decidiu se espelhar no que via de Skjor quando o mesmo estava no comando... A forma de falar, as regras a se seguir, e até mesmo as estratégias de caça. O grupo pegou um cavalo pequeno no qual Wander ordenou que Raff fosse montado, afinal, era geralmente ele quem estava habituado a fazer esse tipo de serviço. Wander ia na frente; lidando com o caminho e a trilha. Logo atrás vinham Deven e Emil; de olhos bem abertos para qualquer presa nos arredores. Uta ficava no fundo; ao lado de Raff, e cuidando do cavalo assim como da integridade de sua carga. Como a ideia era voltarem para casa com o máximo de alimento possível dentro dos limites estipulados, organização seria a chave de tudo, e mesmo o maior cuidado possível com o cavalo e suas sacolas, seria pouco. Nada poderia se perder, e muito menos estragar ou ser danificado.

Wander liderou o grupo de caçadores pela saída de Eelry, até o início dos gramados e campos floridos próximos ao vilarejo. Os cinco passaram pelas pequeninas cachoeiras de musgo verde; um dos cenários mais lindos e agradáveis da região, e pisaram na floresta baixa dos lagartos negros, onde uma água rasa e cristalina ainda se encontrava sobre a grama, esta que de algum modo não se afogava nos resquícios das enchentes que ocorreram pouco tempo atrás. Nos bosques, entretanto, não havia sinal algum de animais selvagens além de faisões e lebres. Durante cerca de três horas, a expedição mostrou-se um completo fracasso. Todos estavam frustrados com a escassez de boas caças, e mesmo as criaturas menores estavam parecendo se esconder em suas tocas. Wander e os outros pararam para comer, e quando voltaram à patrulha, o ruivo começou a agir com mais seriedade que o convencional. A intuição do líder dizia que algo não estava normal... Como se uma presença ainda desconhecida estivesse afastando os animais da região. Desde a manhã passada, tudo estava quieto e parado demais. Wander nunca viu nada parecido, e por isso era difícil saber como agir sem que muito tempo fosse perdido investigando.

— Wander... — Emil chamou a atenção do rapaz. Assim como o restante do grupo, já se encontrava cansado e frustrado demais para levar a formação a sério. Wander estava bem mais adiante que o planejado, mas não parecia se importar mais com isso. O líder apenas continuava andando enquanto olhava aos arredores com uma atenção tão imensamente intensa, que poderia se comparar ao olhar focado de uma águia. — Wander! — O caçador repetiu. Ao ouvir o segundo chamado, o ruivo temporário virou-se.

— O quê foi, Emil...? Nós precisamos manter o silêncio. — Alertou o rapaz. Uma ironia do destino ter de dizer isso a Emil, já que era o mais calado de todos ali presentes.

Emil suspirou pouco antes de limpar o suor da testa. Havia impaciência em seu rosto e em sua voz. — Já estamos quase saindo dos limites de Eelry... — Afirmou ele. — Vamos voltar.

Wander se pôs a contestar imediatamente, aproximando-se do colega enquanto gesticulava. — Não podemos voltar sem nada... Seria uma vergonha se isso acontecesse!

— Wander está certo. — Raff concordou. O jovem se aproximava do restante do grupo montado em seu pequeno cavalo marrom. As bolsas nas laterais do animal estavam magras e caídas. — Se voltarmos de mãos vazias, Skjor vai ficar uma fera...

— Pouco me importa o quê Skjor pensa! — Exclamou Emil, irritado não só com a situação, mas também com a posição que seus colegas estavam tomando. Geralmente não falava nada, mas aquela situação estava se tornando absurda de um modo progressivo e cansativo. — Não há animal algum aqui, e só piora conforme avançamos...! — Completou o mesmo, encarando Wander nos olhos. Mesmo com todo aquele pessimismo, Emil estava certo. Quanto mais o grupo seguia para aquela direção, menos rastros de animais encontravam.

— Sei que se sairmos dos limites do vilarejo encontraremos alguma coisa. — Disse Wander, bastante seguro. Não era comum o garoto agir daquela maneira... Mas se tudo naquela caçada desse errado, seus planos seriam obliterados junto de sua reputação recentemente em decadência. As coisas não poderiam piorar mais do que já estavam ruins... Confiar em sua intuição era tudo o que restava. — Eu tenho... Um pressentimento bom sobre esse caminho. Sinto que vai ser uma boa caça se nos arriscarmos nele.

Ás vezes Wander conseguia ter uma intuição incrivelmente apurada e conveniente durante suas caçadas. Como se pudesse prever quando uma boa presa iria surgir, ele sabia para que lado seguir, e que tipo de decisão tomar. No entanto, isso costumeiramente o levava para situações arriscadas, e por isso o ruivo estava sendo tão cauteloso. Dentro de sua cabeça; num turbilhão de pensamentos distintos sobre o que poderia ou não estar ocorrendo naquela região, Wander tinha a teoria de que algum predador estava espantando os bandos de animais da área, e por isso nem mesmo um único veado pôde ser encontrado; tão pouco agrupamentos de javalis ou cervos, criaturas bem comuns na região.

