Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 31
Capítulo 29 – Egos partidos


Notas iniciais do capítulo

Gostaria de me desculpar pelo teeeeempo em que fiquei sem postar nada. Mas aconteceram muitas coisas caóticas nesse meio tempo. Vou dar uma leve explicação: Uma que meu computador pifou levando com ele tudo que eu tinha escrito, o que me forçou a reescrever tudo de novo, quem já perdeu arquivos que já tinha escrito sabe a preguiça que dá fazer isso.
Outra que estava trabalhando horrooooores com um figurino de um musical que eu fiz, com 58 peças de roupa e sim, costurei tudo sozinho, o que me deixou pouco tempo livre para escrever.
E mais outra que, nesse meio tempo, tive que lidar com a morte da minha avó, que morreu de alzheimer aos 86 anos.
Sei que vocês não são culpados por nada disso, mas peço sua compreensão. Problemas acontecem o tempo todo e é isso que faz a vida girar.

Mais uma vez, desculpe pelo atraso e enjoy.



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 ‘’Os meninos estão sonolentos.’’ – pensou Rebeca – ‘’O que terá rolado entre eles nessa noite?’’. Olhou para Pierre que se via entretido com o diário. ‘’É estranho como as coisas estão agora. É estranho ter que se adaptar aos seus sonhos quando já estamos acostumados com a frustração...’’

—Vamos começar?- disse Michel rompendo o silêncio.

...

‘’Sempre me agradei das estrelas. Da vista desse lugar. No fundo, há algo que me atrai nessa cidade. Algo que me causa espanto, alegria. Estava sozinho, em uma praça há muito abandonada... meu refúgio, meu lugar. Engraçado como costumamos pescar lugares para tomar como posse. Todos gostamos de chamar um espaço de ‘’meu’’ ou ‘’nosso’’. Como se houvesse neles alguma extensão de nós.

E assim me sentia, estendido, entendido, entretido (não me julguem, gosto desses jogos repetitivos de palavras. É divertido e faz as coisas tomarem um ritmo engraçado. Não sei porque estou me justificando em meu próprio diário! Essas são MINHAS marcas pessoais! Elas DEVEM conter os jogos que gosto com as palavras! Se não te agrada faça o seu próprio livro de memórias e as evite! O que estou fazendo? Brigando com um leitor invisível? Droga, desculpe, voltarei então ao assunto). Sentia-me contemplado pelo lugar! É como se nos comunicássemos, a praça e eu. Sentia como se ela me contasse seu passado, seus dias de glória, antes do abandono, do descaso que a deixou assim; decadente, uma leve sombra do que fora em dias dourados (ou roubados).

Eu não lembro direito como conheci esse lugar. Foi em uma das minhas andanças. Mas senti por essa praça, quase no fim da rua, no fim do mundo, da cidade, do dia, de tudo. Enfim, senti por esse lugar uma enorme paixão! E recorria a ela sempre que precisava de solidão. Claro, todos nós precisamos de solidão. De um silêncio que permita que as idéias voltem ao seu lugar.

Fazia certo tempo que eu não tinha mais uma casa. Sejamos francos, aquilo se parecia mais com uma pensão do que com uma casa. Sempre rodeada de gente, de tensão! Ás vezes dava nos nervos! ( E aqui, Flavius, caso esteja lendo minhas palavras, deixo um pedido a ti. NÃO SURTE! Não estou dizendo que sua presença me enjoava, digo apenas que HAVIA MOMENTOS em que desejava a solidão e NÃO, ISSO NÃO SIGNIFICA QUE VOCÊ ESTIVESSE FORÇANDO AMIZADE NA MINHA CASA! Sempre fora muito bem vindo, e devia saber disso! ) Enfim, as vezes, ter tanta gente por perto me dava nos nervos. Mas eu sempre fui assim, nunca gostei da solidão. Sempre quis ter um reino, um séqüito! Gente me seguindo, me adorando, me lambendo, dependendo de mim! Ah, assim era meu lugar! Rodeado de gente a me admirar!

