Pacto No Desespero escrita por Crosfilos


Capítulo 3
Capítulo 02




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Vários insetos, atraídos pelo intenso cheiro de sangue de minhas feridas abertas, em pequenas revoadas famintas zumbem perto do meu ouvido e pousam em minha pele desprotegida, fazendo com que eu recobre a consciência. 

Minha garganta queima como se eu tivesse engolido um pote de brasas, seguida de dores finas e profundas em minha cabeça. Não consigo nem ao menos respirar sem sentir sua presença. 

Em um súbito movimento erróneo de língua, desatrelo a sensação de agulha mutilando minha carne de dentro para fora. Com grande temor, me esforço para não mexê-la outra vez. A saliva que começa escorrer de minha boca sem freio, misturada juntamente ao sangue, é intragável. Pois o mero ato de tentar limpá-la ou engoli-la, é surrealmente dolorido para mim.  

Com minha face ensopada de sangue tanto fresco, quanto desidratado, fecho os olhos para obter um pouco de alivio. E começo a refletir sobre o que se passou.

"- Se somos família por que sou tratado dessa forma? Por que eu sou fraco? Por que eu não posso..." - Questiono a mim mesmo, enquanto dor e frustração rivaliza entre si, dentro de mim.

Mesmo grogue pela dor, consigo acertar um tapa em um besouro que sonda ao redor de minha cabeça para colocar suas larvas, ou simplesmente consumir minha carne, e ao fazê-lo, vejo o incerto cair em uma pequena toca de coelho escura. Em um lampejo de clareza, eu me recordo do lugar que eu devo ir.

— O Ritual. – Aviso a mim mesmo com dificuldade, e logo depois me arrependo da dor que vem em seguida por falar em voz alta.

Reúno minhas forças, e mesmo meu corpo queimando de fraqueza me levanto com determinação, serro meu punho, sigo apressado em direção ao portão do castelo. Pois a noite se aproxima, e eu sei que eles não me esperariam caso eu me tarda.

O ritual, é minha única escolha, minha única alternativa de ser alguém, de ser reconhecido e respeitado por minha família, por meu clã. E se eu perder essa oportunidade, não irá restar nada para mim. E depois do que meu pai disse nem lugar para retornar eu teria, eu seria apenas uma cadáver esperando para ser devorado pelas larvas.

Me agarro a minha última gota refinada de esperança que ainda me resta e rumo em direção ao castelo. Me esforçando ao máximo durante o trajeto de volta, para não ceder novamente ao pedido de socorro de meu corpo de cair no chão inconsciente para me recuperar da dor.

Dentro dos frondosos muros, resisto para não molestar ninguém que ali se encontra com minhas lamurias de dor que constantemente martela minha boca e o restante da minha cabeça. Pois só me traria mais risos e vergonha por eu ser tão fraco.

Depois de atravessar as defesas fortemente guardadas, adentro no exuberante jardim de rosas disputados pelas esposas do meu pai e minhas irmãs, e o contorno para chegar ao pátio central, onde 6 carruagens se encontram dispostas uma atrás das outras com uma dezena de cavaleiros que irá escoltar a comitiva.

A atenção dos presentes não seria bom para mim. Ainda mais se os meus primos e irmãos já soubessem que derrubei Clark e roubei comida da cozinha. Pois por suas personalidades, cada um deles iria fazer questão de ter a chance de aplicar sua própria disciplina em mim.

Meu corpo treme levemente devido a brisa fria que me pega de surpresa.  Pequenos espasmos involuntário surgem por todo meu corpo. Ao passo que um pequeno filete de sangue desce pelo meu nariz.

Limpo o sangue e sinto meu estômago queimar devido a fome, pois não como ou bebo desde o dia anterior.

Com certa maestria, de anos tentando passar despercebido pelos demais ao meu redor, me escondo entre a última carruagem dos serventes e um jarro grande de rosas. E observo todos os que iram para o ritual entrarem em suas carruagens.

Avisto meu pai entrar na primeira carruagem sendo acompanhado pelos meus irmãos que participaria do ritual e dois anciões do clã. E nas demais carruagens foram ocupadas por algumas esposas do patriarca, alguns primos, tios e outras pessoas que desconheço, mas que provavelmente ocupam uma alta posição dentro do clã.

Quando todos estão prestes a sair, subo na última carruagem e fico lado a lado com o cocheiro, pois as damas de companhia das senhoras do clã não me aceitariam dentro da mesma carruagem. Ainda mais ferido, sujo e coberto do meu próprio sangue.

Quando sento do lado do cocheiro, esse se afasta me maldizendo um olhar de nojo e repulsa por estar perto de mim. Sem perceber, e como uma reação já quase automática de meu corpo, me encolho ao máximo no canto do acento para não o provocar.