— Isso é ridículo...! — Emil tirou a máscara, olhando diretamente para Wander com uma expressão de puro descontentamento. Seu olhar chegava a ser sinistro sob aquelas mechas negras... — Graças a você, até agora nós não caçamos nenhum animal maior que uma lebre! Como espera que voltemos com algo em mãos para Eelry liderando com base em ‘’intuição’’?! — Ele então virou-se para os outros, realmente nervoso. — Vocês chamam isso de bom líder? Já está quase entardecendo e estamos aqui no meio do nada como um rebanho de ovelhas cegas e perdidas!

— Mantenha a calma, Emil... — Deven disse de repente, se aproximando do rapaz enquanto tocava em seu ombro calmamente. O termo ‘’ovelhas cegas e perdidas’’ era o tipo de insulto mais inaceitável para um caçador... Ainda assim, o mesmo decidira; como sempre, não repreendê-lo por sua arrogância. — Todos nós concordamos em colocar Wander como líder. Nós temos tempo suficiente para caçar algo... A expedição ainda não acabou. — Completou ele, sorrindo de modo amigável.

— Talvez pra vocês, fracassados... — Resmungou Emil. Seu tom sempre era o de um velho áspero e carrancudo, mas naquele momento parecia bem mais irritado que o convencional. Sem qualquer tipo de aviso prévio, ele se virou e saiu andando pela trilha na direção contrária a que antes estava seguindo com passos largos e pesados.

Uta imediatamente correu para tentar chamá-lo. — Emil! Aonde você vai?!

— Para casa. — O caçador respondeu com indiferença antes de atravessar um grande arbusto bruscamente.

Vendo a gravidade da situação, Deven deu alguns passos e se pôs a gritar. — Emil, nós precisamos de você! Emil! — Mesmo sendo cabeça-dura e extremamente egoísta, Emil era o mais inteligente do grupo quando se tratava de estratégias de caça em grupo. Sabia se posicionar, era ótimo com o arco, e sua furtividade mostrava-se excepcional. Seria muito desvantajoso perdê-lo daquela maneira, e mais do que ninguém, Deven sabia disso.

O rapaz já estava quase correndo atrás de seu colega quando Wander chamou sua atenção: — Deixe-o ir... — O ruivo disse num tom de voz medianamente suave, tocando o braço de seu parceiro. Apesar de Deven estar muito preocupado, era realmente melhor não insistir. Seria mera perda de tempo. — Nós podemos continuar sem ele. Um arco a menos não é o fim do mundo, certo? — Questionou o rapaz, tentando com todas as suas forças manter a calma. No fundo, Wander queria poder amaldiçoar Emil por ser daquele jeito. Aquilo chegava próximo de ser considerado uma traição...

Deven suspirou, olhando de canto para o líder do grupo. Parecia extremamente frustrado com tudo o que acabara de ocorrer. — Mas que droga, Wander... Eu espero que você realmente saiba o quê está fazendo. — Falou pouco antes de continuar andando pela trilha, claramente abatido.

O grupo então seguiu pelo caminho que direcionava para fora dos domínios dos Tsa’hik, caminhando em meio à região mais aberta e viva do bosque de pinheiros altos. Sem sombra de dúvidas, as árvores naquele local chegavam a ter quase o triplo do tamanho das anteriores, e pareciam ficar gradativamente maiores conforme os caçadores se afastavam de Eelry. A trilha por aqueles lados também já não existia mais, visto que a estrada de cascalho era o caminho mais adequado para se viajar para tão distante. A partir do momento em que pisaram na terra escura e seca da floresta de pinheiros, estavam prestes a chegar tão longe como nunca fizeram. Wander caminhava atrás de Deven, que parecia deslocado e ainda bastante frustrado. Apesar de estarem conseguindo se afastar bastante do vilarejo sem serem acometidos por qualquer tipo de batalha surpresa; algo que acontecia com frequência em expedições com mais de quatro pessoas, todos já se encontravam cansados demais para terem alguma esperança de encontrarem uma boa caça. Após um tempo andando, já era possível ver os primeiros tons de laranja e violeta no céu, a referência mais clara e certeira de que logo o sol estaria se pondo. O caminho de volta seria mais breve que a expedição de ida, visto que os caçadores deram diversas voltas pelas regiões anteriores... Mas ainda assim; caso houvesse alguma atividade de caça que gastasse tempo, só chegariam em casa durante a noite, e isso era uma péssima notícia.

— Ugh...! — Deven grunhiu de repente, levantando uma das pernas de modo repentino. Os cinco estavam passando por uma área lotada de pequenas ervas no chão, até que o rapaz pareceu ter pisado em alguma coisa gosmenta. — Mas que... Nojo...! Que cheiro horrível... — Disse sob a máscara, olhando para o que estava em baixo de sua bota. A sola havia esmagado uma meleca marrom semelhante a barro molhado.

Wander imediatamente correu para perto do colega, parando para analisar o que era aquilo. O cheiro era horrível... Claramente se tratava de fezes, mas era difícil saber a qual animal pertencia, visto que o odor era diferente de tudo o quê o ruivo já tenha tido a oportunidade de cheirar. Era extremamente forte e ácido, além de parecer emanar um calor anormal. Só de ajudar Deven a segurar sua bota, Wander pôde senti-lo. Sem dúvidas a criatura estava perto... A temperatura e a umidade diziam isso.

