Kalel - Dança de Sangue escrita por Natan Pastore


Capítulo 10
VII


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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VIII

Lilithar, o Templo Profano.

Sentindo como se estivesse levantando todo o peso do mundo, Melyria despertou e sentou-se na cama.

Dores assolavam o corpo dos pés a cabeça, a barriga doía de fome e os olhos estavam pesados nas órbitas, lutava para mantê-los abertos. Olhou para o ambiente ao seu redor: estava num quarto espaçoso, sentada em cima de uma cama confortável num canto. O chão de pedra polida era parcialmente escondido por um grande tapete vermelho e várias tapeçarias em cores frias decoravam as paredes. Havia também uma cômoda, uma pequena estante com alguns livros e uma mesinha com duas cadeiras bem no centro do cômodo. 

Melyria olhou para o teto e franziu o cenho. Uma espécie de esfera luminosa flutuava acima da mesa, irradiando uma luz amarelada que iluminava todo o quarto, mas não machucava-lhe a vista. Ela levantou-se e caminhou ao redor dela, a cabeça virada para cima, encarando o orbe. Realmente não havia nada o prendendo ao teto, voava no ar como um pássaro.

A porta à sua frente se abriu. Melyria recuou e sentou-se novamente na cama. Fora um movimento quase que automático. Os recentes acontecimentos acarretaram no desenvolvimento de alguns instintos que ela antes não possuía, como recuar até algo em que se sentia segura ao ouvir um som desconhecido. 

Uma mulher entrou no quarto. Melyria suspirou de alívio. Já começava a achar que não haviam outras mulheres no mundo, pensou ela, visto que todos os seus últimos encontros tinham sido com homens. 

Ela usava um vestido leve e lilás que deixava o busto de traços delicados exposto. Seus olhos eram azuis-esverdeados e passavam um quê de segurança, os lábios eram carnudos e o nariz era arredondado. Algumas rugas de expressão já estavam à mostra no rosto, mas não serviam de nada para tentar apagar sua beleza. Os cabelos amarrados em tranças estavam jogados do lado esquerdo, caindo pelo pescoço até a altura do peito. Era alta e tinha um corpo esguio, cujas curvas podiam ser notadas mesmo debaixo do vestido. 

A mulher caminhou alguns passos quarto a dentro. Parou à frente de uma tapeçaria. 

“Como você está se sentindo, Melyria?”, perguntou. Sua voz era mais grave do que Melyria tinha imaginado, mas a entonação era tão suave quanto o canto dos pássaros na floresta. Era reconfortante.

“Cansada”, respondeu. “Mas acho que estou bem.”

“Isso é bom”, disse a mulher. Ela sentou-se em uma das cadeiras e fez um sinal para que Melyria se juntasse à ela.

Hesitante, Melyria levantou da cama e, com passos diminutos e curtos, caminhou até uma das cadeiras. Sentou-se. O orbe acima afastou-se delas, grudando no teto. Melyria não conseguiu evitar mais uma olhada para a coisa. A mulher sorriu.

“Ele sente nossa presença”, comentou. “Chamamos de luminescente.”

“Ele está… vivo?”, Melyria questionou.

“Depende do seu conceito de vida, Melyria”, ela respondeu. 

Parece que desconhecidos conhecerem meu nome está se tornando um hábito, refletiu. 

A mulher não deixou de notar o estranhamento que a menina não conseguiu esconder em seu semblante. 

“Chamo-me Antilaj”, disse. “Você deve ter muitas perguntas…”

Melyria respirou fundo. Tentava processar os últimos ocorridos a fim de iniciar seus questionamentos. Rapidamente, vários borrões de memórias surgiram em sua mente, tornando-a ciente dos acontecimentos: Saylem, ataque, Kalel e Ikram, Todrick, outro ataque e… Ela não conseguia entender exatamente o que tinha acontecido depois disso.

Era mais como um sentimento do que como uma lembrança. Havia uma raiva crescente que se acumulava dentro de Melyria e que tinha sido despejada contra a cavalaria loriana. Agora, sentia-se estranhamente mais leve ao mesmo tempo que ainda era capaz de notar traços dessa mesma ira ainda remanescentes em seu interior.

“O rio…”, ela começou.

“Foi impressionante o que você fez, Melyria”, Antilaj respondeu. “Mesmo sem nenhum conhecimento de nossas práticas, você soube como ouvir a voz desta terra e usá-la a seu favor.”

