Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 64
Capítulo 62 – Diga o que sabe...




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As duas semanas seguintes à notícia do acidente foram perturbadoras para mim. A ideia de que Fip pudesse ter sido responsável pela morte de Felipe não deixava de invadir minha mente. Pois o fato é que Fip tinha seus motivos para querer o primo morto e todos sabiam quanto Felipe costumava ser cuidadoso quando dirigia. Por alguma razão eu sentia que tinha algo de mal explicado naquilo tudo. Algo nos olhares fugidios de Fip me dizia que nem tudo que saia de sua boca era verdade!

E aquela conversa, (aquela maldita conversa) que ouvi entre ele e o pai, rodopiava em torno dos meus ouvidos sussurrando maus presságios. Seria Fip um assassino? Essa desconfiança tornava seus sorrisos funestos, suas piadas ásperas e suas lágrimas falsas. E a face gélida da morte se estampou em seu rosto, como uma máscara coberta de maldições. Fip, meu bom amigo Fip, quem me recebeu em sua casa quando nenhuma porta esteve aberta para mim... um ceifador de vidas... parecia impossível, improvável, até pecaminoso pensar algo assim. Mas como duvidar se meus pais (meu pais!) quem deveriam estar acima de qualquer desconfiança de escárnio se revelaram (no fim das contas) a pior espécie de pessoas que poderiam pisar na terra?

Como não duvidar de um amigo (um bom amigo, por sinal) depois de conhecer a crueldade da face humana através de minha própria família? Se meus pais tiveram a capacidade de matar uma pessoa que mal conheciam em nome de uma convenção social porque Fip não mataria o próprio primo por ciúmes?

Recebi a notícia no dia seguinte ao acidente. Natasha me ligou:

-Michel, rolou uma treta meio paia.

-Que foi?

-Parece que o Felipe sofreu um acidente. O carro dele rolou uma ribanceira e caiu no rio.

-E como ele tá? Tá bem?

-Então... – ela disse meio sem jeito – Parece que ainda não acharam ele... ou o corpo dele, sei lá.

-Como?

-É... parece que ele pode ter morrido. A galera tá falando que pelo estado do carro é um milagre se ele tiver vivo.

-Pera! Mas como você ficou sabendo disso?

-O Chico me ligou. Ele tá meio mal, disse que vai ficar em Alvinópolis uns dias até ficar melhor. Você acha que a gente devia ir pra lá?

Fiquei petrificado. Lembrei-me imediatamente da conversa que ouvi entre o Fip e o pai.... seria possível? Era coincidência demais! Não podia ser um simples acaso! Fip era um assassino! Tive vontade de vomitar. Senti um universo se contorcer dentro de mim. Será possível que a marca da morte perseguiria minha existência?

A imagem de Felipe surgiu na minha cabeça. Não éramos grandes amigos, mas pensar que seu rastro havia sido apagado da existência fazia com que eu me sentisse enjoado. A morte tem dessas coisas. Obriga-nos a perceber a dimensão real dessa vida. É como abrir os olhos e se perceber sozinho, naufragando em um mar inseguro. É a gélida sensação de que nada é estável. Todos partem... inexoravelmente todos partem.

Senti-me imediatamente ligado a Felipe, lembrando-me de todos os momentos em que passamos juntos. Do quanto eu devia a ele por toda a força que tinha me dado quando decidi me mudar para a capital. Todas as vezes que fiz corpo mole quando ele me chamou para sair, todos os olhares perdidos ou tristes que captei em sua face, mas que, por algum comodismo nefasto decidi ignorar. Senti que lhe devia algo... não tinha sido para ele o amigo que ele merecia ter.

