Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 39
Capítulo 37 –Um jantar




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Flavius acordou no dia seguinte com os olhos pesados, havia bebido demais. Michel, Natasha e ele festejaram como há muito não faziam e acabaram por virar a noite na rua. Eram quase três da tarde, contatou ao olhar no relógio. Esfregou os olhos, sacudiu os cabelos... “que loucura foi a noite de ontem” – pensou – “Michel e eu quase nos agarramos... penso que se Natasha não estivesse conosco...”. E parou para pensar nos olhares, nas indiretas, no clima que havia “rolado” entre ambos. Mordeu de leve os lábios e se encostou à cabeceira da cama. Era estranho pensar nesse clima entre ele e Michel. Depois de tantos anos, já havia aprendido a desistir do rapaz e, julgava já tê-lo esquecido por completo. Porém, hoje, ao se lembrar da noite anterior, sentia seu estômago voltar a formigar.

“Tem alguma coisa diferente no jeito que ele me olha. No modo como fala do meu casamento... Sinto que isso o incomoda... ele me quer... eu sei que sim... é engraçado, eu o desejei a vida toda e ele me esnobou e agora parece que é a minha vez.”

...

—Rebeca, você sabe onde está aquela champagne que meu primo trouxe da Suíça? – Perguntou enquanto vasculhava os armários da cozinha.

A moça estava sentada no sofá da sala, distraída de tal modo que mal se apercebeu da presença do atual conjugue. Seus pensamentos caminhavam por outras direções, vasculhavam o passado, um tempo distante, quando Pierre ainda não existia em sua vida.... a infância... a adolescência que quase não teve. “Os meninos... Flavius, Fip, todos... ... .... eles têm um tesouro. Lembranças que ninguém lhes pode apagar. Eles pertencem a um grupo, possuem histórias conjuntas... mesmo que algumas sejem tristes... ao menos existem. Isso faz da gente humano, faz-nos pensar que é gente. Eu olho para trás e vejo quem? Quem esteve do meu lado no decorrer da minha vida? Que amigos tive? Ninguém, não há ninguém. Fui concebida já adulta e meu passado não há... Terá minha vida valido a pena?”

—Rebeca! – disse Pierre tocando-lhe o rosto – Você está ai?

—Não... e você? Onde está?

—Procurando minha champagne. Você sabe onde está?

—Não. – mentiu. Em verdade sabia, estava no armário de cima, atrás das panelas, mas estava com preguiça de dizer. Fechou os olhos, não queria falar.

...

—Tarde bonita, não? – disse Natasha ao tirar os óculos escuros e se sentar na grama.

—Desculpe, só consigo pensar na ressaca. – respondeu Michel.

—Ontem foi uma noite e tanto, não? E então? Dormiu bem?

—Como uma pedra.

—Sabe que hoje me bateu uma saudade do Artur!? Quase tive vontade de ligar para ele. Foi tão bacana o que vivemos. Sinto certa falta.

—É. Andei lembrando muito do Cláudio também... do Felipe. Aquele foi um tempo muito precioso que vivemos. Hoje eu percebo isso.

—E hoje? Hoje não é precioso pra você?

—Hoje eu tenho muita preocupação de grana. Passo meio apertado pra pagar as contas, isso da um certo stress. Mas eu não tenho muito que reclamar, gosto muito do meu trabalho, apesar de ganhar pouco.

—Eu soube que você arrazou no seu último espetáculo. Que foi muito bem elogiado!

—Sim, mas o retorno financeiro não existiu. Às vezes eu me canso disso... de trampar, trampar, trampar e nunca sair do lugar, sabe? Por mais que eu adore meu trabalho, não dá pra viver só de gostar, entende? Chega uma hora que a gente quer dormir sem se preocupar com contas.

—Eu sei. O restaurante dá muito dinheiro, mas também dá muito gasto. Acaba que, no fim das contas, o dinheiro que entra não compensa todo o trabalho que dá. Mas agora, com esse dinheiro que o Chico deixou pra gente, acho que dá pra você arrumar sua vida, não?