“Desculpe-me”, Melyria falou com um tom de voz confuso. “O que exatamente foi que eu fiz?”

“Saylem é uma terra distinta das outras ao seu redor, talvez única em todo o mundo. O chão abaixo de nós, o céu acima de nós, os rios que correm ao nosso lado, os animais que vivem aqui… Todas as coisas são suas amigas.” 

“Então… A natureza me protegeu?”, questionou.

“Essa poderia ser uma interpretação, sim. Mas acredito que uma explicação mais exata seria a de que você fez a natureza lhe proteger.” 

Melyria franziu o cenho. Os últimos acontecimentos alinharam-se, ela conseguia lembrar-se do que fizera, de como usara a água do rio para matar homens e cavalos afogados.

“Você é uma bruxa”, ela afirmou.

“Assim como você”, Antilaj respondeu.

“Então… Este é o Lilithar, certo?”

“Precisamente.” 

“Quanto tempo se passou?”

“Resgatamos você há quatro dias.”

“E Kalel e Ikram?”

“Os corvos também estão aqui, sob nossos cuidados. Todos eles.”

Melyria arqueou as sobrancelhas.

“Por que os chamam de corvos?”

“É o nome da ordem deles em uma língua morta”, Antilaj respondeu. “Vastag.”

Melyria não respondeu. Eles nunca me contaram isso, ponderou.

Ao notar o silêncio da menina, Antilaj manifestou-se:

“Você gostaria de conhecer o Lilithar, Melyria? Sente-se capaz no momento?”

Na mesma hora, o estômago dela roncou fortemente. A conversa quase a fizera esquecer da fome gritante que estava sentindo.

“Na verdade”, ela disse, levando a mão ao abdômen. Sentiu o fraco, mas persistente, latejar de um ferimento. “Gostaria de comer alguma coisa.”

Antilaj sorriu e levantou-se: 

“Leve o tempo que quiser, Melyria. Comida será trazida para você e, quando estiver pronta, lhe mostrarei o Templo. Este lugar pode ser sua casa, se assim você desejar.”

Ela saiu pela porta, encostando-a com delicadeza. Melyria não conseguiu conter um sorriso com o canto da boca. Pode ser minha casa?

Algum tempo depois, Ikram despertou em um quarto bastante parecido com o de Melyria. Era espaçoso, porém o teto era mais baixo. 

Seus olhos se abriram lentamente, os ouvidos sensíveis notavam os sons de conversa próximos, mas ele não era capaz de discernir o que diziam. Estava, inegavelmente, deitado numa cama. Os pelos arrepiaram-se, o ambiente estava levemente frio. 

Conseguiu perceber seu corpo, vestia apenas uma calça fina de algodão. Bandagens cobriam-lhe o abdômen. 

Lorianos de merda, lembrou. 

Ele não erroneamente considerou que tivesse morrido. Não teriam cuidado dos meus ferimentos no inferno, ponderou. 

Ikram apoiou-se nos cotovelos e levantou o tronco. Uma onda de dor percorreu todo o corpo, especialmente na lateral da barriga. Ele estremeceu de dor. Encostou-se numa parede, suas pedras frias cobertas por uma tapeçaria. A respiração era pesada e lenta, sentia uma leve ardência nas vias respiratórias e na garganta. Efeitos posteriores da loxicaina. Quanto tempo se passou?

Sentado na outra ponta da cama, próximo a seus pés, estava uma figura que Ikram reconheceu instantaneamente.

“Todrick…”, murmurou, doía falar. Seus olhos se acostumaram a alta luminosidade do lugar, e ele pôde ver as roupas que o homem usava. “Você… Esse traje…”

Todrick sorriu. Covinhas se formavam em suas bochechas conforme o sorriso cortava-lhe o rosto. Está aí uma boa visão para ter logo ao acordar, Ikram refletiu. 

“Olá, Ikram”, ele falou. “Suponho que eu lhe deva algumas explicações.”

Ikram tentou levar a mão em direção a Todrick. Não conseguiu encontrá-lo. Os olhos diziam-lhe que estava mais perto dele do que realmente estava. Minha percepção está alterada, deduziu. Ainda há resquícios do estimulante em meu corpo.

“Vá com calma, Todrick”, uma voz masculina veio de longe. “Como você está se sentindo?”