— Que curioso... — O líder disse, intrigado. — O cheiro é quase insuportável... — Afirmou, colocando uma das mãos na frente da boca enquanto Deven voltava a tocar com o pé no chão.

— Nossa... Acho que vou vomitar...! — Resmungou o rapaz de estatura maior, caminhando até uma árvore para esfregar a sola de sua bota no tronco escamoso. A madeira do pinheiro ajudava na remoção das fezes, mas fazia o odor se espalhar muito mais. Deven colocou as mãos na frente do rosto e se afastou então, parecendo atordoado pelo cheiro horrível. — O quê é isso, afinal...?

— Wooow! Calma, Azab! — Exclamava Raff no fundo, tentando controlar o cavalo. Aparentemente o cheiro forte estava incomodando o animal, que tendia a caminhar para trás e tentar sair de perto. Uta estava bem ao lado, e com sua ajuda o garoto conseguiu acalmar Azab. — Que cheiro é esse? Parece bosta cozida!

— Nunca vi fezes desse tipo... — Wander falou enquanto se aproximava da meleca no chão. Tinha coragem, de fato... O aroma ficava cada vez mais peculiar conforme se chegava perto. — Isso tem cheiro... De lúpulo... — Constatou, levantando-se para poder respirar longe daquilo. — Droga, se Emil estivesse aqui, tenho certeza que ele saberia de que animal é...

— Wander... Veja. — Deven apontou para mais adiante; no solo. Havia rastros do que pareciam ser pegadas de animais... E não eram poucas. Os dois então correram para perto rapidamente após uma breve troca de olhares empolgados. O fato de terem acabado de encontrar o que parecia ser a primeira pista de uma possível boa caçada os deixava tão animados quanto receosos. — São de cervo...?

— Não... São muito grandes. — O líder respondeu ao colocar uma das mãos no queixo. Sem Emil seria bem mais difícil definir qual era a raça do alvo... Mas claramente se tratava de um herbívoro de grande porte. Isso só não combinava com as fezes de antes. — Com patas desse tamanho, deve ser um animal bem robusto... Talvez uma espécie nômade que não viva pela região. — Wander dizia pensativo, comparando o tamanho delas com o de sua mão direita. Tinham quase o dobro do comprimento de um casco de cervo, além de uma largura igualmente maior. — São rastros recentes, eles ainda devem estar por perto. — O rapaz se levantou bruscamente.

— Sim... Melhor sermos rápidos antes que comece a escurecer. — Deven concordou ao assentir com a cabeça. Logo em seguida, abriu um singelo sorriso no rosto. — Aparentemente sua intuição realmente acertou, Wander.

O ruivo ficou sem graça. — Nós não sabemos ainda como isso vai terminar, Deven... Não se precipite. — Wander caminhou um pouco mais para perto dos outros dois caçadores e sacou seu arco, levantando-o na altura da cabeça. Isso era um sinal que havia uma possível presa por perto. — Nós temos um alvo, pessoal! Raff, fique no fundo como o planejado. Uta, quero você entre nós três. Deven irá adiante comigo, e quero todos de olhos bem abertos, entendido?!

— Sim! — Uta respondeu, sacando seu arco assim que o líder do grupo terminara de dar as ordens.

— Sim! Vamos lá, Azab... Conto com você. — Raff falou ao mesmo tempo em que acariciava o cavalo, movendo as rédeas para que o mesmo se virasse para a direção correta.

Assim que terminara de dar as ordens, Wander correu para perto dos rastros e ficou ao lado de Deven, analisando as pegadas conforme caminhava seguindo-as. — Vamos, Deven. Se formos rápidos, talvez os peguemos desprevenidos... Tenho certeza que devem estar procurando abrigo para a noite.

O caçador da máscara de lobo abriu um sorriso novamente, mas desta vez com um olhar determinado e muito confiante. Sem qualquer hesitação, começou a seguir o ruivo, preparando seu arco na frente do corpo. Ainda que fosse maior que os dos demais, era leve e de madeira fina. — Pensei o mesmo! — Disse logo em seguida.

Os quatro seguiram os rastros por poucos minutos até finalmente chegarem ao final da colossal floresta de pinheiros altos. As árvores acabavam diante de uma descida que dava na breve margem gramada de um riacho que cruzava entre as matas. A água era rasa e extremamente cristalina, dando visibilidade para que fosse possível enxergar as pequenas pedras cinzentas que se encontravam por toda parte em sua extensão. A montanha dos canários se encontrava do lado direito; de onde vinha o riacho, e não estava muito distante. Isso significava que o grupo já estava completamente fora dos domínios Tsa’hik, e que não haveria ninguém além deles naquela região. Nenhum outro caçador de Eelry ousaria ir tão longe por uma mera caçada semanal.

— Lá estão...! — Deven disse assim que se escondeu atrás de um arbusto com Wander.

