Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 60
Capítulo 58 – Pro inferno essa merda toda.




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-Bom dia. – disse Artur enquanto abria a janela.

-Ai! Bom dia o caralho! – resmungou Natasha enfiando a cabeça debaixo da coberta para se esconder da luz – Que horas são?

-Quase oito. Te trouxe café da manhã.

-Ai cacete. Café da manhã na putaquepariu! Hoje é meu dia de folga! Me deixa dormir.

-Ahahahaha! Adoro seu mau humor matinal. – disse tornando a fechar as cortinas – Bem, a comida vai ficar aqui do lado da cama, quando acordar come tudo direitinho, ok?

-TÁ!

Artur deu um beijo no rosto da garota e se dirigiu até a sala onde Michel o aguardava para continuarem sua partida de vídeo game:

-E aí? – perguntou Michel – Ela acordou?

-Nada. Sabe que ela odeia ser acordada de manhã.

-Então por que você faz?

-Gosto de ver ela nervosinha. – sentou-se ao lado de Michel pegando de volta o controle no chão – Então? Pronto pra levar outra surra?

-Vai sonhando! Ninguém me vence quando jogo com o Gambit.

-Vamos ver! Quem perder lava a louça.

-Feito!

Natasha abriu novamente os olhos. Tinha perdido o sonho. Inútil tentar recuperar o sono perdido. Rastejou-se até o canto da cama para dar uma olhada no café da manhã colocado no chão. Ovos mexidos, pão, suco de laranja, e maçã... “Odeio maçã!” – pensou com um sorriso típico de amantes que gostam de se implicar – “Maldito! Ele sabe disso!”. Levantou a cabeça para ouvir melhor o que estava acontecendo na sala – “Artur e Michel estão jogando vídeo game. Sem chances de sexo antes do almoço”. Levantou-se:

-Bom dia meninos. – disse a caminho do banheiro – Quem está ganhando?

-Michel está tomando uma surra!

-Mentira! Eu quase ganhei o round passado.

-Quase, mas não ganhou.

-Eu sou a próxima! – disse Natasha – Só vou escovar os dentes e volto pra dar uma surra em vocês dois.

-Vai nessa! – contestou Artur.

Natasha deu de ombros e seguiu até o banheiro. Michel, ao perder a partida, levantou-se do sofá:

-Ok, eu me rendo!

-Ahahahahha! Vai ter que lavar a louça!

Michel não contestou. Caminhou derrotado até a cozinha:

-Aproveita e me traz uma cerveja.

-Coitado amor. – disse Natasha com dificuldade, pois estava com a escova na boca – Ele é visita!

-Visita nada, Michel é da casa! Traz a mais gelada.

-Traz uma pra mim também. Perai que eu já volto pra limpar a honra do meu amigo. Vou te dar uma surra que você nunca vai esquecer.

-Vai nessa!



...


Fip abriu os olhos, meio relutante em fazê-lo. Flavius estava de pé olhando a vista da janela:

-Bom dia. – disse Flavius.

-Bom dia.

-Desculpe por ontem. Eu ainda estava colocando as coisas no lugar. Quer dizer, sei lá, eu passei o mês todo sem ter nenhuma notícia tua. Depois apareceu o Felipe falando aquilo tudo... Meio que, mesmo sabendo que é mentira, sei lá, me deixou pra baixo.

-Mas era tudo mentira! Como isso podia te deixar pra baixo?

-Sei lá. Tive tempo pra acreditar que poderia ser verdade. Meio que registrei isso. Agora que tudo tá passando.

-Eu acho que nunca vou entender esse seu jeito! Você estava sofrendo por uma coisa que poderia ser verdade mesmo sabendo que não é?

-Você não precisa entender. Só precisa ficar de boa. Me deixar quieto quando acontece... Eu tenho meu próprio tempo.

-Tudo bem... tudo bem... Não discuto mais... Que horas são?

-Quase nove.

-SÉRIO? Vou me atrasar pro ensaio!

-Mas hoje é domingo!

-Eu sei, mas marcamos um ensaio extra! Preciso correr!

-Ok. Não quero atrapalhar.

-Você não está atrapalhando, seu bobo. – disse se levantando – Na verdade é muito bom te ter aqui.

-É bom estar aqui. Você volta que horas?

-Lá pelas três. Liga pra Natasha ou pro Michel. Acho que hoje é folga deles, assim você não fica sozinho.

-Eu to de boa. Vou dar uma volta pela cidade. Qualquer coisa eu ligo pra eles.


...


-Mas você não vai ficar pra almoçar? – Natasha perguntou.

-Não. – respondi – Eu nem devia ter dormido fora, preciso aproveitar a folga pra deixar a casa em ordem.

-Ai que bosta! – ela disse – Passar dia de folga arrumando casa!

-É a vida de adulto.

-Crê em deus pai!

Artur estava jogando vídeo game, sem camisa, calção de futebol. Natasha de camisetão e calcinha. A visão de ambos deixava meus hormônios alterados. Precisava sair dali antes que deixasse qualquer coisa transparecer. Natasha não insistiu mais. Provavelmente estava esperando ansiosa para que ficassem sozinhos. Não a culpo... no seu lugar nem teria me convidado para dormir com eles.

Sai caminhando devagar, sentindo –me um pouco sozinho. Desde que me mudei tenho falado muito pouco com meus pais. Mamãe pensa que estou me drogando até a morte, vendendo meu corpo e pegando Aids cinco vezes por dia. Ela acha que estou com o demônio no corpo e insiste em deixar isso claro toda vez que telefono. Meu pai não se dá ao trabalho de falar comigo, por isso imagino que ambos compactuam da mesma opinião. Estar sem os pais, por piores que eles possam ser, é uma sensação muito incomoda. É como caminhar sem um chão em que se apoiar... é como naufragar.