Os olhos cinzentos de Ikram viraram-se para a esquerda. Ele analisou o cômodo, discernindo algumas figuras na paisagem esbranquiçada. Viu outras camas na parede paralela à que ele estava, mobílias e decorações geometricamente espalhadas pelo ambiente e um brilho estonteante vindo do teto. A luz era quase insuportável. Olhar para aquele ponto luminoso no alto era como olhar diretamente para o sol do meio dia. 

Duas formas humanóides e escuras destacavam-se em seu campo de visão, o imenso contraste era a única coisa que permitia a Ikram reconhecê-los. Os dois sentavam-se próximos um ao outro perto da cama de Ikram, ou assim seus olhos viam.

Estático e ereto numa das cadeiras, Ikram viu Kalel. Não estava com o traje comum dos Vastag, usava camisa e calças azuladas encobertas por um manto leve e negro. As tranças brancas caíam esparramadas pelo pescoço, escondendo parcialmente a cicatriz no pescoço. Estava descalço. 

Demorou alguns instantes, mas Ikram assimilou os olhos do companheiro vidrados, olhando profundamente para nada. Antes atentos até mesmo ao caminhar de pequenos insetos na grama, os olhos cor de âmbar de Kalel não respondiam a mínima movimentação. Cegueira temporária, Ikram pensou. Nunca tinha acontecido com ele antes.

E, ao lado de Kalel, usando uma túnica negra com detalhes que imitavam as plumagens acinzentadas dos corvos de Nakur, estava Darius, o Manto Negro. 

Os cabelos do homem, eternamente desgrenhados, tinham ficado mais grisalhos desde o último encontro com eles. Um cavanhaque de ralos fios negros contornava-lhe os lábios finos e o queixo marcado. Os olhos azuis-acinzentados eram um misto de curiosidade com preocupação, que também era delatada pelas rugas de expressão na testa. 

Seus traços aquilinos e a pele branca já começavam a mostrar alguns sinais de seus quarenta anos, mas mesmo estes não eram capazes de ofuscar o ar jovial que sempre tivera. Era dele a voz que Ikram ouvira. 

“Manto…”, ele sussurrou. “O que você está fazendo aqui?”

Darius levantou-se e puxou a cadeira para mais perto da cama de Ikram. Kalel, apesar de não enxergar, fez o mesmo.

“Ah, Ikram”, falou. “Onde você crê que estamos?”

Obviamente não estou morto, Ikram refletiu. Estávamos em Saylem quando os Inquisidores atacaram. Tanto Kalel quanto eu sentimos os efeitos colaterais da loxicaina, mas já estamos acordados. Mais de um dia se passou, mas não tempo o suficiente para termos ido longe. Então…

“Aqui… É o Templo, certo?”, sussurrou. “Ele é real.”

Manto Negro fez que sim com a cabeça.

“Uma missão arriscada foi essa que lhes dei”, ele disse. “O mínimo que poderia fazer era revê-los quando ela terminasse.”

Ikram franziu o cenho. Incrédulo.

“Mas… Você estava no Antro”, salientou. “Como chegou tão rápido ao outro lado do mundo?”

Darius fez um sorriso com o canto da boca.

“Não vem ao caso, no momento”, respondeu. Aquilo significava que não deveriam tocar no assunto, e todos os Vastag iriam seguir essa ordem implícita sem questionar. “O que importa é que vocês três estão seguros… E Melyria também.”

Melyria!. Atordoado como estava, não havia passado pela mente de Ikram como a garota estava.

“Como ela está?”, perguntou.

“A salvo… Graças a vocês”, Darius disse, olhando para os três Vastag. “Mas ela também se mostrou capaz de proteger a si mesma… E a protegê-los também.”

Todrick concordou.

“Depois que desmaiei… O que aconteceu?”, Ikram questionou. 

“Foi… Desesperador”, Kalel murmurou. Sua voz soava diminuta aos ouvidos de Ikram, carregada de amargura.

Ele nunca esteve cego antes, pensou. Para alguém capaz de decorar paisagens apenas com uma única olhada… Isso deve ser horrível.

Kalel pôs-se a contar tudo o que acontecera. Desde o momento do desmaio, passando pela chegada de Todrick até os poderes de Melyria. Ao terminar de ouvir o relato, Ikram não conseguiu impedir os olhos de se arregalarem. Muitas coisas improváveis tinham acontecido num período tão curto de tempo. E ele não tinha visto nenhuma delas.