Mais adiante; dentro do riacho, sete animais extremamente peculiares se hidratavam calmamente. Apesar de possuírem grandes galhadas beges, não estavam nem perto de serem cervos comuns... A espécie possuía uma pelugem cinzenta levemente azulada, coberta por diversas manchas claras pelo corpo, e marcas longas incrivelmente discretas. As crinas se dividiam ao redor do que pareciam ser espinhos; extensões da coluna vertebral do animal, estes do mesmo tom que a galhada. Suas pernas eram grandes e robustas, assim como os músculos ao redor de todo o corpo, e cada um detinha uma enorme cauda com penas marrons, beges, e brancas, sendo algumas delas muito semelhantes a folhas mortas de outono. Os adultos chegavam a alcançar mais de um metro e sessenta, embora os filhotes fossem realmente bem menores e menos desenvolvidos.

— Uau...! São... Demicervos...? — Wander se perguntou, tão surpreso quanto Deven diante daquela criatura tão rara e anormal. Assim como a maioria dos caçadores, o rapaz teve a oportunidade de estudar sobre quase todo tipo de animal selvagem, embora não fosse muito bom em identificar seus rastros deixados. Isso incluía as fezes de mais cedo... Somente alguém com uma ótima memória se lembraria que demicervos se alimentam especialmente de lúpulo e outras plantas de gosto amargo, e que suas fezes; de algum modo, não são duras como as de cervos comuns.

— Acho que sim...! — Deven respondeu. — Você conseguiu, Wander...! Sua intuição estava certa!

Os olhos de Wander se encheram de uma alegria indescritível. Antes do javali gigante que caçara sozinho, nunca antes houvera encontrado uma criatura tão única. Mesmo alegando que se tratava de pura sorte; afinal, o javali também fora, as coisas não eram tão simples assim. A maior vontade do ruivo era de sair dos limites de Eelry e explorar o que havia além das fronteiras impostas por Emon e seus homens... Uma das principais razões para isso ser algo proibido, era o fato de existirem criaturas extremamente perigosas além das plantações e dos bosques dos Tsa’hik. Aquela raça de cervo era realmente bem rara... Mas só poderia ser encontrada ali: Longe da civilização. Animais como aquele não ousavam se aproximar dos homens... A causa disso era sua inteligência normalmente maior que a de outras espécies.

— Uau...! D-Demicervos...! — Uta disse em voz baixa, se posicionando ao lado de Wander e Deven. — Skjor disse que só conseguiu caçá-los duas vezes desde que pegou a máscara de lobo...!

— Isso é um privilégio e tanto. — Afirmou Deven, sorridente.

— Nós não podemos perder tempo. — Wander interrompeu, levantando seu arco. O rapaz virou-se para Raff, e fez um sinal para que o mesmo permanecesse com o cavalo exatamente onde estava. Como Emil estava faltando, o grupo encontrava-se com um arco a menos... Mas não significava que tudo estava perdido. Wander imaginou que numa situação única como aquela, Skjor pediria que Raff também disparasse... Mas o ruivo não confiava tanto assim na sorte. Afinal, diante de tudo aquilo, qualquer erro cometido poderia ser fatal. Seria melhor que alguém ficasse cuidando de Azab. — Serão três disparos ao mesmo tempo. Mirem apenas nos adultos que estão do lado esquerdo... Se dermos sorte, os outros vão correr na direção da montanha, e o fluxo da água irá atrasá-los um pouco enquanto sobem. — Instruiu o líder.

— Um bom plano. — Deven concordou de imediato. — O meu é o de galhada quebrada. — Completou o jovem rapaz enquanto sacava sua flecha.

— Vou disparar na fêmea de pelugem clara. — Uta disse enquanto fazia o mesmo. Apesar de ser mais lento, torcia para a sorte e a furtividade estarem ao seu favor.

— Certo... Não errem. Nós só teremos duas oportunidades até que eles estejam longe demais... — Wander ressaltou ao mesmo tempo em que também preparava uma flecha em seu arco. O ruivo puxou-a lentamente, respirando fundo num ritmo devagar e extremamente controlado. — Quando eu der o meu sinal...

Alguns segundos de silêncio se passaram... A sensação era a de o tempo estar parado, e mesmo tendo feito aquele tipo de coisa dezenas e dezenas de vezes, para Wander era sempre como na primeira vez. Tudo permaneceu quieto até que um som distante e incômodo atingiu os ouvidos dos caçadores. Antes que Wander pudesse dar o sinal e disparar junto de seus companheiros, foi possível escutar o que parecia ser o canto de uma águia... No entanto, era extremamente alto e prolongado, algo completamente incomum para uma ave tão pequena. Os rapazes se assustaram e deixaram de tencionar seus arcos, notando que os animais adiante subitamente começaram a ficar agitados. Além de baterem os pés repetidas vezes sobre a água, olhavam ao redor enquanto balançavam suas caudas num ritmo parecido com o que moviam as orelhas. O cavalo em que Raff estava montado também relinchou, deixando os demicervos mais alertas ainda.

