Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 41
Capítulo 39 –Reticências .




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“Abri a porta, lá estava ele, com aquele olhar de pequeno burguês. Assustado, avaliando o mal estado do hospital, sentindo-se invadido pela falta de riqueza do lugar. Sentia como se, a qualquer momento, alguma das enfermeiras o pudessem assaltar. Respirei fundo e entrei:

—O que te aconteceu? – perguntei.

—Cai da escada.

—Disso eu sei, mas quem te jogou?

Ele apertou os lábios... Felipe sempre aperta os lábios quando pretende mentir. Dei-lhe um tabefe bem dado na cara e falei:

—Se ousar mentir pra mim leva outro! E mais outro e outro até ficar pior do que quando entrou! Fala logo, foi meu pai?

—Foi..

—Você merecia uma dessas. – eu disse me lembrando de todas as vezes que ele mentiu, disfarçou, fugiu de alguma briga para evitar retaliações da família. No fundo sempre quis que alguém além de mim levasse dessas surras.

Ele me olhou com uma cara confusa e disse:

—Flavius está lá fora?

—Sim.

—E como anda seu namoro?

—Melhor que o nosso, se é isso que você quer saber.

—Se veio até aqui pra me humilhar, pode ir embora.

—E você acha que eu gastei esse dinheiro todo pra te transferir daquele hospital pra cá à toa? Acha mesmo que eu vou te deixar aqui? Acorda meu filho! Conversei com o médico, você vai pra minha casa amanhã. A Natasha vai ajudar a cuidar de você.... afinal ela também esteve assim, toda quebrada, faz pouco tempo.

—Eu não te entendo, sabia?

Eu olhei pra cada dele com um certo olhar de “e daí?”, mas ele, não satisfeito, fez menção em continuar o assunto. Eu o interrompi antes que começasse a falar:

—Olha, Felipe, eu não vim discutir a relação não. Eu vim ver como você tá, ok? Já vi! Você está um bagaço, como sempre. Agora estou satisfeito, vou pra casa.

Ele me olhou com uma cara de cachorro sem dono e segurou as lágrimas. Eu cheguei a tremer de raiva: “Bagaço é você!” – o Flavius me diria enquanto me atirava qualquer coisa que estivesse perto. Mas ele não! Tratou-me como sempre tratou meu pai, meu avô. Abaixou a cabeça e concordou! Como é frouxo esse patife! Tenho vontade de lhe arrancar os cabelos e olhos! Sai do quarto bufando, Flavius disse que queria entrar:

—Vou esperar lá fora.

Sentei-me no jardim do hospital um pouco arrependido pelo que fiz. Não sei que impulso me tornou tão maldoso naquele momento, mas, às vezes, a covardia de Felipe me irrita muito. Gostaria que ele fosse mais parecido comigo, mais agressivo! Que soubesse se defender ao menos. Não gosto de pensar que ele será, para sempre, marionete nas mãos da família....

Ah... quem estou tentando enganar! Eu não me preocupo de verdade com isso, digo, eu quero mesmo é que ele se exploda! Ter uma vida ruim é o preço a se pagar por sua submissão. O que eu não quero é ter de ajuda-lo toda vez que ele se lasca! Ah... não sei o que pensar. Não sei nem o que quero pensar. Acho que não estava preparado para ter Felipe de volta na minha vida. Digo, eu gosto dele, mas só de vez em quando. Gostar dele ou não depende tanto do meu humor...

Talvez por já tê-lo amado com fervor. Felipe foi o meu primeiro amor. Céus, eu já fui capaz de fazer tudo por esse menino... é estranho pensar em como isso agora não significa nada. Disso tudo sobrou apenas um caroço de azeitona, a me travar a garganta, em forma de rancor.... credo que metáfora horrenda. É melhor parar por aqui antes que eu acabe com toda a pouca dignidade que me resta.”

 

...

 

Prometemos que, nesse jantar, não falaríamos de trabalho. Mas depois do desabafo de Rebeca acabamos nos empolgando, ficamos horas a falar sobre Fip, sobre como tinha mudado as vidas de todo mundo e, quando menos percebemos, já estávamos a ler seu diário.

Os meninos, Flavius, Michel e Natasha, tentavam ser elegantes e disfarçavam o espanto em descobrir a verdade sobre Rebeca. A vergonha por nunca ter tido coragem de assumir o romance com Rebeca, devido ao fato de ela ter sido um menino no passado, caiu sobre a minha cabeça. E, pela primeira vez, tive certa dificuldade em prestar atenção ao que o diário dizia.

Sentia-me familiarizado com tudo que Fip falava a respeito de Felipe e sentia que, de algum modo estranho, aquilo tinha sido escrito para mim. Mas, ao contrario do garoto, meu impulso não era chorar, mas sim levantar a cabeça e gritar: Escuta, eu não quero mais ser assim!

E, talvez, por isso, acabei por assumir o romance com Rebeca... acabei por permitir que tentássemos ser felizes... Mesmo sabendo das chacotas que ouvirei. Lembro-me da faculdade. Meus amigos caçoavam da nossa proximidade, diziam que eu estava entrando em um caminho perigoso. E eu zombava dela também. Fazia piadas... não por ver graça nelas, mas para não admitir que aquela moça me atraia.

Quando surgiu a oportunidade de morarmos juntos eu recusei. Tentei escapar de qualquer modo. Tive vergonha. Mas a extrema necessidade de ter com quem dividir as contas e o fato de ela poder me indicar a bons empregos, fez com que eu aceitasse.