O sol começa a beijar as aguas gélidas do mar, quando finalmente as carruagens do clã mais poderosos e respeitado da ilha chega aos pés da montanha onde irá ser realizado o ritual.

Alguns comerciantes já ocupam as margens da estrada, postos pelo local, com tendas improvisadas de madeira e pele de ovelha, e outros com panos sobre o chão vendendo desde raras ervas, poções à espadas de qualidade inferior.

Grandes e selvagens feras que servem de montaria para figuras poderosas podiam ser vista espalhadas pelo local, simbolizando que há gente no topo da montanha para o ritual. Comitivas de outras famílias chegam sem parada e se aglomeram ali.

O ritual, como um acontecimento muito importante da ilha, anualmente reuni os patriarcas de todos os clãs. Onde de maneira pacifica e não anunciada oficialmente, competem entre si para ver qual criança despertará o espírito mais poderoso. E assim mostrar a superioridade da futura geração sobre os demais.

Toda criança ao atingir os 6 anos de idade, como uma sagrada tradição e o único direito que poderiam ter, é a chance de participar do ritual.  Do contrário, eu nem mesmo poderia sonhar em fazer parte de um acontecimento tão grande.

Como o clã de maior poder da ilha, é tradição que os Marlleos sejam os últimos a tomar seus acentos no topo da montanha, e só então que o ritual teria início.

Quando todos os clãs que irá participar da celebrações deste ano já se encontram no topo da montanha, é chegada a vez dos Marlleos. E antes de descerem de seus veículos, me adianto para não ser notado e desço para me esconder atrás da carruagem que me trouxe.  

As portas das cabines rangem e se abrem. De seus interiores ricamente ornamentados descem os Marlleos, orgulhosos e soberbos, atraindo a atenção de todos aqueles que ainda se encontram no local.

Em passadas firmes o clã sobe as escadarias de pedras, levantando admiração e medo dos que ficam para traz por não poderem presenciar tal solenidade. E assim que se afastam a uma distância considerável me apresso em segui-los, mas me asseguro de manter uma distância na qual eles não se incomodar com minha presença.

Os braseiros dispostos a cada dezena de metros para iluminar a passagem para o topo, crepita em ardência. Fagulhas sobem pelo calor das chamas, iluminando exitosamente a fumaça antes de perecerem caladas quando seus brilhos se apagam. O vento chacoalha as árvores em torno do caminho e sombras sem formas dançam quando o fogo se curva a sua passagem.

A escuridão recai sobre a montanha quando finalmente chegamos ao seu topo.

O platô da montanha se constitui em um grande altar circular cercada de pilastras, ricamente polidas, com entalhes de runas por toda as suas estruturas, criando um padrão que tem como centro uma grande pedra que emite um brilho sutil em tons de azul escuro.

Aos pés de cada uma das 12 pilastras, 3 cadeiras se disponha ocupadas pelo que parecia serem os patriarcas e anciões de cada um dos 12 clãs da ilha. No entanto ainda resta 3 acentos à serem ocupados.

Com várias pessoas ao redor do grande altar, mas ninguém é permitido subir, com a exceção dos patriarcas, anciões e do sábio e poderoso druida que comandaria a realização do ritual.

O patriarca do clã Marlleo sobe com os dois anciões, que o acompanha e tomam seus acentos abaixo do pilar que representa seu clã.

Com todos os preparativos iniciais atendidos com êxito chega a hora, e um homem velho com trajes gastos pelo tempo e sujo por terra e folhas, se encaminha em direção a pedra no centro.

O vento sibila mais uma vez forte por entre as copas das árvores abaixo, como um sinal de aprovação ao ritual que está começando. O druida se ajoelha perante a pedra brilhante e começa a ressoar um canto baixo em uma língua estranha, mas que todos os presentes de alguma forma puderam ouvir.

Todos se mantem em silêncio, em referência ao momento sagrado.

Minutos se transforma em horas, e as palavras do druida rivaliza com o descontentamento do vento contra as árvores. E quando a lua atingi seu ápice no centro do céu noturno, marcando a meia noite, que o druida sessa com seu cântico. Ele se levanta, e olha brevemente para os presentes no local, então direciona sua atenção à lua e ergue suas mãos em direção a ela.

— Sagrado é vosso nome, deusa da caça e da maré. Que nesta noite santa possamos a glorificar, através dos jovens espíritos que se manifestaram ao mundo e serão banhados no seu glorioso brilho pela primeira vez. - Diz o druida, e materializa um cajado retorcido de madeira em sua mão, ele o bate com força no chão.