— O quê... Foi isso...? — Uta perguntou, olhando para o céu. Certamente era o som de uma águia, mas como poderia ser tão violentamente alto...? Aquele fora o canto mais assustador que o garoto presenciara em toda a sua vida. Uta estava trêmulo.

— Não parece ser coisa boa... — Afirmou Wander, também tentando localizar de onde o som veio. Seu coração estava acelerado.

— Nós precisamos disparar de uma vez antes que percamos a oportunidade! — Deven exclamou, apontando com o arco na direção dos demicervos enquanto puxava uma flecha. Seu olhar era sério e derramava tanta tensão quanto sua pele podia transpirar. Aquela imprudência certamente acabaria com toda a caçada, e diante disso, Wander sentiu-se na necessidade de fazer algo a respeito antes que tudo desmoronasse.

— Não, Deven...! — O líder do grupo tentou alertá-lo.

Se Deven disparasse aquela flecha sozinho, todo o plano teria sido criado em vão. Apenas um cervo seria morto, e os outros seis conseguiriam escapar ilesos e em total desorganização. Se eles não seguissem em linha reta para uma direção específica e previsível, seria quase impossível abater os restantes. Instintivamente, então, Wander pulou em cima de seu colega para evitar que o mesmo efetuasse o tiro, mas fora lento demais. A flecha zuniu na direção do demicervo cuja galhada estava parcialmente danificada, derrubando-o após alguns segundos presa próxima ao seu pescoço. O animal então caiu sobre a água enquanto se debatia, alertando os outros para que corressem. O pior aconteceu...

Wander virou seu rosto na direção das presas agitadas, e então rangeu os dentes. — Ah...! Essa não...!

Sua intuição dizia que havia algo pior do que apenas a chance de perderem a melhor caçada de suas vidas... Após um breve instante, novamente fora possível escutar o canto da águia, que parecia bater suas asas bem acima das árvores ao redor dos jovens caçadores. O som não era nem um pouco amigável... Não demorou muito para que Wander tivesse certeza que não se tratava de uma ave comum, mas sim de uma criatura selvagem extremamente rara e poderosa. Uma ventania repentina então começou a sacolejar as copas dos pinheiros para baixo, fazendo com que diversos galhos e folhas voassem por todas as direções. Ao mesmo tempo em que o cavalo de Raff erguera as patas dianteiras; completamente aterrorizado com aquela situação, a besta apareceu pousando sobre um dos demicervos bem diante dos olhos dos quatro caçadores. Tratava-se de um grande monstro com cerca de dois metros de altura dos pés à base da coluna vertebral. Seu corpo era um misto entre a anatomia de um leão e a de uma águia, possuindo a maior parte dele coberta por pelos e penas de cor castanha. Um animal robusto, cuja cabeça e as patas dianteiras eram idênticas às de uma ave de rapina, sendo o restante do corpo igual ao de um felino desenvolvido. Suas asas eram tão grandes, que juntas poderiam facilmente atingir o comprimento total da criatura duas vezes. A besta que estava afastando todos os animais da região ao redor de Eelry era muito mais que um mero predador genérico... Aquela criatura jamais antes vista pelos olhos dos inexperientes caçadores era um grifo fêmea adulto.

— Minha... Nossa... — Deven disse em voz baixa ainda com Wander parcialmente sobre seu corpo. Sua máscara havia sido jogada para trás no momento em que caíra, e isso facilitava ainda mais sua visão da criatura. Os olhos do caçador fitavam as garras enormes do grifo dilacerando o cervo rapidamente. O animal nem mesmo teve chances de se defender... Quando seu predador pousou, o destino daquela vida fora completamente traçado. — Isso... É um grifo...!

— Nós temos que sair daqui! — Wander exclamou, ajudando Deven a se levantar o mais rápido possível. Assim como Uta, suas pernas estavam trêmulas... Mas não era hora para se render ao medo! Se alguma escolha errada fosse feita, as mortes de pelo menos três companheiros estariam nas costas do garoto. — Agora! — Completou ele num tom nervoso, olhando para os outros dois.

Deven e Uta começaram a correr em disparada floresta a dentro, mas Raff teve problemas para arrancar com seu cavalo, que se encontrava extremamente agitado. Azab fazia muito barulho enquanto erguia as patas dianteiras, dando alguns coices para trás após pular ao redor do próprio eixo rapidamente. O jovem não sabia como controlá-lo, e estava em pânico tanto quanto o animal. Seus braços pareciam se confundir a todo momento conforme puxavam as rédeas.

— Raff! Domine seu cavalo! — Wander gritou ao se aproximar dos dois, sem saber exatamente o quê fazer. Quando olhou para trás, viu que o grifo levantara sua cabeça após o relinchar de seu futuro alvo. Como os demicervos haviam corrido, aquela com certeza seria sua próxima vítima... — Vamos! Depressa!

Mesmo tentando puxar Azab, era impossível parar o desespero do animal sozinho. Se tinha uma coisa que Wander se lembrava naquele momento, era que grifos num geral são conhecidos por atacar cavalos e cavaleiros, já que para eles são presas fáceis e bastante lucrativas graças à quantidade elevada de carne totalmente comestível. Por serem predadores cujas crias são igualmente grandes mesmo quando ainda não atingiram a fase adulta, aquela fêmea certamente não hesitaria em levar para seu ninho mais de dois cadáveres frescos e em perfeita integridade. Sabe-se lá quantos filhotes ela estava escondendo nas montanhas... Azab era apenas mais um alvo inofensivo para a mesma.