—Claro, mas me faz mal pensar nisso. Tipo, mudar pro apartamento dele vai me aliviar muito, não ter que pagar aluguel. E, claro, a grana que ele deixou, caramba, ele era muito rico! Esse dinheiro vai me aliviar muito, mas é ruim me sentir aliviado com um dinheiro que vem da morte dele. Sei lá, preferia que ele estivesse vivo. Penso que não vou me sentir bem em usurfruir desse dinheiro.

—O Flavius disse que vai te dar a parte dele. Ele não precisa de dinheiro, acho que, de todos nós, ele é quem mais se deu bem.

—Eu não sei se posso aceitar isso.

—Você deve, Michel. Sabe, eu penso que o Chico ficaria satisfeito em te ver se dando bem com o dinheiro dele. Ele sempre gostou tanto de fazer as coisas pela gente! Não acho que você deva se sentir mal com isso. Sabe, eu vou torrar todo o dinheiro pensando: ahahahahahahahaha – fez uma risada maligna muito forçada nesse momento – Pelo menos aqueles parentes filhos da puta dele ficaram sem nada! E eu acho que é bem isso que o Chico esperaria de nós. E quanto ao Flavius te dar a parte dele...bem, pense da seguinte forma: o Flavinho é rico, não precisa do dinheiro, ele tinha uma relação muito mais pesada com o Chico. Vai se sentir muito mais mal que você gastando o dinheiro dele. Eu acho que você faria um bem pra ele se aceitasse. O Flavius quer se livrar desse dinheiro, se você não aceitar ele vai dar pra outra pessoa e... poxa... vocês são amigos!Nós somos amigos! Você faria isso por ele, ou por mim, se eu ou ele estivéssemos na situação que você está!

—É... talvez você tenha razão... não sei... vou pensar melhor nisso...

—Pensa mesmo. Acho que é melhor.

Natasha mexeu nos cabelos e ficou a observar o movimento do parque. Michel permaneceu olhando para o chão enquanto refletia:

—Flavius está atrasado. – comentou por fim.

—Ah, com certeza ainda não acordou. Você sabe que aquele ali não acorda cedo nem com reza brava!

—Hahaha, verdade. Ainda mais depois de uma bebedeira daquelas!

—Nossa, fazia tempooo que eu não chapava daquele jeito! Estou toda muída! Acho que estou velha pra isso!

—Eu até que nem tanto. Estou acostumado a beber. O Flavius, pelo visto, está bem menos habituado que nós.

—É... eu soube que o marido dele não bebe.

—O marido dele... e ele faz tudo que esse cara manda?

—Não é isso! Bem, não sei. O Flavius não é nem um pouco submisso, você sabe disso! É mais provável que seja o contrário!

—Sei não. Não gosto dessa ideia de ele ir para a Argentina de novo. Você fala que não vê ele como uma pessoa submissa, mas se a gente olhar bem pra relação dele com com o Fip, havia sim um tipo de submissão ali. E me preocupa que ele esteja repetindo isso nessa relação.

—Sei...

—Nem vem com essa... não é que eu esteja com ciúmes. Eu só me preocupo! O Flavius é muito frágil e eu não acho que esse cara cuide bem dele! Sei lá, ele não parece feliz!

—O Flavius nunca pareceu feliz, Michel.

—Por isso mesmo! Ele merecia um cara que fizesse ele se sentir melhor! Que entendesse ele! Que o conhecesse de verdade!

—Tipo você?

—Nã... não é isso que... Poxa Natasha! Que mania essa sua!

—Olha, Michel, eu vou te falar uma coisa. O Flavius sempre vai gostar de você... tipo, SEMPRE. Ele pode ter se envolvido mais com o Fip, mas, no fundo, ele sempre gostou mesmo de você! Eu acho que ele largaria esse marido a qualquer momento pra ficar contigo. Mas eu não acho que você deva propor isso a não ser que esteja cem por cento disposto a ficar com ele... tipo, de verdade, pra sempre, entende?

