Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 24
Capítulo 22 – cicatrizes que falam




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‘’Bem amado meu. Tento lhe dizer qualquer coisa que desfaça nosso impasse. Busco palavras que nos salve da apatia que tomamos por nós, por nosso amor. Mas só encontro o silêncio e as bonitas palavras não ditas se calam em minha garganta antes que tomem voz. Minha voz se cala diante de ti, pois o sentimento não cabe em palavras. E nossas línguas traiçoeiras insistem em dizer o contrário do que desejamos, como um escudo, uma armadura.

Defendendo-nos do desejo, do amor. Deixando-nos a mercê das armas, das lanças, alvejando nossas ilusões, nossas boas intenções, com setas certeiras que, faceiras, dilaceram nossa relação. Um ‘eu te amo’ acompanhado por um simples ‘eu também’, traria qualquer alívio ou solução.

Mas a incerteza da resposta faz com que nossa boca diga não diante da vontade que o peito abriga de soltar sua emoção. E nos contentamos em dizer ‘se cuida’, ‘vai com deus’, ‘bom ter você aqui’. Enquanto nossa alma grita por um abraço, uma demonstração de afeto, de afeição.

Sou incapaz de dar qualquer passo que caminhe em sua direção, por isso caminho por todos os lados, busco outros amores, outras atrativas paixões. Que não dêem ao peito a menor necessidade de dizer nada, pois sem você, meu peito vazio está. E deixa a boca livre para dizer mais ‘’eu te amo’’ do que filme de amor.

Atensiosamente, Fip.

 

Escrevi essa carta para Flavius, mas nunca a enviei. Faltou-me coragem. Não me julgue, quantas cartas assim também deixaste de mandar? Falamos tanta besteira, despejamos rios de palavras que falam sobre filmes, músicas, discos, artistas, arte, televisão, interesses em comum e mais um oceano de assuntos dispensáveis. E nunca dizemos a verdade, o essencial o ‘eu te amo’ vira ‘gostou dessa música?’, e o ‘também te amo’ se torna um simples ‘sim, adorei a música, obrigado por me mostrar’. ‘É que a ouvi e lembrei de você’, que quer dizer, ‘gostaria de te dizer tudo que aquela letra diz’ e o outro responde com um sorriso. E assim se acabam nossas histórias de amor.

Olho pela janela buscando qualquer pessoa que seja o Flavius. Busco-o em todos os lugares, em todas as pessoas, em tudo o que faço. Mas nunca vou até ele. Nunca diretamente a ele. Porque espero que ele venha até mim. Um medo idiota, mesquinho, como se tentássemos provar a nós mesmos nosso valor.

Viver é uma idiotice. Uma completa falta do que fazer.’’

...

—Acho que chega por hoje. – disse Flavius olhando para o chão. – Quero ir embora.

Mexia as mãos compulsivamente. Olhava para os lados como se tentasse fugir.

—Vou para o meu quarto. – levantou-se e partiu.

Os outros estavam no saguão principal. Entreolharam-se sem nada dizer. Pierre e Rebeca se levantaram em tom de despedida. Rebeca disse:

—Sei que deve estar sendo difícil para vocês. Se quiserem dar um tempo...

—Bem, podem nos dar o dia de amanhã de folga? Marcamos para depois de amanhã. – concordou Michel. – Na casa de vocês, depois do almoço, pode ser?

—Para mim está ótimo. E para você, Pierre.

—Si.. sim... tudo bem, a gente liga para combinar. – disse num tom aéreo.

—Ok.

...

—Sabe, Rebeca, estive pe..pensando... – disse enquanto caminhavam em direção ao ponto de ônibus.

—Diga.

—Sabe, isso tudo. Fip, o jeito dele, a reação do Flavius... digo... bem... acho que me fez pensar em como as coisas acontecem e... bem, eu não sei... talvez eu precisasse dizer algumas coisas... bem você sabe...

—Estou ouvindo.

—Sabe, quando conheci você... eu logo pensei que não daríamos certo... sabe, eu tinha medo de você. Você sempre foi tão explosiva, comunicativa, decidida. E eu... bem você sabe, eu tenho meu jeito tímido e tudo mais. Muito no meu canto. Sabe eu tinha medo... mas sabe, depois eu fui conhecendo você e... nossa, você é tão criativa, sensível, as vezes um pouco grossa, mas enfim.... sabe, nós moramos juntos e tal, e damos tão certo. Temos nossas brigas, claro... mas funciona... entende?

—Pierre onde você quer chegar? – disse impaciente.

—Calma! Para! Para de se defender! Deixa eu falar, só ouve. Sabe eu gosto de você. Gosto mesmo de você. Eu te amo até. Gosto dos seus livros e de tudo o que você faz. Não sei se... se ainda conseguiria viver sem você em casa.

—Ah, Pierre...