Como se a ponta do cajado que tocou o altar fosse fogo em óleo de baleia, este se incendeia em uma onda de fogo branco, que se propaga por toda sua superfície alcançando os cumes dos pilares. Tão rápido quanto se propagou, o fogo branco se apaga. Porém ele deixa vestígios de sua presença, acendendo os milhares entalhadas de runas pelo lugar.

Uma a uma, como se fossem folhas secas ao vento, o brilho das runas se desprende de suas formas de pedras como uma dança suave, levitam em direção à pedra no meio do altar, sendo absorvidas por ela.

A cada runa que a pedra absorve seu brilho aumenta, e no momento que não resto mais nem uma a vista. A pedra começa a emitir raios de luzes tão fortes, que rivaliza com o próprio brilho da lua que desponta no céu.

O raios desordenados que sai da pedra se juntam em um único feixe de luz, que se ergue como um pilar em direção à lua.

— Phanteia mais uma vez nos agraciou com sua vontade, nosso tempo é curto e a alvorada se aproxima. - Faz uma pausa enquanto limpa a garganta e continua. - Pelo respeito à força do mais forte, dentre os clãs da ilha da Caldeira, que entre a primeira criança do clã Marlleo. – Ordena o Druida.

Como mais forte e velho dos Marlleos, meu meio irmão Clark é o primeiro a subir no altar. Com o peito estufado e em pisadas fortes, ele segue em direção ao Druida, com o olhar de todos os presentes sobre ele.

— Criança diga teu nome e ponha tua mão direita sobre à lagrima da deusa. Para que ela possa derramar a vossa benção sobre tua alma, e revelar o valor do teu espírito diante do mundo.

— Sim. – Diz firme, olhando de relance para o rosto orgulhoso de seu patriarca, antes de prosseguir com a ordem do maior. - Meu nome é Clark. - Grita.

Quando a mão de Clark toca a face da pedra, a luz, que dela, se ergue para o céu, o envolve lentamente o fazendo fechar os olhos. Poucos segundos se passa e em um forte urro de dor, ele retira a mão da pedra e abre os olhos.

A luz que cobre seu corpo se direciona a sua mão direita, e sobre ela uma bola de luz se ergue, e a cada centímetro que ela se afasta de sua mão a bola de luz tremula, enquanto se molda na forma de um pequeno martelo cinza.

—  A deusa demonstrou sua vontade, criança, ao herdar o mesmo espírito de teu pai, tu honra tua casa e teus ancestrais, tu foi agraciado com um espírito forte do tipo ferramenta. - Afirma o ancião, demonstrando satisfação com o que via.

— Consegui, pai! - Afirma, segurando o pequeno martelo, e olha para o nosso pai, que fecha os olhos em um suspiro e assente positivamente com a cabeça em um pequeno sorriso.

Murmúrios de espanto, admiração e maldizeres de inveja, ecoam nos cochichos entre os membros dos demais clãs ao redor do altar. Alguns patriarcas e anciões cerram seus punhos em um grito surdo de ódio, pelo feito alcançado do filho do odiado patriarca do clã dos Marlleos.

Com o pesado martelo que emana luz avermelhada. Clark desce do altar sendo recebido com um forte abraço de sua mãe e o comprimento de orgulho e admiração de nossos tios e primos.

— Suba a próxima criança. – Ordena o Druida para os presentes, e estes se calam.

Thresh é o próximo a subir. E como seu irmão, ele sobe pomposo e orgulhoso, certo de que assim como seu irmão mais velho ele também irá despertar um forte espírito.

— Criança diga teu nome e ponha tua mão direita sobre à lagrima da deusa. – Repete o Druida.

— Meu nome é Thresh. - Grita, mais alto do que seu irmão mais velho. E assim como acontecera com ele, a luz da pedra o envolve.

Mesmo sentindo seu corpo queima Thresh resiste e não emite um único ruído. Pois ele deseja que todos ali tomem a ciência de que ele é superior ao seu irmão Clark.

A bola de luz se forma em sua mão, e quando este finalmente sente o alívio suficiente para abrir os olhos e respirar tranquilo, ele vê diante de sua mão, flutuando, uma pequena bigorna da mesma coloração do martelo de seu irmão.

— Estes são sangue do meu sangue, minha descendência. - Diz o patriarca dos Marlleos para que cada um dos presente ouvissem que assim como tem sido há gerações, novamente os Marlleos despertam os espíritos mais poderosos que se tem notícia na ilha.

— Finalmente podemos tomar um descanso...- Comemora o ancião Clartis.

— O futuro de nosso clã está garantido nas mãos destes dois. - Afirma o segundo ancião, sentado à esquerda do patriarca.