— Merda...! Wander! Não consigo! — Raff dizia, se esforçando ao máximo para tentar controlar o cavalo. — Socorro!

Por instinto, o ruivo novamente olhou para o riacho, notando que o grifo estava batendo suas asas para conseguir impulso ao avançar na direção dos pinheiros. Aquela visão era assustadora: Como uma onda oceânica colossal se aproximando em alta velocidade; pronta para atropelar e destroçar tudo que estiver em seu caminho. Wander então se voltou novamente para Raff e o cavalo, e colocou suas mãos na sela do animal, sendo carregado pelo mesmo por um breve momento. Quando Azab parou, o caçador puxou seu parceiro para baixo e fez com que o mesmo fosse ao chão, dando então um forte tapa numa das pernas traseiras do cavalo. Assim que Azab saiu em disparada, Wander pulou no chão sobre o corpo de Raff, e permaneceu imóvel, deixando então que o grifo passasse por cima de seu manto cinza em alta velocidade. A besta tentou saltar na direção de sua presa, mas não conseguiu ser rápida o bastante por um mero instante. O cavalo já estava longe demais quando a criatura deu de cara com um par de árvores que formavam um espaço estreito o bastante para que seu enorme corpo não pudesse passar. Mesmo tentando usar suas garras para derrubar os pinheiros, os troncos eram grossos e pesados demais para serem simplesmente jogados para trás, e no fim, Azab conseguira escapar com vida.

— Agh... O-O quê houve...? — Perguntou Raff, confuso por Wander tê-lo derrubado do cavalo tão subitamente. Quando percebeu que havia acabado de ser salvo, ficou com os olhos arregalados como uma coruja.

— Corra pra dentro da floresta e ache os outros! Agora! — Ordenou o ruivo, apontando para a direção que Uta e Deven seguiram logo após levantar-se. Havia mais do que uma profunda tensão em seus olhos... Todas as expressões de seu rosto entregavam o mais puro desespero carregado da maior aflição que um líder pode vir a ter: Ser obrigado a ver seus companheiros sendo atacados sem poder protegê-los da maneira mais eficiente possível. O garoto estava fazendo de tudo para não colocar as vidas deles em maior risco.

— C-Certo!

Após assentir com a cabeça, Raff correu para longe, passando consideravelmente próximo ao grifo. Quando a criatura o viu entrando em disparada, levantou uma das patas dianteiras para atingi-lo com suas longas e pontiagudas garras de águia, mas fora impedido por um disparo extremamente veloz de Wander, que mirara em seu centro de massa. A flecha havia sido sacada tão rapidamente, que nem mesmo o garoto pôde acreditar na destreza que teve ao efetuar o ataque. Com a seta presa em seu braço direito, a fera então virou-se para o rapaz e abriu o bico num brado de rapina poderoso. O som era tão próximo de ser ensurdecedor, que Wander fora obrigado a levar uma das mãos até a cabeça, tapando o ouvido esquerdo.

— Criatura maldita...! — O mascarado resmungou ofegante, trocando olhares furiosos com a besta. — Agora somos só eu e você...!

Apesar da situação deplorável em que o líder do grupo se encontrava, tudo estava se saindo conforme o mesmo planejara. Ainda assim, Wander sabia muito bem que não poderia derrotar aquela besta sozinho. A criatura era muito mais forte que o javali de poucos dias atrás, e mesmo aquele animal desengonçado e pouco inteligente, quase o matara. No meio do desespero, a primeira coisa em que o ruivo conseguiu pensar, fora em seus parceiros... Mesmo que eles não pudessem ser considerados de fato seus ‘’amigos’’, ainda eram importantes para o rapaz, já que confiaram em sua intuição e em suas palavras. As ordens e escolhas do jovem caçador até então haviam sido a causa de todo aquele breve embate... Se não fosse por Wander, as vidas deles não estariam em risco. O grande coração do filho de Alois fizera com que o mesmo agisse por impulso numa culpa irremediável, e esta fora a causa de sua tentativa de sacrificar-se por seus colegas de caça. Wander preferiria perder a vida a deixá-los morrer por sua causa.

Após as palavras do rapaz, o grifo mais uma vez voltou a gritar, porém, mais como um aviso intimidador do que como um estridente bramido de dor. Sem qualquer tipo de hesitação, Wander correu na direção da criatura enquanto sacava outra flecha. Ao chegar perto o bastante, continuou ao invés de mudar seu curso, esperando por sua oportunidade de conseguir atacá-lo de modo inesperado e arriscado. A besta ergueu metade do corpo, se preparando para dar ao pequeno caçador exatamente o mesmo destino do cervo que atacara anteriormente. No entanto, suas longas garras negras apenas atingiram o ar ao mesmo tempo em que o ruivo deslizava por cima da terra escura com seu arco e flecha apontados para o alto. O disparo havia sido certeiro... Após atingir o abdômen do grifo, Wander se reergueu e rolou pelo chão até o par de árvores onde o animal ficara barrado há poucos instantes, simplesmente pulando por entre os troncos antes que a besta o atacasse mais uma vez. Sua estratégia fora pouco pensada, porém precisa e banhada em sucesso. O ser alado se virou rapidamente enquanto novamente gritava, e ao tentar atravessar pelo espaço entre os pinheiros, ficou preso com praticamente metade de seu corpo entre as árvores. Os troncos fizeram um som estranho... Como se estivessem prestes a se quebrar. Ainda assim, o grifo permaneceu bloqueado.

