Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 38
Capítulo 36 – Intensificação dos desejos.




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Quando recebi a notícia de que Felipe voltaria eu sabia que ia dar merda. Nunca gostei muito daquele menino e, agora que ele voltava na posição de vítima, de pobre menino que exige cuidados, teria as armas certas para dar o bote. Não é que ele fosse mau, ou que fizesse de propósito, mas eu sempre senti que a presença dele fazia alguma coisa entre Flavius e o Chico deixar de funcionar. O Chico sempre disse que tinha medo da influência do Michel na cabeça do Flavinho, mas eu sempre considerei o Felipe como um perigo maior... porque ele mechia com a cabeça dos dois...

Artur tinha ido para casa pouco antes do almoço. Disse que voltaria mais a noite pra gente fazer qualquer coisa. Eu não gostava do fato de me lembrar da sua existência a cada cinco minutos e sentir o coração tremer. O filho da puta tinha mexido comigo, e eu estava unindo forças para não me deixar empolgar. Mas como não? Menino bonito, boa conversa, mente aberta... mas morava longe, só estava passando férias, é óbvio que não teria futuro:

—Está com a cabeça nas nuvens hoje, hein Natasha? – disse Fip enquanto picava as cebolas – A noite foi tão boa assim?

—Tenho que admitir que foi.

—Não faz muita propaganda que eu vou querer experimentar. Ahahahha e quando é que eu vou conhecer o guri?

—Ele disse que vinha hoje a noite. Talvez vocês se conheçam. Só toma cuidado, menino, agora tu ta comprometido, hein?

—Eu sei, eu sei... – olhou pela janela da cozinha e ficou observando Flavius, que estava sentado lá fora – Dessa vez vou tentar não estragar tudo.

—Duvido.

—Credo, Natasha, é sério. Dessa vez vou me comportar. Já quase perdi o Flavius uma vez e não quero correr o risco de novo.

—Sei... sei... mas me diz ai, com teu primo vindo aí... você não acha perigoso?

—O que? Felipe? Ahahahahahhahaha, Natasha, e por acaso primo conta?

—Claro que conta!

Vi o sorriso dele murchar devagar, parece que estava sentindo o peso da coisa:

—É... o lance com o Felipe aqui vai ser tenso. Não é que eu sinta uma atração gigante por ele, mas a gente se conhece desde criança! Nossa intimidade, nosso desejo, é tão natural que nem chega a ser traição. É simplesmente o modo como nossa relação foi construída. Não dá pra jogar tudo fora assim e... e ele, mesmo engomadinho e irritante, ainda se parece muito comigo... eu digo, fisicamente. É o mais próximo que eu consigo de transar comigo mesmo.

— Eu não acredito que escutei isso. Sério, juro que vou fingir que não ouvi isso, Chico!

—O que? Qual o problema? Vai dizer que você não transaria com você mesma?

—Claro que sim, mas... mas isso que você disse é absurdo!

—Ah, claro! E morar na casa de um desconhecido depois de ter sido atropelada na auto estrada em alta madrugada não é absurdo algum, né?

—Sim, eu sei que é absurdo, mas... mas olha pra você! Você é um cretino muito dos convensidos! Sério! Eu nunca conheci alguém tão... tão... podre quanto você! – eu disse rindo.

—É o meu charme todo especial. Todo mundo gosta de um bom cafageste.

—Mas duvido que o Flavius gostaria disso.

—Ai que merda que é se apaixonar, não? Quando a gente chega a desejar ser uma pessoa diferente do que é em nome do outro é porque a coisa tá ficando séria.

—E vai me dizer que você queria ser menos cafageste pelo Flavius?

—Não! Claro que não. Quer dizer... no fundo eu talvez gostaria. Ou talvez eu pense que deveria querer isso. Mas eu não quero não.

—Então assume isso de vez e seja feliz. Só não ilude o menino. Deixa ele saber com quem está lidando.

—E você acha que ele não sabe?

—É.... ele sabe sim... mesmo que não queira saber... mas a minha pergunta é... você sabe com quem está lidando? Você sabe do que o Flavius é capaz? Sei lá, o menino fica meio violento as vezes.

—Eu nunca sei como ela vai reagir. O dia que eu souber acaba o amor... Onde está o Michel? Não o vi hoje.

—Ele saiu logo de manhã. Deve ter ido visitar os pais.

—Foi se fazer de filho arrependido? Que patético! E o Flavius ainda ama esse desgraçadinho.

—Que casal engraçado vocês dois.

—E o que você entende de casais?