Felipe e sua solidão inegável. Seu olhar perdido de quem quer um porto para se firmar. Aquela figura que, de tão frágil, parecia patética e que carregava dentro de si uma necessidade quase inesgotável de receber o amor de alguém. Um amor que eu poderia lhe ter ofertado, acaso não fosse tão egoísta... mesquinho. Quanto nos custa oferecer amizade a alguém? Dar um telefonema, fazer uma visita, ofertar um sorriso... o que nos custa? Quanto nos é tomado da vida por gastar uma ou duas horas ouvindo as dores de alguém que precisa desesperadamente vomitá-las? Quanto nos custa um abraço? Por que passamos uma existência a negar sumariamente essas coisas a alguém? Por que vivemos toda uma vida a impedir que os outros nos amem? Quanta coisa eu poderia ter feito por ele e não fiz? Quanto poderia ter-lhe dito e calei? E agora nada podia fazer além de calar essa sensação e seguir minha vida a continuar negando isso a outros. Outros tantos Felipes perdidos no mundo, a morrer sem que alguém lhes dê uma mão.

“Felipe está morto.”- disse a sms enviada por Fip. “Claro que está” – pensei – “Você o matou”. E o fez porque ele gostava do seu homem. Matou-o por amar alguém que não deveria. Amou quem não podia. Senti meu sangue gelar... conhecia bem essa injustiça. Conhecia essa violência. Até quando o amor seria crime? Até quando morreríamos por tão pouco? O que nos torna insensíveis a ponto de julgar que vidas inteiras podem ser destruídas pelo simples fato de nos ter gerado uma chateação? Quanto sangue ainda será derramado até que entendamos que existe na vida algo de sagrado? Até que entendamos que a vida é a única coisa que temos? Fip não pode ter feito isso. A menos não pelos motivos que penso que o levaram a isso. Ciúmes, dinheiro... quão mesquinho isso não é?

Fip me ligou. Desliguei o telefone. Não queria falar com ele... a menos não agora. Precisava digerir essa informação. Convencer-me que não havia motivos para desconfiar dele. Queria convencer a mim mesmo que minhas desconfianças eram falsas, infundadas... precisava disso... desesperadamente. Tentei ficar no trabalho até mais tarde, ocupar minha cabeça. Voltei andando para casa, estava tudo encaixotado (pois estávamos, Natasha, Fip e eu organizando as coisas para mudarmos juntos para um apartamento). Fiquei a mirar as caixas empilhadas e a me perguntar: “Quer mesmo fazer isso? Quero mesmo viver com alguém de quem desconfio desse modo?”. O interfone tocou, era Luiz, um amigo do teatro, estava passando por perto e decidiu dar um oi.

-Que tal sair para beber alguma coisa? – eu disse.

-Acho uma boa, hein?

Partimos. Fazia certo tempo que estávamos alimentando um leve flerte, Luiz e eu. Nada de extraordinariamente emocionante, mas bacana o suficiente para me tirar daquele circulo vicioso. Esquecer tudo aquilo por algumas horas, achar-me atraente para alguém, flertar. Talvez me fizesse bem...

...

-E então? Você vai para Alvinópolis? - Artur perguntou.

-Eu não sei. O Chico não gosta que fica muito em cia dele quando ele tá mal. Eu não posso faltar muito no serviço. Acho que é melhor nem ir.

-De boa então. – ele disse tentando parecer imparcial, mas eu sabia que ele tava aliviado. Era obvio que ele não queria que eu fosse.

-E você? Não vai pra aula?

-Nem vou. Quero ficar aqui com você um pouco. – ele disse me abraçando pela cintura – A gente mal tem se encontrado. Você trabalha o dia inteiro e quando chega eu to na faculdade. Bora curtir um pouco essa noite.

Fiz um cafuné na cabeça dele e focei um sorriso. Eu não tava na vibe de curtir nada. Eu sei que eu nunca gostei muito do Felipe, mas daí pra ficar indiferente à sua morte é um caminho bem longo. Achei ruim ele morrer. Achei ruim mesmo! Tava meio chateada, com vontade de ficar sozinha. Por isso a presença do Artur me irritou um pouco:

-Que foi? – ele disse.

-Sei lá, to meio ruim com esse lance do Felipe.

-Ah, mas ainda não é certeza que ele morreu, é?

-Não, mas é bem provável.

-Isso é bem paia. Faz o seguinte, vai tomar um banho que eu vou te fazer uma janta. Vou cuidar de você essa noite.

Eu aceitei a oferta. Sabia que ele estava se esforçando pra ser legal. E achava isso bem bonito. Mas, nesse aspecto sou bem parecida com o Chico. Quando estou deprê gosto de ficar sozinha! Mas aceitei a ajuda. Afinal era um direito dele tentar me fazer bem...

