Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 75
Capítulo 73 – Um começo e um fim.




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A estreia do espetáculo foi um sucesso estrondoso! Logo depois da noite de abertura saímos para festejar, todo o grupo. Manuel, claro, estava lá. Quase não temos nos falado desde a última noite que passamos juntos. Talvez para evitar qualquer tensão sexual. Se há uma coisa que não posso negar no meio disso tudo é que nosso sexo era muito bom. Talvez o melhor que já tive... E está estampado no seu olhar que a recíproca é verdadeira. Sinto os elos da nuca eriçar com a mera lembrança do fato.

Flavius preferiu não participar da comemoração. Disse que era um momento nosso. Mas ele estava radiante! Parecia se empenhar um pouco mais em acompanhar o universo da dança, e agora já arriscava entender de alguma coisa. Sinto-o se dedicando mais a penetrar meu universo depois da ultima grande tensão que tivemos. Isso tem melhorado as coisas, afinal de contas, agora, tenho vivido a dança muito mais intensamente do que quando nos conhecemos, e é bom que ele participe disso.

O que me estranha é que Flavius não parece disposto a construir seu próprio universo. Enquanto Natasha mergulha na culinária e Michel constrói um reinado no teatro, Flavius parece satisfeito em enxugar os pratos com um fone no ouvido. Imerso em suas músicas instrumentais e nos estudos colegiais. As vezes o pego escrevendo alguma coisa em seus cadernos, desenhando pequenos rascunhos. Mas talvez não passe de um passa tempo refinado. Nada que lhe construa uma identidade.

Certo dia perguntei a ele onde se imaginava daqui a dez anos. ‘Ao seu lado’ ele respondeu. Desejei que fosse a mais pura, simples e bela verdade. Mas é preciso ser mais do que isso para sustentar uma vida. É preciso ser mais do que o parceiro de alguém... e não vejo Flavius se esforçar em ser seu próprio alguém.

Eu, ao contrário, estava convencido de quem eu seria de agora em diante: um grande bailarino! É evidente que meu desempenho dessa noite não passaria desapercebido, todos foram unanimes em me considerar a grande estrela da noite. E tinha certeza de que algo seria dito a respeito disso nas críticas dos jornais. Era uma estranha sensação de que algo grande estava definitivamente prestes a acontecer. Aquela sensação que sentimos no ar e que nos embriaga... a sensação de ser reconhecido por algo que sempre sonhou em fazer... Era meu destino mudando... Eram seus primeiros sinais...

Lembro-me de flashes dessa noite; os olhares languidos de Manoel, Cecília bebendo e falando muito alto. Juliana, a coreográfa, falando insistentemente que eu tinha ido muito bem. Carlos estava com um olhar estranho. Cecília falava coisas engraçadas vez ou outra. Manoel e eu nos beijamos no banheiro... De resto não me lembro de mais nada. Mal sei como cheguei em casa. Só me lembro de acordar e encarar um Flavius sorridente empunhando um jornal:

–Você precisa ler o que falaram de você! – ele disse como quem me dava um presente. Triunfante por ser ele a pessoa quem me ofertava a notícia. Estava consumado: eu havia sido um sucesso!

Não demorou para que chovessem telefonemas de amigos e até alguns parentes me parabenizando pela conquista. Três críticos haviam escrito sobre o espetáculo, e todos teceram elogios descabidos ao meu nome. Ainda sinto aquele formigamento nas bochechas. O coração a bater no meu peito. Flavius irradiava felicidade:

–Precisamos comemorar! – Ele disse – Só nos quatro!

–Somos cinco agora, esqueceu-se do Artur?

–Que seja. Precisamos comemorar! Como nos velhos tempos de Alvinópolis!

Algo dentro do meu peito murchou. A menção a Alvinópolis, de repente, me pareceu mesquinha, vulgar. Não queria qualquer lembrança que me remetesse a espécie de Fip que eu era lá. Um bailarino decadente a ensaiar num porão. Isso não era eu! Eu era o grande bailarino com o corpo estampado nos jornais! Não merecia nada parecido com Alvinópolis! Merecia mais!

Meu telefone tocou, era meu pai. Meu estômago se revirou:

–Atendo ou não atendo?

Flavius deu de ombros e disse:

–Atende, ué.

Atendi:

–Sim?

–Você esteve muito bem ontem a noite. Li as criticas nos jornais. Estou orgulhoso.