— Isso...! — Wander disse surpreso enquanto se levantava lentamente. Suas pernas ainda estavam trêmulas, e o rapaz suava tanto, que parecia ter acabado de carregar toneladas de areia durante as últimas horas. No entanto, embora estivesse sendo desesperadora, aquela até então estava sendo a batalha mais curta e mortal de toda a sua vida. A frágil existência do filho do caçador mais famoso de sua geração poderia acabar num mero instante... Mas o garoto não estava pronto para morrer. Não sem ao menos se desculpar com Mono por tê-la deixado só após sua tão sincera promessa. Simplesmente não poderia.

Wander levou sua mão direita até a aljava localizada em sua cintura, e sacou três flechas, se preparando então para efetuar um disparo parecido com o que usou para finalizar o javali de dias atrás. Aquele tiro, no entanto, seria abaixo da cabeça da criatura; onde ficava a parte frontal de seu peito. O garoto não custou em posicionar as setas, e rapidamente puxou a corda com força, mantendo-a tensionada por alguns instantes. Antes que pudesse realizar o ataque, no entanto, a besta de cabeça de águia voltou a gritar, só que desta vez, tão alto que fizera as folhas ao seu redor se espalharem para todas as direções. Wander acabou caindo para trás e fora obrigado a largar seu arco com as flechas, tendo fracassado em sua única oportunidade de contra-atacar o grifo. A criatura alada aproveitou a oportunidade para usar o máximo de força para se impulsionar para frente, e então passou por cima do garoto, pisoteando seu braço direito com uma das patas traseiras no processo. Ambos estavam desesperados, e esta foi a razão para o animal reagir de forma tão incontida. O ruivo certamente estaria morto se o grifo quisesse matá-lo acima de tudo; até mesmo sua própria sobrevivência. No entanto, as estratégias de Wander até então foram o suficiente para deixar a besta na defensiva... Sua imponência aos poucos desaparecia, mas ainda era evidente. O garoto, de fato, permanecia na desvantagem; ainda mais após ter sido pisoteado por acidente.

— Aaaagh! — O caçador gritou, deixando seu corpo tender para o lado em que o braço fora esmagado. Wander sentiu uma dor tão surpreendentemente insuportável, que não conseguia conter a própria voz. Apesar de já ter se ferido várias vezes, nunca passou por uma fratura tão grave. Seu braço direito havia sido pisoteado com tamanha força, que metade dos dois ossos abaixo do cotovelo foram parcialmente triturados. Era impossível mover qualquer articulação abaixo do cotovelo, e só o fato de tocar na região já causava ainda mais dor.

Uma das sensações mais terríveis que uma pessoa pode presenciar, é a de estar prestes a morrer ou sofrer de modo irremediável. Wander gemia de dor e gritava incansavelmente, até enfim olhar para cima e ver a imagem de uma enorme águia bem diante de seu rosto. A besta bufava enquanto inclinava a cabeça, tentando identificar o quê exatamente era aquela criatura minúscula no chão. Talvez nunca antes houvesse visto um humano tão de perto... Seus olhos eram dourados como a mais pura pepita de ouro, mas completamente foscos e sem qualquer intensidade de brilho. No centro, a pupila da besta lentamente se dilatava, e nela era possível ver aos poucos a própria imagem. Wander conseguiu fitar seu rosto em uma quase perfeita qualidade pela primeira vez em toda a sua vida. Naquele momento, o rapaz percebeu diante da visão de seus próprios olhos, que não desejava morrer por uma série de motivos...

‘’Eu ainda preciso conhecer o quê há além das nossas fronteiras...’’
‘’Eu ainda quero cavalgar mais em Agro...!’’
‘’Eu ainda quero ser livre!’’
‘’Eu... Ainda quero vê-la novamente...!’’

Antes que a besta pudesse dar um fim à vida de Wander, algo inesperado aconteceu... Uma flecha atingiu a criatura em sua perna posterior esquerda, sendo seguida por mais quatro que zuniram rapidamente até seu centro de massa, e sua perna dianteira. Aquele ataque surpresa veloz e eficiente fora efetuado pelos parceiros de Wander, que não poderiam deixá-lo para trás após sua iniciativa de permitir que fugissem. Deven, Raff, e Uta retornaram para auxiliar seu líder, que mesmo caído no chão, ainda permanecia vivo! A flecha de Deven; grande e pesada como era, fora o suficiente para debilitar boa parte das capacidades terrestres da criatura, que decidira finalmente recuar. Após pular por cima do ruivo; quase o pisoteando novamente, atropelou algumas árvores antes de abrir voo batendo suas asas com uma força descomunal. O animal ainda teve tempo de agarrar um dos demicervos que estavam mortos sobre o riacho, tendo enfim finalmente fugido. Certamente aquela perda era a de menos, mas ainda significava alguma coisa para os caçadores.