Voltando à necessária solidão: Estávamos sentados na quadra de esportes, o silêncio e eu. Ele, por cima de mim, organizando a bagunça dentro da minha cabeça. E ela (minha cabeça) ali, sentadinha, quietinha, esperando o toque final do artista. Eu e o tempo, parados, suspensos no ar. Esperando pacientemente minha cabeça se organizar. Esperando que ela dissesse: ‘Ok, vocês já podem se mover agora!’.

Fechei os olhos esperando por um abraço do meu amigo (o silêncio), mas ele se rompeu, partiu. Brutalmente assassinado por um cretino no skate! Correndo com sua barulhenta vitalidade contra a minha solidão! Na certa mais um otário que entendia esse lugar como seu! Algum boboca a desejar privacidade num lugar público! Senti-me agredido!

Era alto, ombros largos, pernas finas, cabelos castanhos bem curtos. Uma camiseta dos Ramones, camisa xadrez amarrada à cintura, calça rasgada... um clichê! Carregava no rosto qualquer expressão vazia de significados, como quem tem preguiça de se mostrar. Talvez por tédio, talvez por ter a voz demasiadamente calada pelos demais. Não importa, o fato é que havia em seu silêncio facial qualquer coisa de digna, de superioridade, algo que nos deixa sem graça com toda nossa expressão. Como se seu silêncio dissesse: ‘ Hey, você? Por que precisa se preocupar com tanto?’.

Levantei-me enraivecido, enfurecido com sua presença, com seu silêncio tão barulhento e com seu jeito de quem não faz questão de perceber ninguém(mas, veja bem, não perceber os outros, os mortais é uma coisa normal, natural, esperada. Mas ignorar a mim!? Oh, não! Isso não queria permitir!):

—Ei! – disse eu – Quem é você? Eu estava aqui antes de você!

Ele parou assustado, com aquela timidez que nos ataca quando somos surpreendidos agindo como nós mesmos na certeza de que ninguém nos vê! Provavelmente se sentindo exposto, ridículo, afrontado. Isso me dava certa vantagem, decidi aproveitar:

—E... eu sou o Guilherme... – ele respondeu num tom entediado, já visivelmente recuperado do susto.

—E eu sou o Fip. – fiz uma pose de autoridade.

—Fip? Isso é um nome? Tipo... de gente?

Corei! Desde quando pessoas se sentem à vontade para falar assim com desconhecidos? ‘Nome de gente’, era só o que me faltava!

—É como deve me chamar! – disse num tom quase patético.

—Ok. – disse voltando a manobrar com o skate como se, num instante, minha presença simplesmente deixasse de existir.

Evidente que isso me incomodou! Ninguém me ignora assim! Por mais papel de ridículo que eu esteja fazendo!

—Eu estava aqui antes de você chegar!

—Aquele banco também, e eu não ouvi ele reclamar.

Cretino! Babaca! Que merda de resposta foi essa? E ele soltava as palavras num tom quase inocente, entediado, sem expressão, sem repressão... nada. Apenas abria a boca e as deixava sair!

—Mas escuta aqui! Você tem que sair daqui! – eu sei que a essa altura já estava sendo ridículo demais, mas há momentos em que não podemos evitar de agir como completos idiotas! E há pessoas com o dom de nos fazer agir assim!

—Por que?

—Porque eu estava aqui, oras!

—Ah... – disse ainda manobrando e andando, num tom claro de quem não se importava nem um pouco e não se via inclinado a me ouvir.

—Então saio eu! – disse numa tentativa desesperada de impor qualquer autoridade e vitória em minha performance atrapalhada.

Ele continuou a fazer seus movimentos, andando em círculos, treinando suas manobras... ridículas! Aqueles pulos esquisitos, idiotas! Eu conseguia fazer coisas muito mais incríveis que isso! Diabos, eu sou um bailarino clássico! Um bailarino de repertório! Ele ficaria com certeza impressionado se me visse dando qualquer um dos saltos que sei fazer!... bem, na verdade sei que não! No mínimo acharia idiota ou ‘ coisa de viado’. Cretino! Bastardo! Que ódio desse mundo autista em que esse menino vive!