—O suficiente pra saber que isso vai dar merda. Você pode querer não ver porque está apaixonado, mas no fundo tem que admitir que está na cara que isso não vai dar certo.

—Dane-se. Até hoje nada na minha vida deu certo. Não me importa que isso também fracasse. Desde que eu tenha experimentado o suficiente para me lembrar no futuro.

—Então segura sua periquita, para que não acabe cedo demais.

—Eu? Me segurar? Natasha, até parece que você não sabe quem eu sou.

—E até parece que você não sabe quem o Flavius é!

—É... isso não vai dar certo mesmo... mas pelo menos nós vamos nos divertir.

—Você vai se divertir. O menino só vai sofrer.

—Mas é uma pena, não é? – Ele abaixou os olhos pensativo – Que não vá dar certo. Eu gostaria tanto que desse.... ao menos uma vez na minha vida... gostaria que algo desse certo. Mas, mesmo que nos gostemos, logo nossos gênios vão se bater e tudo vai desmoronar...

—Ai para de drama, Maria do Bairro. Corta os pulsos de uma vez.

Ele atirou o resto da cebola em mim e riu. Depois fizemos uma cena extremamente dramática, como as de novela mexicana. Choramos muito de mentira por motivos que gostaríamos de ter chorado de verdade. Foi o suficiente para lavar nossas almas.

...

—O que é tão engraçado? – perguntei enquanto entrava na cozinha.

Eles pararam de rir, um tanto desconcertados, Fip se adiantou em dizer que não era nada e Natasha desviou os olhos enquanto mexia nos cabelos. Tive a sensação aterrorizante de que riam de mim! Até podia ver seus pensamentos, sua acidez. Fip e Natasha podiam ser muito crueis quando se uniam e, de sua crueldade, não escapava ninguém. Fiquei a imaginar que tipo de comentários sórdidos poderiam estar fazendo ao meu respeito... Entreolhavam-se entre meio sorrisos, trocando certa intimidade de que eu não poderia participar. Irrite-me!

Sabia que não tinha esse direito, que ambos eram amigos e deveriam possuir suas próprias brincadeiras, sua própria intimidade... além disso poderiam estar falando de qualquer outra coisa... por que eu estava sempre a esperar o pior dos outros? Tentei esboçar um sorriso e agir naturalmente. Talvez devesse insistir um pouco para que me contassem o que se passava... talvez devesse fazer qualquer brincadeira para não parecer antipático... chateado... até porque sabia que minha irritação não tinha motivos e eu podia estar sendo neurótico:

—E o que vamos ter de almoço?

Eu disse mudando de assunto, mas com um tom de voz mais seco e arredio do que eu gostaria. Não estava conseguindo disfarçar minha exaltação. Por mais que soubesse, ou imaginasse, que ambos não estavam a rir de mim, não conseguia apagar por completo tal idéia da minha cabeça. E, por isso, não conseguia também agir naturalmente.

—Talvez lasanha de microondas. – disse Natasha.

—Uau. Que novidade!

—Estava pensando em algo diferente, meu bem? – disse Fip em um tom de carinho que, para mim, naquele contexto, soou falso e desagradável.

—Não. Acho que vou almoçar com a minha tia.

—Mas por que? Você disse que passaria o dia aqui.

—Ah, Fip, minha casa fica a menos de cinco quadras daqui! Não vamos morrer se ficarmos algumas horas separados! E vocês também precisam do tempo de vocês! Acredito que tenham muito que conversar. Aproveitem que o Michel não está e coloquem a conversa em dia. Eu estou de saída também. – eu disse tentando parecer o mais calmo possível, mas via as palavras sairem atropeladas e rudes de minha boca.

—Que foi? Ficou chateadinho com alguma coisa? Vai correr direto para o colinho da titia? Para fugir do Fip mau? – ele disse naquele seu costumeiro tom de ironia.

—Não é nada disso, Fip, eu só decidi almoçar em casa. Mais tarde eu volto, pode ser? – eu dizia tentando evitar o seu olhar - Ou você vai querer me trancar na sua masmorra para sempre?

—Bem que eu gostaria... Mas você fica ai se fazendo de coitadinha.

De repente, tudo que saia da sua boca me soava agressivo, irritante e até insuportável. O que me fazia querer sair urgentemente daquele lugar. Ficar sozinho, longe dessas ferpas e acusações. Longe dos risinhos, das ironias, da pressão. Longe de mim mesmo, talvez... Não entendia por que eu precisava ser assim, tão arredio e melindroso. Mas normalmente era assim que eu reagia a qualquer provocação... real ou imaginária. Não era algo que eu pudesse controlar... o desconforto aparecia e eu não podia fazer nada além de fugir o mais rápido possível para qualquer lugar onde pudesse ficar só.