Busco mentalmente por todos meus amigos gays, e me parece que esse não é um privilégio meu. Muitos de nós acabamos sendo apartados da família... Que amor é esse que acaba quando você não é o que queriam de ti? Que amor é esse que desfalece por tão pouco? Somos regidos por relações tão egoístas, tão recheadas de mal estar! Egos, egos e mais egos. Verdade alguma, apenas convenções, interesses, polaridades. O amor... uma fatídica ilusão barata. São os interesses quem regem as relações, apenas eles...

Fico olhando para a cidade, as pessoas, tudo parece tão falso. O mundo criou verdades tão rasas, tão supérfluas ao redor de si que toda a vida parece frágil como a asa de uma borboleta morta. Desde que nascemos está tudo programado: como amar, a quem amar, o que fazer, quem desejar, o que comprar, o que ter, como trabalhar, que curso estudar... e somos levados a crer que essa é a única verdade pertinente, o único modo de existir. Não! Não é isso que quero para mim! Ser essas pessoas, existir caminhando por aí sem propósito, sem saber quem é! Abrir mão de cada um de seus sonhos em prol dos outros até não lhe restar nada além de uma terna lembrança de um dia ter sido alguém!

Jamais! Recuso-me a ser amado se esse for o preço a se pagar! Recuso-me a ser alguém! De repente senti vontade de socar cada pessoa que eu via na rua, como se todos fossem coniventes com toda a merda que nos cerca! Como se todos fossem culpados! Culpados! Quem se cala diante da morte, mata! Somos todos criminosos! Filhos de uma sociedade corrupta que não permite ser alguém. Alguém que não lhes sirva apara nada. Servir! Servir! Estamos sempre a servir! O que você é, o que você faz! Nada terá valor se fizer só pra ti. Tem que prestar contas! Tem que se mostrar escravo! Pagar as contas, pagar impostos, dar satisfação! Ser alguém! Ser alguém! Ser alguém para quem? Por quem?

Que diabos significa isso? Ser alguém? Fazer alguma coisa pelo mundo! Para que? Para quem? Que porra essa merda toda significa? O que significa ter de jogar toda uma vida fora para servir a um propósito desconhecido que alguém escolheu para ti antes que nascesse? O que é isso tudo? O que é?

Lembro-me dos meus pais, dos meus tios, professores, parentes, amigos... todas as expectativas desleais que criaram sobre mim: ser um bom menino, ter um bom emprego, malhar o corpo para ficar mais bonito (pra quem?), cortar o cabelo desse jeito, vestir roupas apropriadas, ir à igreja, se comportar! Quando foi que alguém me perguntou se eu queria alguma dessas coisas? Quando foi que alguém se preocupou se alguma dessas coisas me fazia bem? E no simples momento em que decidi amar alguém que não estava no protocolo deixei de ser uma opção válida. Deixei de ser aceitável. Passei a ser não mais uma pessoa, mas um erro ambulante. Uma merda que precisava ser concertada... ou escondida. A personificação do demônio... pro inferno todos vocês!

Meu telefone tocou, era Flavius:

-Hey!

-Hey! Soube que você está na cidade! Como está?

-Estou bem. Cheguei ontem.

-E o Fip como esta?

-Está ensaiando.

-Ensaiando? Que estranho! Hoje não é domingo?

-É... ele disse que marcaram um ensaio extra.

-Ensaio extra? Onde?

-Sei lá. Sei que ele foi. Tentei ligar pra Natasha ela não atendeu.

-Ela deve estar transando com Artur.

-Ahahahaha faz sentido. Que tal um almoço?

-Hmm, acho que não faria mal. Onde?

-Não conheço a cidade. Diz você... onde?

-Eu passo ai e te pego, podemos ir num shopping que tem ai perto.

-Combinado.

-Combinado.

E num sopro divino toda a nuvem se foi... amizades... amigos... talvez nem tudo estivesse perdido...


...


Pierre soltou um sorriso:

-Então, precisamos parar por aqui hoje. Vamos mesmo a Alvinópolis esse fim de semana?

-Sim. – confirmou Flavius – Acho que estão todos de acordo.

-Estamos sim. – confirmou Natasha – Vai ser bom dar algumas entrevistas na casa antiga.

-O irônico. – disse Michel – É que contamos todo o tempo em que morávamos lá aqui... E agora que estamos contando sobre a época que morávamos todos aqui, vamos passar uns dias lá.

-Está tudo bem para você? – perguntou Rebeca – Estar na cidade dos seus pais?

-Ah sim. Minha relação com meus pais hoje está bem melhor. Não diria que está perfeita, mas eles entendem melhor as minhas escolhas.

-Fico contente.

-...

-...

-Bem, e vamos que hora?

-Na sexta depois das seis, pode ser?

-Sim. A gente pode se dividir em dois carros. – disse Natasha – Estou com as chaves do casarão, mas não deve ser uma boa ideia dormir lá. Deve estar uma zona a casa.

-Eu vou antes para arrumar tudo. – disse Flavius – Assim pode todo mundo dormir lá. (Gostaria de se ver sozinho na casa por alguns instantes)

Os olhos de Rebeca brilharam como os de uma criança:

-Isso seria incrível! – disse.

-Então assim será. – Respondeu Flavius.

Natasha deixou seu olhar se desviar para a janela. Estaria preparada para isso? Reviver de forma tão pungente essas lembranças? Talvez não tivesse escolha... Não importa. Michel buscou seu olhar e segurou sua mão, um pequeno sinal de compreensão em meio ao silêncio. Flavius observou aos dois: como poderia voltar a viver sem eles?


...


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