—É sério! Eu posso não te amar do mesmo jeito que você me ama. Posso não ter essa paixão... não sei bem se é paixão a palavra... mas sabe, essa necessidade de compromisso, de atração física... de sexo talvez... não sei... acho que são essas coisas que fazem o amor virar paixão ou o contrário, eu não sei... mas sabe... o fato de eu nunca ter ... bem... desejado um relacionamento de homem e mulher com você... bem isso não muda o fato de que eu te amo, sabe...

Soltava as palavras com muita dificuldade, com a certeza de que as coisas não seriam iguais de agora em diante. Rebeca mirava o amigo com os olhos marejados:

—Sabe, Pierre. Quando eu te vi, me apaixonei imediatamente por você. E sempre fiz de tudo para estar perto de você. E até hoje faço, sabe. Mas com o tempo eu fui entendendo que não era isso que você queria de mim, mesmo que... como você disse, goste de mim. Eu sei que gosta, nunca duvidei disso, mas, não deixa de doer, não é? Bem, enfim, eu não sei o que dizer.

—Rebeca, olha pra mim.

Olhou.

—Casa comigo?

—Eu já sou ‘’casada’’ com você. – fez o sinal de aspas com as mãos. – Moramos juntos, cozinhamos juntos, nossas escovas de dente dividem o mesmo armário de banheiro, tudo o mais.

—Não. Eu digo no papel. Oficialmente. Casa comigo?

—Ah, Pierre, não seja bobo, nós nunca nem...

Foi interrompida por um beijo. O tão esperado beijo com o qual Rebeca desistira de sonhar... Aconteceu. Num fim de tarde qualquer. Aconteceu. Sem magia, sem encanto nem explosões cósmicas. Aconteceu e só.

...

—E então? O que vocês conversaram ontem depois que eu saí? – perguntou Natasha.

—Nada demais. – respondeu com as mãos nos bolsos – Revivemos o passado e tudo o mais.

—Me engana que eu gosto.

—É sério!

—Sei.

—Ele disse que eu fui injusto com ele. Que o julguei mal.

—E julgou mesmo. Sabe, ele sempre gostou muito de você. Mas muito mesmo! Você nunca conseguiu entender isso, mas tudo que ele fez foi por você.

—É, eu entendo, eu sei. – abaixou a cabeça – Tudo aconteceu de um jeito tão estranho, não foi?

—Sim... Michel?

—Sim.

—Você acha que devemos contar tudo para o Pierre?

—Tudo o que?

—Você sabe... sobre as coisas pesadas que aconteceram naquela época.

Michel se calou por uns instantes para pensar:

—Eu não sei. – disse depois de uma pequena pausa – Vai ser estranho se negarmos o acontecido e o diário de Fip nos acusar. Não sabemos se Fip toca no assunto... não sei, se ele contar no diário a gente dá nossa versão. Se ele não disse nada a gente não conta.

—É, eu tinha pensado nisso também.

—Desde o começo estou com esse pensamento. Só vou contar o que o diário disser. Nada mais.

—Então eu também. Será que Flavius concordará?

—Com certeza. Ele também não vai querer se expor. Ainda mais agora com esse novo maridinho dele!

Silêncio.

—Ai! É tão bom ter você perto de mim! – disse Natasha abraçando o amigo – Você sempre foi meu maior companheiro! Meu melhor amigo!

Michel correspondeu o abraço:

—Meu deus! Por que fazemos isso? Por que ficamos tanto tempo sem se ver? Não vamos deixar isso assim não! Por favor! Eu te amo tanto!

—Vamos dormir comigo hoje? Sair juntos amanhã! Temos tanto o que conversar!

—Vamos! Vamos sim! Nossa que saudades de passar um tempo só eu e você. Quando morávamos na casa do Fip passávamos tanto tempo conversando, né?

—É! Era bárbaro aquele tempo! Um monte de adolescentes morando juntos, sendo bancados por um amigo rico, sem nenhuma preocupação! Era como se o futuro não existisse.

—Verdade. Verdade...

Caminharam abraçados sem dizer muitas palavras. Emanando apenas. Fazendo o silencio entender que seus corações batiam em sincronismo. Amigos. Velhos amigos. Daqueles que já dispensam palavras. Não precisam da presença para se amar.

...

—Amor? Tudo bem?

—Sim.

—Sua voz está diferente, triste. O que foi?

—Lembranças. Nós sabíamos que essa experiência mexeria muito comigo. – disse Flavius ao telefone.

—Sabíamos sim. Mas você não precisa se submeter a isso. Quando achar que está demais para você volte para casa. Não se torture demais.

—Não se preocupe, meu bem. É bom colocar as coisas no lugar.

—Eu sei. Espero que fique bem. Te amo, sinto saudades, volta logo pra casa.

—Também te amo, não se preocupe, próxima semana eu já estou aí.

Desligou. Olhou para os cantos, a dor ainda estava ali. ‘’Quantos ‘eu te amo’ eu nunca disse? Quantos ‘eu também’ tentei evitar?’’. E se deitou na cama disposto a não chorar. ''Saudades de você, Fip. Por que não me enviou aquela carta?''

...


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