“No final das contas… Melyria realmente é uma bruxa”, comentou em meio a um suspiro. “Nossos contratos já foram menos incomuns.”

Ninguém falou nada. Ikram, que já estava mais ciente do ambiente ao seu redor, colocou os pés no chão e sentou ereto na cama, desencostando-se da parede. Sentado ao lado de Todrick, fitou-o por alguns instantes. Os olhos verdes dele e os olhos cinzentos de Ikram encontraram-se, sincronizados. 

“Obrigado”, Ikram murmurou. 

Acidentalmente, as mãos dos dois se encostaram em meio a coberta espalhada em cima da cama. O contato com a mão quente de Todrick arrepiou os pelos da nuca de Ikram, calor preencheu-lhe por inteiro. Ele cheirava como madressilvas, plantas tão comuns em meio a vegetação de Nakur, lembrava-lhe a casa. O perfume inebriava-lhe o olfato, seu rosto de anjo enfeitiçava a visão. Tamanha beleza… 

Todrick sorriu, entrelaçando um de seus dedos aos de Ikram.

“Eu gostaria de ficar sozinho… Com Kalel”, disse Ikram.

Darius sorriu e se levantou. Todrick hesitou, encarando-lhe por segundos imensos, afastou-se dele e saiu pela mesma porta que Manto Negro acabara de atravessar. 

Kalel levantou-se e sentou-se ao lado de Ikram, onde antes estivera o Vastag ruivo. A cegueira não parecia prejudicá-lo tanto assim, sua movimentação triunfava baseando-se nos outros sentidos que ainda dispunha e na percepção de correntes de ar e sutis mudanças de pressão no chão abaixo dele. 

“Há quanto tempo você está cego?”, questionou Ikram.

“Fazem quatro dias desde os acontecimentos em Saylem”, ele respondeu. “Despertei ontem… Assim.”

“Quão grave é a cegueira?”

“Quando acordei, não conseguia enxergar nada. De ontem para hoje, começo a notar alguns vultos. Tudo é escuro.”

“E Noken?”

“Passou por tudo quase sem ferimentos. Ele está nos jardins.”

Jardins… Não imaginava que ervas-daninhas poderiam crescer neste solo, pensou. 

Os dois mantiveram-se em silêncio por um tempo. Kalel o quebrou.

“Não foi a primeira vez que quase presenciei sua morte”, ele disse, a voz sutilmente falhando. “Mas dessa vez foi diferente… Eu… Eu desisti.”

Ikram se surpreendeu. Demonstrações tão claras de emoção não eram comuns no típico Kalel. Mas nem a cegueira era.

“Não havia como me salvar, Kalel”, respondeu. “De nada valeria que você também morresse.”
Ikram notou os olhos de Kalel voltados para sua face. Ele sabia que o companheiro não enxergava nada no momento, mas mesmo assim o encarava como se pudesse ler seus pensamentos. 

Na maioria dos casos, Ikram nunca fora capaz de deduzir o que se passava na cabeça do Dançarino. Havia algo de único em Kalel, algo que ele não era capaz de interpretar e que protegia seus pensamentos e sentimentos como uma mãe protege seu filho. Era uma casca, tão grossa e envelhecida que ninguém seria capaz de penetrar.

Mas mesmo o tom de voz quase imutável de Kalel não conseguia esconder os sentimentos mais gritantes. Nas frases que tinha dito, Ikram ouvia o pesar e a culpa, o baque surdo das cimitarras do Dançarino caindo no chão, a impotência que ele sentira ao saber que não podia fazer nada. 

Os olhos, por outro lado, não mentia. Contavam uma história diferente. Não eram os olhos de um Dançarino derrotado, salvo apenas pela intervenção de forças exteriores a ele. Eram o olhar cego de Kalel, companheiro e irmão de Ikram, em que se podia enxergar o alívio gritante, a felicidade reprimida e a gratidão não declarada.

E, acima de tudo, Ikram enxergava nos olhos cegos de Kalel o quão importante ele era. Não é um olhar que recebo com frequência, refletiu. Mas é tão reconfortante. Ah, Kalel… Nem mesmo os sábios poderiam entender o que se passa contigo.

“É este lugar”, Kalel sussurrou. “Algo no ar intensifica nossas sensações.”

Ikram aproximou-se de Kalel. O Dançarino sentia a respiração lenta do companheiro nos pelos de sua barba. 

“Naquele instante… O que você sentiu?”, Ikram perguntou.