—Shhh. Ele está vindo! – acenou com o braço para que o menino o visse.

Natasha soltou um sorriso bobo ao imagina-los juntos: “Sempre torci tanto pela felicidade do Chico que nunca me permiti ver esses dois como um casal. Agora, como as coisas estão, eu penso que seria lindo ver eles se entendendo.”:

—Oi, galera. Tudo bem? – disse Flavius ao chegar.

...

—Oi, galera. Tudo bem? – eu disse.

Natasha estava com um sorriso bobo, eu sabia o que ele queria dizer. Ela estava a fantasiar um romance entre Michel e eu. Senti uma pequena fisgada no peito. Por alguma razão pensar nisso me fazia sofrer. Fazia algo dentro de mim doer. Rastejei-me tanto tempo atrás dele que agora tudo o que restava de nós era uma pontada de amargura e despeito. Fiquei a mirar os dois, planejando a minha felicidade, como se minha opinião não contasse! Sei que não havia motivos para que eu me chateasse, afinal, eram meus amigos. Mas parei para pensar nessa situação: eram meus amigos porque os havia conhecido através de Fip. Compatilhamos de muitos momentos juntos porque Fip estava ali, servindo de ponte entre nós. Faria sentido continuar a considerá-los amigos agora? Sem Fip? Sem um elo de ligação? Em verdade não sei se ainda os amava. Ultimamente só tenho amado a solidão:

—Tudo ótimo, meu querido. – disse Natasha – Senta aí com a gente. Estava tentando convenser o Michel a aceitar a parte do dinheiro que você disse que daria pra ele.

—Ah, sim. – eu disse – Ia comentar isso com você, Michel. Eu não preciso desse dinheiro, e não o quero. Se você aceitar, ou precisar, eu posso passá-lo pra ti.

—Não sei se me sentiria confortável com isso. – ele disse.

—Então na próxima vez que reclamar na minha frente que mal consegue pagar suas contas, vou me dar o direito de enfiar um soco bem no meio do seu nariz. – eu disse me sentando – Porque você mesmo sempre jogou na minha cara que eu ficava reclamando dos meus problemas e não aceitava quando tentavam resolvê-los. E agora vem se fazer de coitadinho com relação à grana e não quer aceitar o que eu tenho pra te propor! Porra, Michel, se eu precisasse desse dinheiro, ainda tudo bem de você ficar meio assim pra aceitar, mas na situação que eu vivo... acho uma incoerência!

—Seu dinheiro não é seu, Flavius! É do seu marido! Se um dia ele te largar você fica com uma mão na frente e outra atrás!

—Ele nunca vai me largar. E, além do mais, se isso acontecer, você me retribui a ajuda. E pronto, ficamos quites. Amigos não servem pra isso? Pra um ajudar o outro quando pode? Então, eu posso te ajudar agora, se um dia eu precisar e você puder você me ajuda.

Ele abaixou a cabeça e coçou a nuca, sei que ele sabia que eu tinha razão. Mas seu orgulho estúpido ainda o obrigava a não ceder de imediato. Michel relutava em aceitar a MINHA ajuda porque sempre me viu como a pessoa que PRECISAVA ser ajudada. E agora feria seu orgulho estar abaixo de mim!

—Tudo bem, eu vou aceitar. Você tem razão, eu estou sendo tolo. Eu preciso mesmo desse dinheiro e nós sempre dividimos tudo o que tínhamos, por que seria diferente agora?

—Até que enfim você pensou que nem gente! – disse Natasha dando um tapa na sua nuca.

Sorri. Percebi o quanto fui tolo ao colocar nossa amizade em xeque. Natasha e Michel são meu lugar no mundo! Michel soltou um sorriso frouxo, sem graça, olhou para os lados e disse com o olhar fixo no chão:

—Não gostaria de continuar aqui sozinho. É muito solitário viver longe de vocês.

