Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 67
Capítulo 65 – Como num filme francês.




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Abri os olhos pela manhã e mal reconheci a figura de Manuel ao meu lado. Em que momento da noite decidimos nos deitar juntos? Sentei-me na cama procurando por alguma peça de roupa, minha cabeça doía... Manuel parece dormir como uma rocha... eu devia estar muito bêbado! Levantei-me devagar e caminhei me apoiando às paredes, preferia sair do quarto antes que ele acordasse para evitar o constrangimento de encará-lo. Manuel não era exatamente o tipo de pessoa com quem eu pudesse querer me deitar, sua história com Fip ainda caminhava entre os meus pensamentos e eu não a engolia direito. Como pude me render a seus encantos? Talvez eu esteja mesmo muito carente... normal, estou cercado por casais, é natural que eu queira encontrar um par... mas Manuel não... ele está no meio de uma encruzilhada em que eu não quero me meter.

...

Acordei quando o Michel passou pela sala em direção à cozinha. Artur tava deitado do meu lado dormindo com a boca aberta... faltava babar. Levantei devagarzinho pra ele não acordar e fui atrás do Michel:

–Que horas são? – perguntei quando senti a luz do dia me ferir os olhos.

–Acho que são dez.

–Dez da manhã? Devia ser crime acordar uma hora dessas depois da noitada de ontem!

–Eu tenho que correr, estou atrasado pro trabalho.

–Tirei o dia de folga, tinha direito a uns dias de folga por aqueles dias que eu trabalhei além do horário, lembra? To pensando em aproveitar o dia pra ir fazer minha inscrição naquele curso de gastronomia.

–Sim, sim. Que inveja! To com uma dor de cabeça horrenda, adoraria não trabalhar hoje.

–Eu adoraria não trabalhar nunca.

–Mas esse já é um sonho muito distante.

–Bota distante nisso. Mas e aí, como foi a noite?

–Normal, por que?

–Porque tu tá com um chupão enorme no pescoço. Quem fez isso ai?

Ele levou a mão instintivamente até o pescoço e ficou com as bochechas vermelhas:

–Fo..foi o Manuel.

–Vish, não tá perdoando ninguém, hein?

–A gente tava bêbado, nem lembro como aconteceu.

–Você nem lembra? Ai é ruim hein? Porque, pelo tamanho do chupão, a noite deve ter sido boa... não lembrar é paia.

–É... deve ser...mas sei lá... não queria ter me deitado com ele.

–Por que?

–Por causa do lance dele com o Fip. – ele disse sussurrando – Agora que o Flavius voltou essa história me incomoda mais.

–Ah Michel, não se mete na história dos dois. O namoro do Chico e do Flavius é todo complicado... sempre foi... se não fosse o Manuel seria outro.

–Ainda assim. Eu me sinto desconfortável por saber disso e não contar pro Flavius!

–Não é uma situação legal... sei lá. Se tipo você soubesse que o Artur tá me traindo e não me contasse eu ia ficar muito puta! Mas também se eu tivesse traindo o Artur e você contasse pra ele eu ia ficar mais puta ainda! É uma merda quando dois amigos namoram!

–Pois é. O que acha que devemos fazer?

–Eu sou mais ligada com o Chico, minha lealdade é mais pro lado dele, então eu não vou falar nada. Mas se tu achar que deve falar eu não te tiro esse direito.

–Eu não tenho coragem, ainda mais agora que o Flavius mudou pra capital só pra ficar com o Fip.

–É tenso... muito tenso... sei lá, conversa com o Chico, com o Manuel... dá um ultimato neles... ah sei lá. Prefiro nem pensar nisso.

–Acho que também to preferindo.

–Então vamos comer! Que comendo a gente esquece as pendenga!

...

“Seus olhos cansados... esse meio sorriso bobo... Flavius dorme enrolado aos lençóis enquanto eu contemplo a vista da nova janela. O velho nascer do sol de Alvinópolis deu lugar a imensa metrópole que se espalha implacável pelo horizonte. Prédios, casas antigas e os carros que insistem em não deixar o tempo parar. Aqui o movimento é constante, tudo é imediato. A vida corre pelas entranhas da cidade, movimento que jamais cessa. Mendigos caminham sorrateiros na sombra dos restos da noite enquanto boêmios e trabalhadores dividem espaço nas calçadas. Uns voltam da farra insone, vencidos pelo nascer de um novo dia de ressaca enquanto outros lutam para espantar o sono e tomam coragem para enfrentar o dia de trabalho que virá. Tantos estranhos, tantos desconhecidos dividindo a mesma vida... os mesmos problemas, as mesmas infelicidades. Que muro nos separa?

