Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 71
Capítulo 69 - Amanhecendo




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Michel, Natasha e Flavius estavam sentados no chão em volta da panela. Comiam sua macarronada e molho de gorgonzola com as mãos. Um jogo proposto por Michel para entreter o jantar. Estavam sujos e lambrecados como crianças porcas. A soltar risadas estridentes que, de certo, incomodaria os vizinhos. Natasha tinha molho nos cabelos, bochechas e nariz, lambia as pontas dos dedos entre um riso e outro ao passo que Michel fazia desenhos no rosto com o molho que sobrara em seu prato:

–Vê? – disse terminando o desenho – Uma borboleta!

Flavius soltou um sorriso estridente:

–Isso é uma borboleta?

–Sim, não parece?

–Pensei que fosse uma rola. – disse Natasha quando a taça de vinho escorregou de sua mão espalhando o líquido por todo seu vestido. – Puts! Fiz merda. – gargalhou.

Michel pegou um guardanapo e tentou ajudar, mas suas mãos sujas de molho simplesmente pioraram a situação. Flavius assistia aos dois com um sorriso frouxo, estavam tão bêbados que mal se davam conta do que faziam. O menino riu tanto que acabou por se deitar no chão:

–Quero ver quem vai limpar essa bagunça amanhã. - disse observando o molho que se espalhava por todo assoalho. Mas ninguém lhe deu ouvidos. Estavam deveras entretidos com a suposta salvação do vestido de Natasha.

Fechou os olhos e deixou que o álcool agisse. Ouvia as vozes dos seus amigos como um eco distante enquanto acariciava o chão. Lembrou-se da antiga casa de Alvinópolis, a casa do Fip, do quanto gostava do seu piso de tablado e cheiro que ele exalava. Tinha cheiro de alma antiga. Esse piso do apartamento não tinha memória, nem sabor de tempos vindouros. Era uma construção nova, sem fragmentos de história, sem vidas passadas. Lembrou-se das noites que passou no antigo casarão a imaginar todas as pessoas que haviam vivido ali. Histórias assombradas de uma família maldita. Os poderosos de uma cidade e seus crimes hediondos: “O que os fantasmas dos Perez pensariam se nos vissem jogados bêbados sobre esse piso que um dia os pertenceu?” – pensava naqueles dias – “Será que nos amaldiçoam pela audácia ou nos inveja a liberdade?” dava a isso certo valor.
O piso do apartamento novo era morto, inerte. Não contava a história de ninguém... exceto a deles próprios. Eram eles, esses garotos ainda tão verdes, quem escreviam os livros desse lugar. Será que um dia seriam também o espectro das memórias desse piso? Ou o prédio seria demolido antes que suas lembranças maturassem? As coisas na cidade grande eram todas de plástico, vazias de alma e história. Um emaranhado desordenado de progresso. Tornou a abrir os olhos e seus amigos ainda estavam lá, lutando contra a mancha de vinho. Quanto tempo havia se passado? Gostava dessa sensação de se perder. Era o que mais lhe agradava no álcool, sair de si, estar fora de controle. Gostava de estar tonto também:

–Mancha de vinho sai com leite. – ele disse sem conseguir levantar a cabeça.

–O que? – disse Natasha e Michel quase em uníssono.

–Mancha de vinho. – Repetiu – Sai com leite.

Os dois riram:

–Do que você está falando? – disse Natasha.

–Ué? Vocês não estão tentando tirar a mancha?

–Não – riu Natasha – Mudamos de assunto faz tempo.

–Foi mal.

Todos riram:

–Acho que no fundo cada um de nós está falando de um assunto diferente. – disse Michel se deixando cair no chão.

–Vocês estão falando do que? – perguntou Natasha.

–Da mancha de vinho. – disse Flavius.

–Do meu ensaio de hoje a tarde.

–Da nova ajudante de cozinha que apareceu no restaurante. Ela é uma vaca!

–Viu só! Estamos cada um falando sozinho, só que em grupo! – concluiu Michel.

–Então vamos organizar essa bagunça! – disse a garota – Vamos falar sobre o que agora?

–Se o Fip estivesse aqui. – disse Flavius – Ia querer que falássemos sobre ele. A dança dele, o apartamento dele, a vida dele. Ai, eu sou o Fip. – disse imitando a voz do rapaz – Eu sou cuzão porque meu pai me batia. Eu odeio ele, coloquei ele numa cadeira de rodas e falo merda pras pessoas.