“Medo”, respondeu Kalel. “Em um momento, você estava ao meu lado. No outro, eu estava sozinho.”

Ikram sorriu.

“Eu estou aqui agora. Ao seu lado.”

“Eu sei.”

Kalel levou a mão ao rosto de Ikram, encostando seus lábios nos dele.

Melyria abriu a porta e deu de cara com Antilaj. 

Horas atrás, outra mulher havia lhe trazido uma bandeja com frutas e ela tinha devorado-as como se nunca tivesse comida na vida. Não reconheceu todas as frutas, mas elas certamente estavam deliciosas.

“Posso assumir que você está pronta para um passeio?”, Antilaj perguntou. 

“Estou”, Melyria respondeu.

As duas estavam no meio de um corredor largo decorado por portas e mais portas em ambos os lados. Com uma olhada ao redor, Melyria espantou-se com o tamanho do local: o teto abobadado do corredor deveria estar há vários metros acima da cabeça dela. Tanto as paredes, o chão e o teto eram feitas de uma mesma pedra polida com um tom de azul escuro que se aproximava de preto. Filetes de tonalidades que iam de púrpura ao lilás desenhavam curvas e espirais incrustadas nas pedras. Exatamente como as veias de um ser humano, pensou.

Antilaj não deixou de reparar no olhar intrigado de Melyria dirigido às pedras. 

“Magicita”, disse. “Toda a estrutura é feita com essas pedras… Elas absorvem energia.”

Melyria franziu o cenho, não disse nada. Ela não sabia se fora apenas um reflexo dos olhos, mas os filetes roxos pareciam mover-se lentamente, como se algo fluísse por dentro deles.

“Acompanhe-me, por favor”, Antilaj falou. 

O andar da mulher era majestoso como o de uma rainha. Ainda usava o mesmo vestido lilás, que dançava no ar conforme ela se movimentava. Caminhava descalça, mas o chão não parecia lhe incomodar. Melyria a seguiu, andando sempre alguns passos atrás. Seu caminhar ainda era lento e levemente arrastado, sentia uma sutil pontada de dor no quadril a cada passo. 

Antilaj dirigiu-se para o final do corredor. O caminho abria-se em um salão hexagonal com um altíssimo teto abobadado, feito de magicita. Estantes iam de vértice a vértice e erguiam-se até as alturas, entupidas de livros, pergaminhos e papiros. Almofadas e pequenas mesinhas estavam dispostas no centro da câmara sob um grande e arredondado tapete.

Vários luminescentes, agora brancos, voavam pelo salão num movimento lento, garantindo que não houvesse nenhum espaço com baixa luminosidade. Todos os orbes pareciam flutuar unidos, como se fossem parte de uma mesma constelação em movimento. Eles realmente pareciam formar desenhos no ar. Eram lindos.

“Esta é a biblioteca”, disse Antilaj. “Melyria, você sabe ler?”

Melyria olhou para o chão.

“Não”, murmurou. 

Não por escolha própria, pensou. Ler e escrever eram duas práticas que Melyria muito tinha sonhado realizar, achava fascinante ver como símbolos e traços formavam palavras, havia algo de belo naquilo. Infelizmente, essas não eram habilidades que a filha de um fazendeiro precisaria e, por isso, nunca a ensinaram. 

Antilaj encostou a mão no ombro de Melyria. O toque macio da mão da mulher fez a garota encolher-se por um instante. Alguns instintos nunca mudariam.

“Não há vergonha em admitir isso”, falou. “Você será ensinada.”

Melyria sorriu um sorriso amarelo.

À frente delas havia outra passagem. As duas atravessaram-na e viram-se numa sacada com vista para Saylem. 

Mas era uma Saylem diferente da qual Melyria conhecia. 

No horizonte, o sol estava se pondo em meio à tons de vermelho e laranja e nuvens rosadas. Seus últimos raios tingiam a vegetação verdejante e davam-lhe tons amarelados. E como havia vegetação! Pastos e jardins estendiam-se até onde o olho podia enxergar, árvores e arbustos decoravam a paisagem e um rio caudaloso cortava a grama coberta de flores ao meio. 

O Lilithar parecia estar situado numa elevação considerável, o que garantia-lhe uma boa vista do vale que se estendia por todo seu campo de visão. Pôde distinguir algumas figuras humanóides em meio à relva alta, todas mulheres. Pássaros voavam e cantavam nas árvores. Uma brisa leve a atingiu. Era a sensação de paz. 