Torno a observar o corpo de Flavius deitado sobre a cama, de nada se compara a perfeita musculatura desenhada de Manuel, mas ainda me causa furor maior. É como se nele (Em Flavius) eu encontrasse um repouso, um abrigo para esse caos desmedido que é ser eu. Flavius me faz encontrar o silêncio... a leve sensação de sentir meus pensamentos calados... como se sua presença me arremessasse para uma bolha fora do tempo onde todo meu passado parecesse indiferente e meu lugar no mundo estivesse remediado. Será que causo nele a mesma sensação?

Às vezes sinto (e temo) que minha presença, para Flavius, seja mais destrutiva que pacificadora. Penso que ele tem a mim como uma potencialização de sua dor e que se mantém comigo única e exclusivamente por causa de sua mania lastimável de não se permitir ser feliz. Temo que chegue o dia em que ele se cansará disso, perceberá que merece ter um sorriso entre seus lábios e me abandone para buscar alguém que lhe traga paz ao coração... Michel talvez...

Pensar no caso me traz uma sombra ao peito. Poderei eu viver sem esse menino? E se ele me é tão importante por que insisto em jogar com a sorte? Por que jogo com seu coração como se nossas vidas fosse um jogo de azar? Talvez porque eu não goste de me sentir seguro... o desafio me move e jogo ganho não movimenta minha alma... Mas estaria preparado para perder essa aposta? Estaria pronto para acordar pela manhã e me deparar com uma cama vazia de seu cheiro?

Fecho as cortinas, a cidade não me acalma os pensamentos. Volto à cama e me deito ao lado do meu menino de porcelana. Tento adormecer com a esperança de que no próximo dia nosso amor amanheça puro... como num filme francês.”

...

–Por que você continua com o Fip? – Manuel me perguntou de súbito.

–Engraçado, tenho escutado bastante a essa pergunta ultimamente. – Respondi meio sem jeito.

Natasha e Artur tinham saído um pouco antes do almoço, ele precisava ir até a faculdade e ela queria se inscrever em um curso de gastronomia. Michel tinha ido trabalhar e Fip saiu para comprar algo que nos alimentasse. Estávamos a sós, Manuel e eu, sentados à varanda, observando a dança confusa dos prédios da cidade quando ele soltou a pergunta no ar: “Por que você continua com o Fip?”. A imagem de Felipe me surgiu na mente, ele me fazia essa pergunta três ou quatro vezes por dia. Nunca encontrei uma resposta. Por que eu continuo com o Fip? Ora! Porque o amo! Fip foi o primeiro homem que me dedicou qualquer olhar de dignidade, foi quem me ensinou a ser humano, não há motivos para não amá-lo, para não lhe ter gratidão!

–Talvez porque seja uma pergunta que valha a pena. Por que ele? Por que escolheu o Fip?

“Porque ninguém mais teria coragem de ficar comigo.” – pensei com uma fisgada no peito... Não, isso não era uma resposta descente! Estava com Fip porque ele sabia reconhecer meu valor!

–Porque eu gosto dele e ele gosta de mim. – respondi como se me parecesse óbvio.

–Que você goste dele eu imagino. Afinal veio de Alvinópolis até aqui para que ficassem juntos.

–Não foi só por isso. Eu estava cansado de lá, queria ter novos ares. E aí eu juntei uma coisa com a outra.

–Mas você acha que ele está mesmo feliz com a sua chegada?

–Por que não estaria? Foi ele quem me chamou.

–Sei lá, o Fip parece meio complicado. Ele anda tão absorvido com a dança, com a companhia que às vezes sinto que ele não queira nada que atrapalhe seu caminho.