—Chico, deixa o menino. Qual o problema dele comer em casa? A nossa comida é ruim pra cacete, ninguém devia ser obrigado a comer essa merda aqui.

—Não é isso! Eu conheço o Flavius, ele está indo embora porque está chateado. É ou não é? – ele disse me olhando nos olhos.

—Se ele tiver chateado também é um direito dele – ela continou – As vezes a gente se chateia e nem sempre quer dividir. Não é legal fazer o menino se sentir culpado por causa disso. Para de cena, deixa ele ir.

Eu me senti levemente confortado pelas palavras da Natasha. Em verdade elatinha razão. Eu não tinha que me sentir culpado por querer ficar sozinho, mas eu não podia evitar... Geralmente me sentia culpado por tudo.

Dei três passos para trás, saindo da cozinha em direção a sala. Ele me seguiu, Natasha se levantou dizendo que ia deixar a gente resolver isso sozinhos e saiu para o jardim:

—Muito bem, senhor Flavius. Vai me explicar o que esta acontecendo ou não?

—Explicar o que? Eu não posso mudar de idéia?

—Não sem me explicar os motivos.

—Eu não tenho obrigação de te explicar tudo!

Ele me segurou pelos dois braços e puxou meu corpo para perto do seu. A essa altura eu já me via possuído de raiva. Ele disse:

—Está chateado porque inventou na sua cabecinha oca que nós estavamos rindo de você? E agora vai bancar a donzela indefesa da disney e correr pura para um lugar seguro! Por favor, Flavius, aprenda a se defender! Pare de agir como uma criancinha!

—Cala a boca, Fip! Não tem nada a ver isso que você disse! Eu só decidi almoçar com a minha tia! Lembrei que tinha prometido pra ela! Isso é crime agora?

Ele mo olhou no fundo dos olhos e disse:

—É mentira.

Soltei meus dois braços e o empurrei contra a parede. Odiava o modo como ele me lançava essas acusações! Como se eu estivesse a cometer o maior dos pecados, simplesmente por sentir o que sinto. Pensei em todos os palavrões sujos que gostaria de ter-lhe dito e me imaginei espancando-o de diversar formas distintas. Mas me limitei a dizer:

—Se não confia no que eu digo, não vejo razão para continuarmos com essa brincadeira de nos considerar namorados.

Virei as costas e caminhei em direção à porta. Ele me segurou novamente pelo braço:

—Calma. –ele disse – Vamos conversar.

—Tudo bem, querido. Vamos conversar. – eu disse esforçando nos lábios um sorriso- Mas solte o meu braço...

—Bom dia queridos. – disse Michel abrindo a porta.

—Bom dia. – respondeu Fip – Alguma novidade?

—Trouxe o almoço. – ele disse radiante, com aquele sorriso no rosto que ainda me fazia sentir o estômago formigar.

—E então, Flavius? Vai ficar para o almoço? – perguntou Fip.

Vi-me em um empasse. Tive medo de aceitar o convite de imediato e passar a sensação de que a presença de Michel me havia feito mudar de idéia . Mas, no entanto, a verdade é que vê-lo chegar me havia feito passar o mal estar e, com isso, senti certa vontade de ficar. Mas não podia deixar que Fip percebesse isso e relutei em aceitar o convite:

—Acho que não. Minha tia está me esperando e...

—Por favor, querido. – disse Fip – Fique... em algumas horas o Felipe chegará e gostaria que fossemos todos visitá-lo no hospital. Seria muito bom se você ficasse, não é Michel?

—Claro! Aqui tem comida pra todos e eu quero contar as novidades! Fiz as pazes com a minha mãe. Quero contar como foi!

—Está vendo? Duvido que você vai querer perder esse incrível episódio da narrativa familiar do Michel! Você adora uma boa trama em família que eu sei! Vamos, Flavius! Fique!

—Ok, ok, vou ficar! Mas não posso me demorar muito! Antes que Felipe chegue eu preciso dar uma passadinha na minha casa.

—Combinado! Vou contar a novidade pra Natasha. – e saiu da sala, deixando Michel e eu sozinhos.

—E como está indo o namoro? – perguntou Michel.

—Até agora não mudou muita coisa. Não sei.