Fip, mesmo sem me conhecer, mudou minha vida. É como se sua coragem de ser quem é a qualquer custo me inspirasse a fazê-lo também. É como se sua existência esfregasse na minha cara que sou capaz de mais do que me lamentar.... E perceber o modo egoísta como ele lidava com os problemas dos outros me fez perceber que, eu sempre fui um idiota. Eu sempre encarei o meu relacionamento com a Rebeca como algo que se tratava de mim, de como eu me sentia. Nunca parei para pensar nela. Eu tinha medo de que as pessoas me caçoassem, mas nunca parei para pensar em como ela deveria se sentir por ser o verdadeiro alvo das chacotas, piadas infames e brincadeiras de mal gosto. Mina preocupação nunca deveria ter sido sobre o que as pessoas iam pensar de mim por estar com ela, mas sim de como o mundo a trata e o que eu poderia fazer para ajuda-la a se sentir melhor diante disso...

...

Natasha se deitou no chão. Não estava disposta a ler o diário naquele momento. Estava a imaginar um Fip adolescente, vivendo em uma mansão. Era engraçado imaginar ele num contexto como esse. Desde que se conheceram que ela aprendeu a não perguntar sobre o  passado do rapaz. Ela mesma não gostava de falar sobre o seu.  Tinha sido uma menina pobre, dividia uma casa de dois quartos com os três irmãos. Seus pais eram religiosos e também lhe exigiam certo padrão de comportamento. Não chegavam a exagerar como o pai de Fip, mas chegava a lhe dava nos nervos.

Por isso fugiu de casa, com o primeiro homem que lhe apareceu. Nem gostava do rapaz, mas ele tinha um carro e estava disposto a lhe levar embora. Tinham um passado parecido, ela e o Fip. De maneiras diferentes, mas ainda assim parecido... Sorriu ao se lembrar do primeiro porre, do quanto aprontava nos shows de rock da sua cidade. De carregar roupas escondidas na bolsa para se trocar longe dos olhos da mãe e deu graças a deus por não precisar mais disso.... “É....” – pensou – “Ser adolescente é uma merda...”

...

“Lembro-me desse dia.” – pensou Flavius sozinho na varanda do apartamento –“Lembro-me de como Felipe segurava o choro quando entrei. Tentamos ter uma conversa casual, mas ele não quis me dizer muitas coisas. Saí de lá com a sensação de que não devia ter ido. Sabe quando alguém te recebe com frieza deixando a sensação de que não era bem vindo? Pensei que fosse pelo fato de eu estar namorando Fip. Ele tinha ciúmes... sempre teve.”

Deu dois passos para frente, encarou a vista lá de cima: “É bem alto aqui, não?” . Estremeceu. Imagens daquele funesto dia lhe percorreram a mente. Por que ele não foi capaz de prever uma coisa dessas? Por que não tentou impedir? Tivesse ele sido mais dócil, poderia ter evitado o suicídio de Fip? Olhou novamente para trás, Natasha ria com alguma piada de Michel. Rebeca e Pierre se abraçavam em um momento de conforto... Rebeca, quanto podiam ter em comum?

Sentou-se. Estava uma noite abafada, como na noite em que foram visitar o Felipe. Fip lhe disse que queria ir embora depressa, que a presença de Felipe o incomodava. Mas Flavius sabia que não era bem isso. Não era a presença de Fepile, mas o fato de o garoto fazer com que Fip se lembrasse de que tinha uma família. Os ferimentos de Felipe eram como uma sombra de seu pai a aterrorizar sua mente... afinal, não tivesse ele certa proteção em Alvinópolis, poderia muito bem ter sido a vítima do atentado...

Fip carregava escondido muito medo de seu pai. E isso não melhorou quando o velho morreu alguns anos depois. Carregava também saudades da mãe, de quem pouco falava. Estaria ela a par da morte do filho? Sentiu certo calafrio. Lembrava-se de quando Fip começou a ficar famoso.  De quando cismou que uma senhora que assistia todas as noites o seu espetáculo poderia ser sua mãe... “Nunca tiramos a história a limpo. Se era ela ou não, creio que jamais saberemos...”

—Flavinho, estamos indo embora. – disse Natasha.

—Mas já? Que horas são?

—Quase uma. Vamos que amanha voltamos com as entrevistas.

Partiram. Ainda no elevador, Natasha disse:

—Será que Rebeca sabe?

—Sobre o que? – perguntou Michel.

—Sobre a morte de Felipe.

—Por que essa pergunta agora? – retrucou Flavius visivelmente perturbado.

—Se ela era de certa forma da família, e conhecia Fip... bem a notícia pode ter chegado até ela. Acho estranho que ela ainda não tenha perguntado nada sobre ele.

—E se ela perguntar? O que dizemos? – disse Michel.

—Que foi um acidente, oras!

—Mas e se o diário nos desmentir?

—Não se preocupe. – disse Flavius – Ele não o fará.

—Como pode ter certeza?

—Natasha e eu o lemos. Estávamos dispostos a arrancar certas páginas se necessário. Mas no diário Fip diz que foi um acidente.

—Vocês o que? Iam arrancar páginas do diário!?

—Isso não é importante agora, Michel. –disse Natasha – O importante é que, no diário, Fip trata do assunto como um acidente... o quer dizer que... talvez possa ter sido.

Michel franziu o cenho. “Um acidente? Terá sido mesmo? Bom, de qualquer forma, é um alívio pensar que sim!”


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