Me vi sem palavras. Era como se meu coração estivesse congelado. Ele, talvez percebendo que eu não sabia o que responder, continuou:

–Ouça, sei que temos nossas diferenças. Mas você é meu filho e isso nunca vai mudar. E eu sempre quis o seu bem. Eu não via futuro no que você fazia o no seu estilo de vida. Mas hoje vi que posso estar errado. Eu quero que a vida dê certo para você e fico feliz que você finalmente esteja levando a vida com seriedade e compromisso. Era isso que eu queria de você. Parabéns. E se um dia você quiser parar com essa besteira de me ver como o seu bicho papão e aparecer aqui para tomar alguma coisa estarei te esperando. Tchau.

Ele desligou e eu continuei ali, parado, com o telefone no ouvido. Um choro engasgado na garganta:

–Noticias ruins? – disse Flavius.

–Nã... não... ele disse... que está orgulhoso de mim.

–Uma hora tinha que acontecer. – ele sorriu – E você? Está orgulhosos dele?

–Como assim?

–Ué, querendo ou não, ele venceu um grande preconceito, não é? Ele passou a vida toda te negando, tentando consertar quem você é. Agora ele finalmente reconheceu você como pessoa. Isso é um grande avanço. Você deveria estar orgulhoso dele.

–É... eu acho que estou.”

...

–Aquilo é uma estrela cadente? – Eu disse apontando pro céu.

–Onde? – Michel perguntou olhando pra cima. Estavamos deitados no chão com a cabeça virada para a varanda.

–Já passou. É uma bosta a vista desse prédio. Os outros prédios tapam todo o céu. Eu gostava da vista de Alvinópolis. Dava pra ver o céu todinho.

–Por que vocês não esquecem Alvinópolis de uma vez por todas? – O Chico disse num acesso ridículo de raiva – Nossa vida é aqui agora! E quer saber? Eu gosto bem mais dela assim!

–Todos nós gostamos Chico. Mas Alvinópolis foi o lugar onde a gente se conehceu. Passamos bons momentos lá. A casa era super foda. Então abaixa sua bola e curte o momento, pode ser?

–Pode. – ele respondeu emburrado colocando a mão no queixo e observando a janela -.....Tá bom – ele disse depois de uma pausa – Eu admito, a vista daqui é uma merda. Mas esse apartamento é muito bom.

–Fip. Quando a gente elogia Alvinópolis a gente não está automaticamente dizendo que não gosta daqui, ok? – O Michel disse.

–Tá bom. É só que eu gosto tanto da minha vida agora que.... sei lá, eu quero viver o presente, entende?

–Claro. Ninguém está te culpando por isso. Estamos aqui pra comemorar sua vitória! Só nós três, como nos velhos tempos!

–Tem certeza que o Artur não vai ficar chateado por não ter vindo?

–Não. Ele saiu com os amigos dele também. Além do mais, essa noite tinha que ser nossa.

Flavius veio da cozinha com um copo na mão. Ele estava dançando sozinho, de olhos fechados, meio se desequilibrando por causa da bebida. Parecia extremamente feliz no seu universo particular.... como sempre esteve. Paramos e o ficamos observando, Michel, Chico e eu. Parecia tão sublime aquele momento. Como se pudéssemos ver toda sua esssencia. Foi quando olhei para Michel, para comentar alguma coisa qualquer, e captei seu olhar.

Tinha nos seus olhos algum brilho especial que eu ainda não tinha reparado... Ele estava gostando do Flavius:

–Estamos entrando num terreno perigoso aqui. – cochichei no ouvido dele.

–Do que você está falando? – ele respondeu olhando pra mim com um meio sorriso na boca.

–Depois conversamos sobre isso.

Flavius veio andando na direção do Chico e disse:

–Sabe... eu acho que quero saber.

Chico soltou uma gargalhada:

–Você quer saber o que?

–Quem era ele.

–Ele quem?

–O cara que você tava saindo.

O clima ficou super pesado. Chico murchou o sorriso devagar, eu e Michel nos olhamos com aquela cara de: “devemos sair ou não?”, mas ele soltou um sorrisinho como que dizendo: “É claro que não!”. E é exatamente por isso que eu o amo tanto!

Chico disse:

–Pra que mexer nisso agora? Estamos tão bem!