Andei lentamente até o carro, esperando que ele mostrasse qualquer reação... nada. Como seu eu fosse de vidro. Como se não estivesse ali. E eu? Um ridículo! Um completo idiota ali, parado diante do carro, esperando a aprovação de um desconhecido qualquer! E ele, com certeza me achando um completo estúpido, um mesquinho besta, um babaca... idiota, talvez nem tenha se dado ao trabalho de formar uma opinião! Que ódio! Que ódio de tudo, de todos, que vontade de voltar lá com o carro e atropelar aquele babaca! Vontade de morrer, de matar, de me esconder, de me reduzir a pó!

Não fiz nada disso, apenas voltei para casa...’’

...

Flavius sorriu com o canto da boca:

—Então você achava que eu não gostava de você, Michel?

—Sim, tinha certo medo de chegar perto.

—Nãão. – disse o menino já alterado pela bebida – Sempre foi o contrário! O extremo contrário! Sempre gostei muito de você, rapazinho!

Michel ria:

—Eu também! Que bom que somos amigos.

—Amigos uma ova! Você acha, Natasha, que somos só amigos? Olha só! Nascemos um para o outro! Não acha, Felipe?

Ria-se, bebia mais vodka, continuava a falar:

—Eu, você, Fip. Todos nós! Devíamos viver todos juntos! Numa eterna orgia! Uma eterna suruba. – ria.

Felipe, mais comedido na bebida, apenas observava o comportamento dos meninos. Michel ria-se de tudo o que ouvia, Natasha apenas dizia:

—OOOOw, disso eu gosto.

E Flavius ali, a se expor daquela maneira. A expor seus vícios, seus desejos, de um jeito que Felipe julgava tão... particular... corajoso...

—E você, Felipe? Já fez orgia?

—E... eu? Não... e... você?

—Ahahahah, bem que eu queria! Vamos fazer uma?

—Qualquer dia desses. – disse Natasha – Hoje não tem clima.

—Alguém viu o Fip? – disse Michel.

Todos riram.

...

—Eu não me lembro direito o que houve naquela noite. Sei que estávamos no jardim, Natasha, Flavius, Felipe e eu. Bêbados, falávamos sobre qualquer coisa que não me lembro.

—Orgias. – disse Natasha.

—Orgias? – repetiu Michel incrédulo – Não me lembro disso. Ahahaha, mas não duvido. Enfim, Estávamos lá conversando animados. Disso me lembro! Estávamos muito animados.

—Então falávamos mesmo de orgias. – disse Flavius com um sorriso sem graça.

Os garotos riram por um instante, com uma cumplicidade que deixou Rebeca com uma ponta de inveja por não possuir uma amizade assim. Michel prosseguiu:

—Então o Fip chegou todo esquisito. Todo nervoso, e disse: ‘Ah! Estão aí se divertindo?!’. A Natasha soltou alguma piadinha que ele não gostou e ele saiu batendo a porta.

—Por que eu que tenho que soltar a piadinha que ele não gostou? – disse Natasha.

—Porque era você quem sempre fazia isso!

—O que eu falei?

—Não lembro.

—Eu lembro. – disse Flavius – Era algo mais ou menos assim : Sim papai, estamos fazendo um castelo de areia! Não quer brincar com a gente, papai?

—Eu disse isso?

—Disse! – respondeu Flavius rindo – Com aquela voz de criança que você fazia de vez em quando!

Natasha riu alto:

—É mesmo! Ele ficou puto da vida! E saiu batendo as portas, não foi?

—Sim. – disse Michel – Mas antes ele falou alguma coisa, não era? Ele fez o maior drama, disse que ninguém se importava com ele e tal. Que pra gente estava tudo bem desde que houvesse bebida e uma casa para ficarmos. Falou que ninguém ligava pra ele e subiu.

—Aí eu fui falar com ele. – disse Flavius.

—Não! Você queria falar com ele, mas eu não deixei. – disse Natasha.

—Não! Eu fui sim.

—Não, Flavius, não lembra? – riam-se, deixando Pierre e Rebeca completamente à parte de seus universos, pareciam adolescentes, crianças no recreio, velhos amigos a relembrar os bons tempos – Eu te segurei pelo braço e lambi sua orelha.