Não quis parecer muito animado, mas, ao mesmo tempo tive medo de parecer desanimado demais. Depois do que havia acontecido naquela noite, sentia minha atração por Michel aumentar. Não sei se era uma coisa da minha cabeça, mas me pareceu que alguma coisa muito especial havia ocorrido naquela noite. Nossos corpos tinham se entendido muito bem e eu tenho certeza que ele havia gostado daquilo também. Ficava me perguntando se ele queria, tanto quanto eu, que aquilo se repetisse. Tentava examinar qualquer sinal em seu olhar, mas não conseguia perceber nada além do meu habitual tremor nas pernas:

—É que ainda vejo Fip como amigo. – continuei – Digo, para mim ele é a mesma pessoa de antes... acho que só demos um título para a coisa... sei lá.

—Eu entendo. Na verdade pouca coisa mudou, não é?

—É... por ai.

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Talvez analisando o que deveria ser dito em seguida. Por várias vezes tive a sensação de vê-lo se preparando para dizer algo e desistindo em seguida. Como se pensasse melhor e deixasse para depois. Fiquei pensando se deveria tocar no assunto ou não. Não queria parecer que estava dando em cima dele, mas também não queria que aquela nossa noite se tornasse um tabu:

—Então você fez as pazes com a sua mãe? Legal... pensa em voltar a morar lá?

—Não! Não! Mas também não sei se vou continuar aqui. Estava pensando em me mudar pra casa da Natasha... Ela e eu estavamos conversando sobre isso. Sei lá, já abusei muito da hospitalidade do Fip e... agora que vocês estão namorando... bem... eu não queria te dar motivos para ter ciúmes...

—Como assim?

—Você sabe. Aquilo que rolou entre eu e ele. Sei lá. Acho que se eu continuasse morando aqui você poderia ficar imaginando se aconteceria de novo... Acho que prefiro evitar a sua dúvida.

Que bonito ele demonstrar tal preocupação! Mas, por outro lado, isso poderia significar que o mesmo não aconteceria novamente entre eu e ele? Será que eu me importaria em saber que ele e Fip transaram de novo se eu também o tivesse feito? Será que eu estava apaixonado o suficiente pelo Fip para rejeitar o Michel? Qual de nós dois Michel preferiria?

—Ah, para com isso! – eu disse – Não precisa se importar com isso. Fip é um conquistador nato e eu sei que você não resistiria a ele mesmo morando na China. Estive pensando nisso, se eu for mesmo namorar o Fip vou ter que aprender a lidar com as traições dele.

—E está tudo bem para você?

—Desde que eu tenha os mesmos direitos... Tenho pensado em propor pra ele um relacionamento aberto. Acho mais honesto, sabendo quem ele é.

A sorte estava lançada. Michel pescaria a isca se quisesse. Agora era hora de mudar de assunto, para não parecer cafageste:

—E o que você trouxe de almoço? Vamos lá para a cozinha com os outros?

...

—Podemos parar por aqui? – disse Michel.

—Claro. – respondeu Pierre – Gostaria mesmo de terminar mais cedo. Penso em começar ainda hoje a escrever o que já gravamos. Tem muita informação até aqui e vejo que ainda tem muita coisa pela frente.

—Na verdade estavamos pensando em dar uma semana de pausa. Se todos estiverem de acordo. – disse Rebeca – Acho que está ficando muito cansativo para vocês. E aproveitaríamos esse tempo para escrever o que já coletamos.

“Bonito, agora Rebeca fala do projeto como se fosse dela também.” – observou Flavius – “Parece que há algo de sólido crescendo entre os dois.”.

—Por mim tudo bem. – disse o garoto olhando para os amigos que também concordaram.

—Entro em contato com vocês então. Muito obrigada. – disse Rebeca.

—E por que não nos encontramos para um jantar nesse meio tempo? – disse Natasha – A gente anda se encontrando a “trabalho” – desenhou as aspas no ar com os dedos – Mas já fazemos isso ha tanto tempo que, sei lá, acabamos nos ligando de alguma forma. Acho que seria bacana se a gente se encontrasse numa situação mais descontraída... pra conversar mesmo...

—Que ótimo! Eu super concordo! – Disse Rebeca – Pode ser na nossa casa, não é, Pierre?

—Claro! O que acham? – concordou o jornalista.

—Por mim está ótimo. – disse Michel.

—Ué... é só marcar. – respondeu Flavius.

—Ótimo, a gente marca mais pro fim da semana, pode ser?

—Sim, sim.

Comprimentaram-se amigavelmente e se separaram em seguida:

—Estou começando a gostar desses dois. – disse Natasha mais tarde enquanto os três caminhavam em direção ao pequeno pub que passaram a frequentar juntos.