Tentei ignorar essa informação. Não me sentir bem vindo nesse apartamento, na vida do Fip era tudo que eu não precisava nesse momento! Eu não teria estrutura para voltar a Alvinópolis, tampouco conseguiria me sustentar sozinho aqui na cidade, portanto uma crise com Fip não seria bem vinda agora!

–Ele comentou alguma coisa?

–Não... eu só fiquei me lembrando do jeito que ele te tratou aquele dia... não tem medo de isso se repetir?

Alguma coisa no seu olhar me fazia desconfiar que Manuel sabia de alguma coisa que não queria me dizer. Mas tentei não demonstrar a fraqueza de minha desconfiança e disse forçando um tom de segurança inabalável.

–Se eu bem conheço o Fip isso vai se repetir. Inevitavelmente... mas sei lá... não posso exigir que ele seja perfeito, né? Também tenho meus defeitos que não devem ser fáceis de lidar. Além disso acho natural que ele tenha seus amigos e queira sair com eles. Logo também terei os meus e tudo ficará bem.

Disse a última frase sentindo meu coração se oprimir, de repente me caiu o pensamento: saberia eu fazer novos amigos? As únicas pessoas com quem consegui/consigo me relacionar são os amigos do Fip, são as pessoas que conheci por intermédio dele. Não sei se sei criar meus próprios vínculos, não acredito que exista em mim algo que faça com que alguém se interesse por mim... E se Manuel estivesse certo? Se Fip estiver cansado de mim? Conseguiria eu ter outras companhias?

–É verdade. – ele disse – Fip me disse que você transferiu a escola, talvez faça novos amigos por lá.

–É... talvez...

–Sabe... eu não sei por que, mas eu me preocupo muito contigo. O Fip é uma máquina destruidora e tenho medo do que ele possa fazer com seus sentimentos.

–Sentimentos? Eu não sou tão frágil quanto pareço, Manuel. Posso ter dificuldade para me impor, para colocar limites nos outros ou me defender quando me machucam, mas sei lidar muito bem com minha dor. Eu já passei por muita merda e sobrevivi a tudo com certa dignidade. Eu posso ser só um caipirão do interior, mas não sou tão ingênuo quanto você pensa. Se tem uma coisa que eu estou acostumado é com a solidão, e se um dia eu perder o Fip e tiver de voltar a frequentar minha caverna o farei sem pestanejar.

Ele me encarou longamente com uma expressão um tanto indecifrável e, por fim, disse:

–Desculpe, acredito que subestimei você.

–Relaxa, você não é o único... você não é o único...

Desviei o meu olhar para a rua. Não queria que ele captasse qualquer fraqueza no meu olhar. Mas de repente me apercebi da minha situação: eu sou uma pessoa muito estranha, uma pessoa sem lugar. Não sei ter amigos ou dividir companhia, fora o Fip eu não sei lidar com ninguém... Talvez tenha passado tempo demais sozinho, talvez não tenha aprendido a ser alguém, mas essas conversas, essa coisa de estar com outras pessoas, me pareceu muito cansativo. Toda essa coisa de me expor, de ter de provar o que sou e o que não sou, esses jogos de poder... conviver é uma coisa muito complicada, uma dinâmica que não domino. Tive o ímpeto de me atirar da sacada, de esfaquear Manuel. Senti como se ele estivesse a me agredir com toda essa preocupação, esses olhares que me diziam o quão frágil e patético eu pareço ser. É como se todos a minha volta estivessem sempre a me relegar a outro lugar, é como se todos reafirmassem a todo tempo que não sou um deles... mas se não sou um deles... quem sou?

–Eu esqueci meu celular no quarto. – disse inventando a primeira desculpa que me surgiu – Fip está demorando, vou ver se ele não ligou. – Levantei-me e caminhei até o quarto.

Tinha a sensação de que havia alguma coisa errada, algo fazia meu estômago se contorcer, por que eu precisava ser assim? Por que ter essa sensibilidade tamanha? Talvez Fip esteja certo, talvez eu seja uma pessoa muito dramática, mas algo nessa conversa com Manuel me sugou a vontade de viver. Atire-me na cama e me deixei esperar a angústia passar enquanto pensava em diversas formas de morrer... quanta bobagem... há muito que estou morto, ter um corpo em pleno funcionamento nem sempre significa estar vivo.


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