—Me segurou pelo braço? Com o seu enfaixado?

—Ah eu tinha dois braços menino! Usei o outro!

—Que seja! O Fip chegou em casa e deu um pití. – disse Michel para Pierre e Rebeca que, a essa altura, riam-se da situação.

...

(Pierre) – Seu nome?

(Michel) – Michel.

(Pierre) – Onde conheceu, Fip?

(Michel) – Na minha casa, em um jantar de família.

(Pierre) – Como era a relação de vocês?

(Michel) – A princípio péssima! (risos) Eu o odiava! Detestava aquela pose de rei e aquela necessidade de agressão! Achava o Fip o tipo de pessoa que só enche o saco! Que acha legal ser malzinho e sai por aí humilhando os outros, sabe? Hoje não penso muito diferente, na verdade. Mas enxergo o ser humano atrás disso tudo.

(Pierre) – E como é esse humano atrás do Fip?

(Michel) – Generoso! Ele acolheu a mim e a Natasha em sua casa quando precisamos! E nós não fomos às únicas pessoas para quem ele fez isso! Eu já vi Fip tirar gente da rua! Da rua! E colocar dentro de casa! Imagine só! Com a Natasha mesmo, era uma menina que ele nunca tinha visto na vida! Você consegue pensar nisso? Em colocar uma completa desconhecida dentro de casa? Quer dizer, você não vê pessoas fazendo isso o tempo todo! Ele não podia ver ninguém passando necessidade! Não suportava o sofrimento alheio! Assim, sofrimento de fome, frio, essas coisas, ele não suportava as injustiças sociais.

(Pierre) – E o que não gostava nele?

(Michel) – Seu ego, sua arrogância. Ele exigia atenção o tempo todo. Tinha que ser o melhor em tudo! Era super competitivo! Ficava enfurecido quando perdia qualquer disputa, até mesmo um par ou ímpar!

(Pierre) – E não pensa que, talvez, isso explique sua generosidade? O fato de ele querer que os outros dependessem dele?

(Michel) – Não. Fip era generoso de verdade. Ele gostava de ver os outros se dando bem com a sua ajuda. Talvez tivesse um pouco de ego nisso, de ele olhar aquilo e pensar: ‘’nossa, fui eu quem fiz essa pessoa chegar aí.’’. Mas isso não torna suas ações de ajuda mesquinhas. É um prazer natural o de saber que ajudou a construir coisas.

(Pierre) – E como era a relação de vocês nos últimos anos? Alguma coisa mudou depois da fama?

(Michel) – Mudou no sentido de que ele não tinha mais tanto tempo disponível. Claro, antes morávamos juntos, depois mudamos cada um para uma cidade, ambos com seus trabalhos, isso dificultava muito as coisas. E Fip era muito competitivo, gostava de tudo muito perfeito! Desaparecia por completo sempre que estava ensaiando um espetáculo! Não abandonava os ensaios até que estivesse tudo perfeito! E ele cuidava de tudo! Da luz, o figurino, do cenário! Acompanhava tudo, tudo de perto. Era impossível encontra-lo nessas épocas. Mas nos falávamos sempre que dava. Às vezes ele me pedia para ir aos ensaios para dar uma opinião e vice-versa. Nos telefonávamos, marcávamos visitas, viagens, enfim, continuávamos a participar da vida um do outro, mesmo que a distância.

(Pierre) – E nunca pensaram em trabalhar juntos?

(Michel) – Pensávamos sim. (pausa) Mas deixávamos sempre para depois. ‘Depois que eu terminar essa peça. Depois que eu estrear essa dança.’ . E assim foi ficando, para depois, e depois. (pausa) Pensávamos que tínhamos todo o tempo do mundo pela frente. Mas o tempo se esgotou, e levou com ele tudo. (pausa) Tudo o que sonhamos juntos.

(Pierre) – O que diria para ele agora? O que diria se tivesse certeza de que ele pode te ouvir?

(Michel) – Que eu acredito. Apesar de nunca ter parecido que sim. Eu acredito na sua inocência.


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