—Eu também. Engraçado, depois de certa idade fazer amizades começa a ficar mais complicado, tivessemos conhecido eles ha anos atrás já os considerariamos melhores amigos. Agora, depois de meses de convivência, dizemos, no máximo, que estamso começando a gostar deles. – disse Michel.

—Isso é fato. Ando pensando muito nisso ultimamente. Sei lá, relembrar tudo isso me deixa reflexivo... como nos tornamos pessoas diferentes sem perceber.

—Eu não sei. – disse Natasha – Me sinto a mesma, só que com uma tpm mais brava.

—Ahahahaha! Credo! Quero nem ver isso. – disse Michel.

—Nem queira! –disse se sentando à mesa – O que vão querer pedir?

—O mesmo de sempre. – disse Flavius.

—Então espera aí que eu vou no banheiro. – disse Natasha – É rapidinho.

—Ok.

—Ok.

Flavius esfregou as mãos como que se protegendo do frio:

—Nossa, aqui está muito frio hoje. Mesmo acostumado com o frio de Buenos Aires ainda sinto o gelo desse lugar.

—É que aqui tem um vento muito gelado. Parece que corta a gente.

—É verdade.

—Pois é.

Silêncio.

—Você não sente saudades? – disse Flavius depois de um tempo de ausência.

—De quê?

—De nós.

—Defina “nós”.

—Eu sinto saudades de você. Das nossas conversas, dos momentos que passavamos juntos... não foram tantos, mas era tão bom. Sei lá, você ficará para sempre guardado entre as minhas melhores lembranças, Michel.

—Também sinto saudades disso, Flavius. De verdade. – disse o garoto com um pouco menos de verdade e entusiasmo na voz. Colocou a mão sobre a do amigo e a acariciou.

Flavius retirou sua mão e, desviando o olhar, disse:

—Não me interprete mal. Eu não quero te cobrar nada mas... mas gostaria de ter tido um pouco mais de você... da sua presença... você sempre foi muito importante pra mim.

—Eu sinto que negligenciei isso. Eu sinto muito.

—Não. Tudo bem. Digo... você não tinha a obrigação de me corresponder... digo, não no nível que eu gostaria. Eu sei que você sempre gostou de mim do seu jeito, mas... sei lá... eu só queria dizer que... que eu sinto muito... enfim, deixa pra lá.

—Acho que precisamos conversar sobre isso. Só nos dois. Natasha está chegando. Mais tarde falamos sobre isso, tem muita coisa que eu quero te dizer.

—Não é preciso.

—É sim.

—E aí? Já pediram? – disse Natasha se sentando.

—Ainda não. – respondeu Flavius.

—Sabe, eu estava imaginando. Como será daqui a dez anos? – disse Natasha – A gente vai estar já com trinta e tantos e como será que vamos encarar o que estamos vivendo agora? Sei lá, eu fico pensando: naquele tempo que vivíamos na casa do Chico, a gente se achava tão definido, tão dono de si. E olha quanta coisa mudou de lá pra cá. Aposto que a gente nem se imaginava vivendo do jeito que vivemos hoje! Acabamos nos tornando muito do que não gostaríamos de ser e nos acostumamos com isso. E como será daqui dez anos? Será que estaremos casados, com filhos, amargos, chatos?

—Casado eu já estou. – disse Flavius.

—E será que continuará casado até lá?

—Quem sabe? – deu de ombros.

—E a sua tia? – perguntou Michel – Como ela está?

—Casada também. Decidiu se assumir de vez e casou com uma mulher. Parece feliz. Vou visitá-la quando acabar isso tudo.

—Que ótimo! – disse Natasha – As vezes eu lembro da surra que eu sei nela. Aahahahahhaha, que bobagem, cada coisa que a gente faz.

—É, lembro que eu fiquei um bom tempo chateado com você.

—E com razão. Imagina, mesmo que ela tivesse me atropelado... ah, sei la, no fundo ela mereceu um pouco.

—Todo mundo, no fundo, merece uma surra. – disse Michel.

—Até você? – perguntou Flavius.

—Principalmente eu.

—Se quiser. – disse Flavius em tom de brincadeira – A gente pode providenciar isso mais tarde.

—Opa, gatinho. Na sua casa ou na minha?

—Prefiro a sua.

—Então já é.

—Ui! Deixa eu assistir? – disse Natasha.

—Claro!

Riram, sabendo que parte daquela brincadeira acabaria se concretizando mais tarde.


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