...

“Voltei a Alvinópolis alguns dias depois do acidente. Estava tudo embaraçado na minha cabeça. As buscas continuaram por mais algumas semanas até que a família estivesse convencida de sua morte. Fizeram um enterro simbólico... eu nem fui. Não queria ver aquela velharada chata de novo. Sentia nojo de cada um deles e me sentiria mais feliz se fossem eles, e não meu primo, quem estivessem naquele caixão.

Poucos dias depois começou, como eu tinha imaginado, a corrida pelo ouro. Cada garfo, cada moeda, cada mínima coisa contida no apartamento virou motivo de brigas e disputas familiares. Ainda bem que eu tinha quebrado quase tudo, assim sobrou menos praquela corja. Minha tia ficou com o apartamento e o resto foi divido entre os urubus.

Essa era a parte que mais me enojava. Foi o mesmo quando meu tio morreu. Tentaram me negar o direito a tudo que ele tinha me deixado. Queriam tomar tudo que era meu. Conseguiram me roubar boa parte da herança, mas, por sorte, consegui o suficiente para viver legal. Bando de miseráveis!

Quando voltei cuidei dos detalhes finais do apartamento novo e nos mudamos para lá, Michel, Natasha e eu. Michel estava distante, formal... eu sabia que ele estava desconfiado de mim. Mas preferi não tocar no assunto até ele deixar sua desconfiança clara:

-E Flavius? Virá morar com a gente? – ele perguntou enquanto arrumava os talheres na gaveta.

-Sim, assim que ele resolver as tretas dele em Alvinópolis.

-E você e o Manuel? Como vão ficar?

-Não vamos ficar. Simples assim.

-Eu sei que não tenho nada a ver com isso, mas é que Flavius é meu amigo. Não vou me sentir confortável em viver no mesmo teto que ele e lhe esconder uma coisas dessas.

-Calma. Eu não tiro sua razão, mas pode ficar tranquilo. Eu e Manuel daremos um ponto final nisso.

-Que bom.

-Então é isso? É isso que está te incomodando?

-Como assim?

-Desde que eu cheguei você tá esquisito comigo.

-É... sei lá... é isso...

-Não é não. Desembucha.

-Fip... deixa isso quieto.

-Não. Fala.

-Não. Me deixa.

Puxei uma cadeira e sentei de frente pra ele:

-Você tá achando mesmo que eu teria coragem de matar o Felipe?

Sim, sim! Eu sei que disse que deixaria pra tocar no assunto só quando ele tocasse, mas vocês sabem como eu sou!

-Não! Não é isso... mas é que... porra, sei lá! É muito esquisito isso! Você disse pro seu pai que ia matar ele e poucos dias depois ele aparece morto!

-Porra desde quando tu fica escutando minhas conversas?

-Você fala como se eu precisasse me esforçar muito pra te ouvir! Você fala quase gritando!

-Que seja! Que importa o que eu disse pro meu pai? Falei aquilo pra ganhar tempo, pra poder ir até lá e avisar o Felipe pra ele fugir! Eu nunca tive a intensão de matar ele!

-Era o que eu tinha pensado! Mas dai o menino aparece morto, você quer que eu pense o que?

Já estavam os dois gritando nessa hora:

-Quero que você pense que eu não sou a merda dos seus pais pra sair matando os outros por aí!

Ele atirou os cinco garfos que tinha na mão em mim. Alguns acertaram e doeram um pouquinho, mas nada demais. Eu peguei um copo que estava perto de mim e joguei nele... não acertou. Ele levantou e gritou:

-Você é um merda Fip!

-Merdinha é você! Que não consegue acreditar no seu melhor amigo! Eu te dei uma casa pra morar! Uma casa! Tirei você da casa dos seus pais idiotas e te ajudei pra caralho quando você quis mudar pra cá! E fiz isso tudo por você porque eu sabia que a situação que você tava era uma merda! Porque eu também já passei muita merda com os meus pais! E você acha mesmo que eu mataria o Felipe só pro meu pai ficar feliz comigo?

-Não! Eu acho que você mataria o Felipe porque estava com ciúmes do Flavius!