“Este lugar… Ainda estamos em Saylem?”, Melyria quis saber, 

“Bem diferente da Saylem que você conheceu, certo?”, Antilaj respondeu. Melyria assentiu com a cabeça. “Este templo e seus arredores estão escondidos dos olho inimigos espalhados pelo mundo. Só as filhas de Lilith, como eu e você, podem encontrar o caminho para o Lilithar em meio às terras desoladas.”

“É por isso que o rio apareceu para mim naquele momento, então?”, disse Melyria. Antilaj concordou.

Melyria deu alguns passos para frente e encostou as mãos na pequena mureta da sacada, também feita de magicita. Fechou os olhos, respirou fundo. Abriu-os novamente. Os jardins ainda estavam ali. 

E eu poderei chamar este paraíso de casa, pensou. 

“Como vocês mantém tudo isso em segredo?”, perguntou.

“Há um feitiço”, Antilaj respondeu. “Todas nós garantimos que ele continue em funcionamento. Enquanto o encantamento perdurar, tudo que poderá ser visto em Saylem será apenas o vazio e o desespero da solidão.”

Melyria ficou alguns minutos parada, contemplando a vista. Tudo que tinha conhecido eram plantações e vilarejos. Não teria conseguido imaginar um lugar como aquele nem em seus melhores sonhos.

As duas refizeram o caminho e seguiram na outra direção do corredor, que se desembocava na parte central do Lilithar. A ala central também era um hexágono repleto de luminescentes, mas tinha no mínimo o triplo do tamanho da biblioteca.

Não havia teto, o céu acima delas era uma mistura de tons quentes e frios que marcava o pôr-do-sol e o nascer da lua. No centro do salão, uma plataforma em formato de concha servia de base para… Melyria não sabia exatamente o que era aquilo. Demorou alguns instantes para processar o que via. 

Da concha de magicita, quatro fios de… Ela não sabia do que… dançavam entre si, translúcidos. Eram imensos e poderiam iluminar todo o lugar sem a ajuda das orbes de luz que flutuavam ao redor deles, mas que pareciam manter uma distância mínima. Um dos fios era alaranjado, outro azul claro, um outro branco e o último marrom. Produziam um som agudo, porém agradável, quando colidiam entre si. 

Os luminescentes pareciam acompanhar a coloração dos filetes conforme a proximidade com eles. Era um espetáculo visual.

Melyria aproximou-se da concha, estupefata.

“O que é isto?!”, perguntou, totalmente maravilhada. A paisagem do vale parecia tão simples e genérica perto da beleza daqueles filetes bruxuleantes.

“Chama-se Aleril”, respondeu Antilaj. “É uma entidade de magia elemental, tão antiga quanto os primórdios do mundo… É ele que canaliza o feitiço que nos mantém a salvo do mundo de homens e deuses falsos.”

“Magia elemental?”, o termo chamou a atenção de Melyria. 

“Um dos caminhos do arcano”, Antilaj revelou. “Este está associado às manifestações do fogo, água, ar e terra… E de suas misturas.”

Os fios elementais aproximaram-se das duas bruxas, como se tivessem ouvido o que Antilaj falara. Melyria não deixou de reparar nisso. A forma como se movimentam, tão harmônica…

“Aleril… Está vivo”, ela sussurrou. “É um ser vivo.”

Antilaj assentiu. 

“Tudo aqui está.”

Melyria sorriu. Estendeu a mão na direção de Aleril. A entidade recuou por um instante, mas voltou-se a aproximar. O fio de fogo brilhou mais forte e aproximou-se da mão de Melyria, envolvendo-a com seu calor. 

A garota estremeceu, sentia uma chama quente e reconfortante percorrendo todo o seu fogo. Em seguida, veio o fio de água, apaziguando o calor e inundando-a com calmaria. O fio de ar serpenteou entre os dois e tocou a mão de Melyria, transmitindo-lhe toda a sua leveza e astúcia. Por fim, o fio de terra revestiu-se entre os outros elementos e a mão trêmula, dando-lhe firmeza e segurança.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Melyria. O toque dos elementos acabou com todas as suas dores físicas, não restava mais nenhuma.

 É a coisa mais bela que já vi na vida.

“Aleril gosta de você”, Antilaj sussurrou. “Agora está na hora de seu encontro com Cyrena.”


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Notas finais do capítulo

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