Natasha e Michel se entreolharam um pouco encabulados, não sabiam se aquilo soava engraçado. Flavius falava com lágrimas a escorrer de seus olhos e sua voz, foi paulatinamente, assumindo um tom desesperado:

–Não sei por quê ainda insisto em gostar daquele filho da puta, cretino, desgraçado. – começou a esmurrar o chão – Ele é um filho de uma égua!

Vendo que a situação não parecia querer melhorar, Michel e Natasha decidiram intervir. Abraçaram o amigo e tentaram lhe render algum consolo. O garoto chorou por algumas horas agarrado aos companheiros, disse algumas maldições sem sentido e por fim dormiu. Michel adormeceu quase que instantaneamente assim que Flavius fechou os olhos e Natasha ainda fez menção de se levantar e limpar aquela sujeira antes que o molho secasse e grudasse no chão. Mas não encontrou ânimo. Aninhou-se aos meninos e também dormiu.

...

Fip abriu os olhos quando os primeiros raios de Sol ameaçaram surgir no horizonte. Manuel estava virado de costas para ele, abraçado a um travesseiro de fronha colorida. Em seu rosto começava a nascer um sinal de barba por fazer que o tornava um homem ainda mais interessante. Manuel tinha feições de homem, muito diferentes do menino que Flavius era. Talvez isso os tornassem tão distintos um do outro. Era impossível compará-los... quem dirá preferir um ou outro.

Vê-lo dormir fez com que Fip pensasse no quão difícil seria deixa-lo. Manuel era um homem interessante, de opiniões firmes e caráter sólido. Um homem inteligente com quem podia crescer e se sentir seguro. Mas não era ao lado dele que se sentia verdadeiramente em casa. Estar com Manuel o tornava um pouco mais próximo do Fip que desejava ser, enquanto Flavius o deixava a vontade para ser exatamente quem era. E deus sabe que ele precisava das duas coisas.

Tentou se levantar sem fazer barulho, mas a cama o traiu, soltando um ruído escandaloso quando ele se moveu. Manuel abriu os olhos e disse sorrindo sem abrir os olhos:

–Já acordado ou nem chegou a dormir?

–Não tenho certeza.

–Sei como é. Preocupado com seu menino?

–Também. Acha que tudo ficará bem?

–Olha Fip. – Manuel sempre dizia “Fip” com certo tom de deboche – Se tem uma coisa que aprendi com a vida até agora é que, de um jeito ou de outro, no fim das contas, tudo sempre acaba bem. Mesmo quando não é do modo como esperávamos.

–Filosofia da manhã.... Mas falando sério. Acha que ficará tudo bem? Entre a gente e com o Flavius?

–Olha, o nosso lance, nós sempre soubemos que não ia durar. Então é isso. Temos uma amizade, e uma cumplicidade que não precisa mudar. Quanto ao Flavius, bem, isso vai depender mais dele que de você...

–Então o que eu faço?

–Espera.

–Simples assim?

–Querido, me deixa dormir vai?

Fip lhe fez um cafuné na cabeça e se levantou devagar. Foi até o banheiro escovar os dentes e percebeu, quase em pânico, que havia, em seu pescoço, uma marca de chupão. Gelou dos pés à cabeça:

–Estou perdido. – sussurrou para si mesmo.

...

Pierre caminhava pelo jardim dos fundos tentando imaginar como ele teria sido nos tempos em que Fip vivia ali. Hoje não passava de um emaranhado de capim e grama mal cuidados, mas por trás dessa decadência ainda se escondia algum esplendor do passado. Tentava encontrar ali algum vestígio, qualquer coisa que lhe aproximasse mais de Fip. Algo que tornasse sua memória palpável. As vezes se sentia em desvantagem por ser o único daquele grupo que não tinha conhecido o garoto pessoalmente. Com certeza não teriam se dado bem. Fip era, para Pierre, o tipo de pessoa que gostamos de admirar de longe. Aquela espécie de amigo que gostamos de ouvir suas histórias, mas nem tanto de participar delas. Isso o consolava... de certo modo:

–Sem sono? – perguntou Flavius ao surgir na janela da cozinha.

–Ansioso. E você?

–Perturbado.