—Eu me decidi. – disse Natasha – Vou fechar o restaurante e me mudar pra cá. Já perdi o Chico, não quero perder vocês também.

Ela disse isso num tom altamente decidido. Invejei sua força, sua disposição para mudar as coisas. Em verdade isso sempre foi o que mais admirei nela. Natasha é destemida, e jamais aceita por muito tempo uma situação que a desagrada. Se mil vezes se ver em uma situação ruim, mil vezes irá abandonar tudo para buscar outro caminho. E ela nem sequer olha para trás! Quando a conhecemos ela havia acabado de fugir de casa com o namorado que a abandonou na estrada, e ela, prontamente aceitou a vida nova que Fip a ofereceu e viveu conosco enquanto lhe agradou o coração. Mudou-se quando percebeu que queria outra coisa e depois abandonou tudo para montar o restaurante onde vive agora. Natasha é solta no mundo! Vive como quer, quando quer.

Ela e Michel estavam abraçados, comemorando a decisão. Eu sorria tentando demonstrar ao menos metade de sua animação. Eles me olhavam como que se cobrando de mim uma resposta. Eu nada disse, não era o momento de largar tudo. Não agora:

—O que foi, Flavius? – disse Michel – Parece triste.

—E quando não pareci?

...

Rebeca preparava os últimos detalhes do jantar. Pierre estava no banheiro terminando de se barbear. O jantar aconteceria em uma noite de sexta feira, às oito da noite, no apartamento do jornalista. No quarto os papéis com os registros das entrevistas, as anotações de Pierre riscadas em vermelho pelas correções de Rebeca. Estavam a escrever o livro que agora começava a ganhar forma. “Será prontamente aceito por qualquer editora!” – pensava Pierre triufante! Rebeca colocava sobre a mesa a garrafa de vinho chileno. A campainha toca... eles chegaram... seus amigos de adolescência que jamais existiram haviam chegado. Com eles suas histórias que agora Rebeca tomava para si. Lia e relia seus depoimentos como que tentando agregá-los a suas próprias lembranças. Como se tentasse secretamente ser um deles. Amava-os, sentia-os como que amigos íntimos, próximos de toda a solidão que sempre sentiu:

—Boa noite, queridos! – disse ao abrir a porta – Sejem bem vindos!

Natasha estava radiante, vestia um vestido tubinho preto, com finas joias preteadas a adornar os braços e pescoço. O cabelo preso em um coque e a boca bem marcada em batom vermelho. Michel, mais despojado, vestia um blazer preto com calça jeans. Flavius usava uma calça larga de algodão e uma camisa quase inteiramente aberta, os cabelos revoltos, olhar perdido no espaço:

—Minha querida! – disse Natasha – Como está bonita! E Pierre? Onde está? Como passaram esses dias?

—Escrevendo. Já fizemos bastante coisa! Acho que vão gostar dos resultados!

—Ah, depois queremos ver tudo!

—Pode deixar! Mostraremos sim!

...

—Rebeca. – disse Michel no meio da noite, quando, depois de um pouco de bebida, as risadas pareciam mais frouxas e os ânimos mais dispostos a conversas francas. Estavam todos sentados ao chão, em volta do tapete felpudo que se encontrava no centro da sala – Diga-me uma coisa.

—Claro, meu querido. Qualquer coisa que queira!

—Fip, antes de morrer, enviou-nos umas cartas. Nelas ele dizia que uma mulher entraria em contato conosco e que nós deveríamos fazer o que ela pedisse.

—Sim.

—Essa mulher era você.

—Sim.

—Mas por que você? De onde conhecia Fip?

Pierre estacionou o movimento que levaria mais vinho à sua boca. Olhou para a companheira com olhar espantado. Estarrecido pela surpresa, não pôde fazer nada além de observar enquanto pensava: “Então Rebeca conhecia o Fip? Por que nunca me disse nada?”:

—Eu conheci o Francisco quando éramos adolescentes. Bem antes de ele conhecer vocês... quando eu ainda era um menino...


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