Murmúrios de mais maldizeres se levantam escondidos e pouco abafados pelas mangas das vestias dos que cochicham ao redor do altar.

— Criança, tua família é benzida pela deusa nesta geração, teu espírito do tipo ferramenta é forte como o do teu irmão.

Segurando a bigorna na mão, Thresh, a aperta com força e cerra seus dentes enfurecido por ter perdido para seu irmão. Pois mesmo que a bigorna seja um espírito poderoso, ela nunca será tão forte quanto o martelo. Enfurecido ele desce do altar e atira sua bigorna no chão, e ruma em direção da sua mãe.

Assim que ele se afasta a bigorna, que abri um pequeno buraco no chão com sua queda onde fora arremessada, desaparece.

— Não se preocupe, filho. Mesmo que seja a bigorna, você ainda não perdeu a posição de futuro patriarca. - Consola a sua mãe, enquanto abraça o filho e fulmina com um olhar de ódio o sorriso sarcástico da mãe de Clark, que a fita com superioridade.

— Que suba a próxima criança. - Ordena, fazendo novamente com que todos se calem.

Como são irmãos gêmeos, Mlut e Melt sobem juntos no altar de mãos dadas, confiantes por terem a presença um do outro ali.

— Como almas que nasceram juntas, devem despertar vossos espíritos da mesma forma. Adiante e coloque vossas mãos direitas sobre à lagrima da deusa ao mesmo tempo e falem teus nomes.

Os irmãos assentem com a cabeça e toca a pedra.

— Melt.

— Mlut

Os dois pronunciam ao mesmo tempo e, cerram os olhos, e quando voltam a abri-los ambos testemunham a bola de luz disforme ganhar uma nova forma.

Entre uma troca de olhares, os dois contemplam os espíritos despertados um do outro com um sorriso.

— A deusa novamente mostrou a vossa vontade, garoto orgulhe-te por despertar o poderoso espírito do baiacu do tipo animal. E tu garota, despertar-te o poderoso espírito do peixe gato, também do tipo animal.

— Seus netos possuem um grande talento, serão capazes de grandes feitos para o futuro do clã, ancião Yao.

— Você me bajula ancião, Clartis, isso é tudo graças às preses que fiz em prol da deusa Phanteia.

Os dois irmãos descem do altar enquanto brincam com seus espíritos animais, que flutuam pelo ar como se estivessem nadando.

— Que suba a próxima criança. - Repete o druida.

Segurando as abas do longo vestido que traja, Maria sobe no altar e se dirige para junto do druida.

— Com a mão direita toque na lágrima da deusa e diga teu nome, criança.

— Maria. - Anuncia tímida, mas em voz alta, quase gaguejando.

A luz da pedra é passada para seu corpo, assim como fora nas vezes dos outros. Só que desta vez algo está diferente. A luz que cobre o corpo de Maria não se condensa em um esfera de luz e flutua para fora de seu corpo.

Em um grito de dor, Maria cai no chão ao sentir seu corpo ferver a medida que um desejo incompreensivo por sangue brota em seu interior. Seus dentes rangem, enquanto crescem desproporcionalmente ao tamanho de suas mandíbulas, sua face se enruga e pelos cada vez mais a reveste, suas unhas pulam para fora, enquanto novas nascem no lugar como estacas e ossos de suas mãos e pés. E em um estalo violento ela rasga o seu vestido, já com o corpo coberto de pelos e olhos avermelhados, e sem controle de si mesma ela parte para cima do Druida desejando provar o sabor de sua carne.

O Druida respeitado e temido em todo o arquipélago das 7 ilhas não se move, e em sua face serena nem mesmo a menor perturbação é notada. E antes mesmo de Maria conseguir tocá-lo ele levanta sua mão esquerda, e com o dedo toca a testa peluda da garota, que cai ao chão completamente inconsciente em seu estado normal.

— A deusa demonstrou novamente sua vontade. Esta garota herda a pele de um poderoso guerreiro. Seu espírito pele de urso é do tipo corpóreo. E tal poder e ferocidade só é vista uma vez a cada geração.

— Que a deusa seja louvada. - Clama o ancião Clartis para o Druida.

Ninguém ousa dizer uma única palavra, pois todos estão admirados com a força que o druida demonstrou diante de seus olhos. Pois sem esforço, e em um instante, ele suprimira completamente um descontrolado espírito corpóreo que acabara de despertar. Feito este que nem mesmo os patriarcas ali presentes conseguiriam executar com tamanha facilidade e rapidez.

O ancião retira sua capa para cobrir o corpo desnudo de sua neta, e com ela em seus braços ele se retira do altar.

— Que suba a próxima criança. – Ordena novamente o Druida.


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