Eu voei no pescoço dele:

-Mas que merda é essa que você tá falando? Eu nunca mataria o Felipe!

-Então porque ele morreu?

Nisso estávamos rolando no chão tentando bater um no outro:

-Ele morreu porque era um medroso! Eu avisei que ele tinha que fugir e ele se desesperou! Você sabe que ele era um medroso! Sabe que ele se desesperava! Foi o que aconteceu! Foi o que aconteceu! Eu juro que foi isso!

Ele parou em cima de mim e me segurou pelos dois braços:

-Você me jura Fip? Jura que não foi você?

-É claro que eu juro seu panaca! Que tipo de monstro você acha que eu sou?

-Eu não sei! Eu não quero acreditar que foi você, mas... porra Fip! Jura que não foi você!

-Eu já jurei caralho!

Foi ai que nós dois começamos a chorar que nem duas mocinhas de novela mexicana. Jogados no chão abraçado um no outro chorando que nem duas largadas:

-Eu não quero que você pense isso de mim, seu bosta! Eu não sou um assassino!

-Porra Fip... eu te amo cara! Eu quero acreditar em você!

-Eu to falando sério, caralho! Eu sou inocente!!

Ele me segurou pelo rosto e me deu um beijo na boca:

-Desculpa. – ele disse – Mas eu to muito aliviado!

-E eu fiquei com tesão. – disse puxando ele pra mais perto de mim. ”

...

Flavius se contorceu na cadeira: “Ao que parece Fip me traia com todo mundo.”. Não é que não soubesse das escapadas do ex-namorado, mas ver aquilo se tornar público doía um pouco mais. Mirar a expressão atônita de Pierre e Rebeca fazia com que ele se sentisse um tanto... feito de idiota. “É engraçado... e até um tanto patético isso. Mas eu, por mim, nem me importava muito com essas pequenas infidelidades do Fip. Incomodava-me, de verdade, que os outros soubessem. Incomodava-me sua falta de discrição ao me trair. O fato de suas traições serem publicas e notórias transformava-me, diante dos seus e dos meus amigos, um idiota. Alguém deixado a mercê... e ver-me nessa posição tornava as coisas mais difíceis.”

Michel parecia constrangido, por isso Flavius tentava deixar claro que estava tudo bem... Afinal, muito tempo já passou... Natasha suspirou fundo e disse, num ímpeto de coragem:

-Flavius, você sabe se seria possível trazer o Felipe para que ele desse alguma entrevista?

O menino engoliu em seco:

-Você sabe que não. Eu jurei ao Fip que nunca contaria isso a ninguém. Eu nem devia ter contado isso a vocês.

-Mas você tem o contato dele?

-Na.... não.

Ela segurou um sorriso triunfante e encarou Michel. Ambos sabiam que Flavius mentia mal e sua forma de negar deixou claro para os dois que o menino mentia. Por hora era o suficiente, logo Michel puxaria o assunto e a máscara de Flavius cairia. Michel por sua vez observou os olhares inquietos de Flavius e tentou não concluir o que acabara de perceber... Seria possível? Alias.. seria provável?

-Acho que devíamos fazer uma pausa. – disse Pierre – Estou com fome.

-Boa ideia! –Disse Natasha – Michel, porque você e o Flavius não preparam aquele macarrão com brócolis enquanto eu levo o Pierre e a Rebeca para conhecerem um pouco da cidade?

-Genial! – disse Rebeca – Tem vários lugares que quero conhecer!

Flavius fulminou a amiga com os olhos. Sabia o que ela estava planejando. Michel aceitou de pronto o convite e se dirigiu até a cozinha. Flavius caminhou lentamente até o local... olhou instintivamente para o jardim apodrecido... “Minha vida parece tão confusa quanto esse velho jardim abandonado.”. Michel parecia animado:

-Imagine só! – ele disse – Nós todos juntos nesse lugar de novo!

-Pois é... quem diria.

-E então... quando você vai me contar toda a verdade? – ele disse enquanto colocava a água no fogo.

-Acho que você já sabe de tudo.

-Possivelmente. Mas quero que você me conte. Olhando nos meus olhos.


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