–Sinto muito por expor você a isso.

–Não sente não. Você sabe que é importante para o seu livro. No fundo está adorando.

–Não posso negar. Mas então? Posso ajudar?

–Só se você conhecer algum feitiço que tire todas essas dúvidas de dentro de mim.

–Feitiço não tenho, mas talvez alguns conselhos, se quiser me ouvir.

–Diga.

–Um dia morreremos, todos nós. E a vida, inexoravelmente, seguirá seu rumo. Milhares de milhares passaram por esse planeta, espécies inteiras surgem e desaparecem o tempo todo e a vida simplesmente segue existindo. Entende? Somos uma micro partícula, um piscar de olhos no jogo da vida. Não dê tanta importância nem a si mesmo nem ao Fip. Deixe aos mortos os assuntos dos mortos. Aos que vivem não há escolha se não continuar ciclo da vida. É muito egoísmo querer que o mundo se acabe depois da sua partida. Nada vai mudar depois que você se for. E sua vida não pode parar porque o Fip morreu. Siga seu destino e viva, daqui para frente, uma vida que possa se orgulhar no futuro.

–É... talvez você tenha razão... mas, acontece que o Fip era egoísta... entende?

–Esse é um problema dele. Ele não faz mais parte desse mundo, você sim. Ele escolheu morrer, mas você ainda pode escolher viver.

–Mas... eu tenho uma vida na Argentina. E eu gosto dela.

–Bem, ai é outra coisa. Mas tu tem que fazer uma escolha. Uma escolha interna. Se vai morrer com o Fip ou se vai seguir com sua vida. Mas só você saberá qual caminho levará ao que você realmente quer.

–Obrigado, Pierre. – disse Flavius tocando seu ombro – Foi de grande ajuda... de verdade. Boa noite.

–Boa noite.

Flavius voltou à sala, observou o piso de tablado que tanto gostava. Engraçado se lembrar disso agora. Hoje tudo tinha um novo tom. Fip era um dos fantasmas desse lugar, Fip, Natasha, Michel e ele próprio. Todos faziam parte da história desse piso, como uma velharia. Sorriu e caminhou em direção às escadas. Subiu cada degrau como se despedisse de um Flavius que havia decidido enterrar. De repente se sentiu um estrangeiro naquela casa. Ele não era o mesmo menino que havia vivido ali. Era um outro... um homem qualquer que não se sentia bem vindo por aquelas paredes. Respirou fundo e encarou o corredor que levava aos quartos. Por algum motivo esse lugar o fazia se lembrar do Felipe. “Um lugar de passagem.” – refletiu antes de abrir a porta que o levava até Michel:

–Demorei? – perguntou fechando a porta.

–Um pouco. – respondeu o garoto sentado à janela.

–Tive que parar para pensar um pouco. Sobre... bem, sobre o que fazer de agora em diante.

–Você fala de nós dois?

–É.

–Então?

–Você acha que daria certo?

–A pergunta é: você acha que daria errado?

–Eu não sei.

–Nem eu. Ninguém entra num relacionamento pensando se dará certo ou não. Entramos porque estamos sentindo algo que nos movimenta. Você me movimenta, eu te movimento. É tudo que precisamos. O que será daqui pra frente não saberemos se não tentarmos.

–Pra você é mais fácil. Você tem menos a perder...

–Sinceramente, Flavius... o que você tem tanto a perder?

–Tenho um casamento, Michel. Gabriel está me esperando...

–Nós sabemos que ele é o Felipe, Flavius. Sabemos também que não gosta dele.

–Vocês.... sabem? – Flavius engasgou e sentiu suas pernas falharem. Tentou se apoiar na cama, mas acabou se vendo obrigado a se sentar.

–Olha, nós não... não te culpamos por... mentir. Entendemos que era necessário. Eu só não entendo a razão. Por qual motivo foi atrás dele?

–É complicado.

–Me explica.

–Pra quê?

–Para te entender.

–Michel... hoje não.

–Quando então?

–Quando for inevitável.

–Certo, mas e então? Como ficamos daqui pra frente?

–A minha pergunta é: como estamos agora?

...


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Notas finais do capítulo

Estou migrando minhas histórias para o widbook. Se quiserem acompanhar por lá o link é:
http://www.widbook.com/ebook/petalas-de-sangue
^^



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