— Wander! — Uta gritou, correndo na direção do rapaz com tamanha vontade, que até mesmo tropeçara no meio do caminho. O garoto estava tão ofegante, que parecia que poderia desmaiar a qualquer momento. Seu olhar era terrível...

— U-Uta... — Wander parecia atordoado pela situação. Com os dentes à mostra, não parecia entender direito o que acabara de acontecer. Apenas sabia que o grifo acabara de recuar, e que sua vida fora salva... De alguma forma, o ruivo teria outro dia para viver, e sem dúvidas esta era uma irremediável sorte planejada pelo destino. O filho de Alois estava certo que morreria naquela tarde, mas não aconteceu. — Vocês... Voltaram... Por quê...?

Deven deixou de lado seu arco e foi para perto de Wander, pronto para ajudá-lo. Não demorou para notar a marca terrível em seu braço direito. O membro parecia realmente ter sido esmagado, e a cena era tão horrível, que o caçador preferiu desviar seus olhos após meia dúzia de segundos. Raff, por outro lado, aceitou as ordens de seu parceiro, e ficou longe para poder chamar Azab. O rapaz assoviava na esperança que o cavalo retornasse para o grupo... Perdê-lo seria no mínimo o segundo maior dos fracassos possíveis. O mais terrível sem dúvidas seria a morte de alguém... Entretanto, felizmente não aconteceu.

— Que tipo de pergunta é essa...? — Indagou Uta, começando a ajudar Wander a ficar sentado. O garoto estava molenga e completamente enfraquecido. A dor ainda era intensa... Como se seus ossos e sua carne na região ao redor do ferimento estivessem sendo lentamente dilaceradas por um equipamento de moer carne. — Nós nunca te deixaríamos pra trás!

— Agh...! Meu... Braço... — O líder resmungou, levando a mão do membro oposto até o rosto para levantar sua máscara.

— Me desculpe... — Uta disse num tom mais suave. — Mas nós precisamos sair daqui o quanto antes, se aquela coisa voltar...!

— Aquele era um grifo fêmea. — Afirmou Deven, que estava incrivelmente quieto até então. Apenas aproveitava a situação para analisar tudo o que havia acontecido, e o que ainda poderia acontecer. Caso Wander perecesse ou ficasse incapaz de dar ordens, ele seria a primeira opção para liderar. Infelizmente era o caso. — Com certeza deve estar a caminho do ninho agora... — Completou.

— É claro...! — Constatou Uta. — Ele levou um dos demicervos! Significa que o ninho deve estar na direção da...!

— Montanha do lago profundo. — Alegou o outro caçador.

A montanha do lago profundo era uma elevação natural que levava até uma série de cavernas que terminavam no mesmo lugar; um lago interno cuja profundidade era impossível de ser medida. A área era lotada de peixes dos mais diversos tipos e raças... O lugar perfeito para um pescador corajoso. No entanto, por ser rodeado de animais selvagens, era de longe o lago menos recomendado para se fisgar algo. O fato de um grifo viver no alto daquela montanha era algo completamente inesperado... Mas que fazia total sentido. A criatura havia seguido para aquela direção após ter levantado voo, e ela era basicamente o centro de toda a região afetada por sua presença. A besta meio leonina e meio ave de rapina era a causa de todo aquele silêncio nos arredores de Eelry... A chave para o mistério dos tempos difíceis que estavam amaldiçoando os caçadores Tsa’hik.

— Azaaab! — Gritou Raff após ter assoviado três vezes. O silvo era tão longo, que parecia impossível o cavalo não ter escutado. Um momento se passou, então, antes que o mesmo surgisse ileso por entre as árvores. Azab era definitivamente um cavalo corajoso para seu tamanho... — Azab...! Bom garoto! — O rapaz disse enquanto acariciava o animal, montando no mesmo assim que notara a boa oportunidade. Azab encontrava-se bem mais calmo que antes, mas ainda estava levemente agitado, e por isso parecia cambalear para os lados ao mesmo tempo em que batia os cascos no chão. — Pessoal!

O aviso de Raff fora uma das últimas coisas das quais Wander se lembrava antes de ficar atordoado demais pela dor. O líder do grupo fora então colocado sobre a montaria, e seus parceiros trataram de carregar também o corpo de um dos demicervo até Azab, amarrando o mesmo no animal para que fosse levado para o vilarejo. Posicionado exatamente sobre as pernas traseiras do cavalo, tudo o que Wander podia sentir eram os movimentos do lento trote do animal, e a dor em seu braço direito. Wander ficou inconsciente no meio do caminho, completamente exausto após vários minutos em aflição. Tudo simplesmente foi escurecendo bem devagar... Até que o rapaz se viu num magnífico sonho irreal. Um sonho com ‘’Ela’’.


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