–Mas e por isso mesmo! Estamos começando uma fase nova das nossas vidas. Eu quero deixar o passado pra trás. Mas sinto que preciso saber.

–É... mas, Flavinho, tem certeza de que isso não vai reviver a ferida?

–Nãão, amor. É sério! Eu já estoude boa com isso. Mas eu preciso muito saber.

–Ok... foi você quem pediu... Vamos lá – ele respirou fundo – Foi o Manuel.

Flavius arregalou os olhos e disse:

–O Manuel? Uau! Com essa eu não contava.

–Eu sabia que não devíamos falar nisso.

–Não. Não... relaxa. Isso só... só me da muita coisa pra pensar... – ele disse meio atônito – Nossa...

–Quer dividir algum dos seus pensamentos com a gente? - o Michel disse.

–É que... sei lá... Se fosse qualquer um daqueles sebosos que eu nem gosto seria diferente. Sei lá, são caras que não me fazem diferença, entende? Tipo o Fernando é bonitinho, mas é meio idiotinha e tal. Mas o Manuel, tipo, eu ficaria com ele! Eu já cheguei a sentir vontade de ficar com ele. Cara, eu achava que ele era meu amigo.

–Ele gosta muito de você Flavius.

–Sei lá, dá um misto de inveja, ciúme e sentimento de traição. É confuso.

–Você está com raiva?

–Não. Eu já tinha decidido não sentir raiva. Mas é só... sei lá, meio estranho. Eu vou pro meu quarto um pouco...

Ele saiu caminhando com uma expressão meio indecifrável. Chico levantou pra ir atrás, o Michel disse:

–Não vá. Ele precisa digerir as coisas.

–Tá. – ele disse sentando de novo – Mas... bem, acho que a festa acabou, né?

–Talvez pra vocês. – eu disse me levantando – Mas eu acho que ainda posso fazer uma festinha na minha casa com meu boyzinho. Se vocês me dão licença.

–Ah sério? – disse o Michel.

–Sério. Eu bebi demais, e estou com tesão. Tchau, beijos.

...

Ficamos na sala, Fip e eu. Ele virou pra mim e disse:

–E aquele guri do teatro? O esquisitinho? Ficou com ele?

–O André?

–É... acho que é. O que tem metade do cabelo de um jeito e outra metade de outro.

–Ah... tá rolando um clima, mas ainda não ficamos.

–Por que?

–Não sei. Acho que falta alguém tomar a iniciativa.

–E você não vai tomar?

–Eu não sei, tem hora que parece que ele ta na minha, tem hora que parece que não.

–Mas e você? Tá na dele?

–Eu? Acho que estou.

Na verdade ainda não tinha parado pra pensar sobre esses termos. Mas a verdade é que eu estava bem na dele sim. André era um tipo de pessoa muito diferente. Sua presença me preenchia de uma alegria que eu nem sabia que existia. Era como se com ele eu pudesse ser totalmente livre de tudo que eu nunca quis ser. Ele me fazia gostar muito de ser quem eu sou. E são muitas poucas as pessoas que nos deixam totalmente a vontade com quem realmente somos. De repente, pensar nisso, fez me subir um formigamento pela barriga e, talvez pela combinação disso tudo com o álcool, senti uma coragem enorme para lhe escrever uma mensagem:

(“Está acordado?”) – perguntei.

–Está mandando mensagem pra ele? – Fip perguntou.

–Estou sim.

–São quase três da manhã.

–Ele não costuma dormir cedo. E além do mais é sexta.

–O que você mandou?

–Só perguntei se ele está acordado.

–Ok... e se ele estiver?

–Acho que vou chamar ele pra vir pra cá... Tudo bem?

–Claro... alguém tem que fazer sexo hoje. E pelo visto não serei eu.

–Ahahahaha. Não acho que vai rolar sexo.

–Nunca se sabe.

(“Estou. Aconteceu alguma coisa?”)

–Ele respondeu?

–Sim, perguntou se está tudo bem.

–Diz que não. Que você está com muito tesão e não para de pensar nele.

–Ahahahahahahaha. Nunca!

(“Está sim. É só que estava rolando uma festa aqui em casa e meio que acabou. E tava aqui pensando em você.”)

–O que você respondeu?

–Disse que estava pensando nele. Acha que fui rápido demais?

–Mas disse como? Lê a mensagem pra mim.

–Então, ele respondeu que estava acordado e perguntou se está tudo bem. Eu disse que está sim, mas que tava rolando uma festa aqui que acabou e eu tava pensando nele.

–Ah, isso tá ok, eu acho. Agora é esperar ele responder.

–É... nossa, to sentindo um frio na barriga!

–É a paixão, amigo.

–Nossa ele ta demorando pra responder!

–Deve tá pensando no que dizer.

–Ou não gostou do que eu disse. Ai que vergonha! Eu não devia ter mandando aquilo!

–Relaxa. Se ele te respondeu às duas da manhã é porque em algum nível ele tá na sua. Relaxa, ele só deve estar pensando no que responder sem parecer tão desesperado quanto você.

–Eu pareci muito desesperado?

–Não! Mas é que você está! Ahahahaha.

–Não estou não! Ele respondeu!

(“Hehe... como assim pensando em mim? Tu tá tipo se masturbando? Hehehehehe =p”)

–Ahahahahaha é por isso que eu adoro esse cara.

–O que? O que ele respondeu?

Estendi a mão para que o próprio Fip lesse a mensagem:

–Ahahahahahahaha! Meu deus! Ele é louco!

–Ele é. O que eu respondo?

–Diz assim: Estou sim, quer vir participar?

–Nããão! Tá louco?

–Ah, ele fez uma brincadeira, responde com outra de volta.

–Mas é muito ousado.

–Ele foi muito ousado, isso te da o direito de ser de volta.

–Verdade.

(“Hahahaha ainda não. Mas se tu vier aqui podemos começar”)

–O que disse?

–Que ainda não, mas se ele vier podemos começar.

–Ahahahahahah. Meu deus, não acredito que vocês estão tendo essa conversa.

–Nem eu.

(“Ok, onde é? Hehehehe”)

–O que ele disse?

–Perguntou onde é.

–Ahahahaha meu deeeeus.

(“É aqui no centro.”)

–E ai?

–Eu disse que é no centro.

(“Me passa o endereço que eu vou =p”)

–O que ele disse?

–Espera um pouco.

(“Estamos falando isso sério ou ainda estamos brincando?”)

(“Não sei. Quando eu chegar ai a gente descobre.”)

(“É na rua Aurora, n 34 ap 704”)

(“Uma meia hora chego ai. É pra ir mesmo?”)

(“Estou te esperando”)

(“É sério?”)

(“Vem logo”)

–Me conta o que ta rolando!!!

–Ele disse que está vindo pra cá!

–Ieeeeee! Alguem se deu bem essa noite! Rápido, vamos arrumar essa bagunça! E depois eu vou pro quarto!

–Não precisa se esconder no quarto. Pode ficar ai na sala.

–Não senhor. Eu não vou estragar o flerte de vocês.

...

–Natasha eu posso explicar.

–Artur, tem duas garotas na sua cama, como você pode me explicar isso?

–Olha eu sei... eu sei, eu fui um idiota, mas é que... você disse que ia dormir lá e... a gente bebeu muito e... aconteceu que...

–Olha Artur, eu não quero ouvir nada agora tá? Não! Não encosta em mim! Eu vou voltar pra casa. Coloca minhas coisas numa caixa, amanhã eu peço pro Michel ou o Flavius vir buscar.

–Natasha, meu amor.

–Não me chama de meu amor!

–Vamos pelo menos conversar!

–Não agora e não hoje. Sai da minha frente antes que eu te arrebente a cara toda!

E saiu com um elefante entalado na garganta. Um misto de sentimentos a lhe rodar na cabeça. Não queria voltar para casa e ter de encarar os meninos, contar a eles o que aconteceu. Não hoje. Contar a alguém tornaria tudo aquilo ainda mais real. E nesse intante, tudo o que ela queria era negar os fatos. Ignorar que tudo aquilo tivesse acontecido. Caminhou sozinha pelas ruas por algumas horas, um tanto perdida, tentando encontrar uma ordem para os seus pensamentos. Havia um grande furacão em sua cabeça. Um maremoto. Era como se uma britadeira estivesse a funcionar dentro de suas entranhas. “Então foi isso que o Flavius sentiu?”. Parou na frente de uma boate, aquela boate onde ela sempre quis ir, mas Artur não gostava. Talvez fosse hora de conhece-la. Talvez fosse hora de voltar a conhecer a si mesma... Voltar a ser a Natasha.... aquela velha Natasha sem o Artur... Por que isso lhe doía tanto?


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