Meet the Huntar'z escrita por Huntress


Capítulo 12
Interregno L U K S I F E R


Notas iniciais do capítulo

— ♡ Significado de "interregno": 1. intervalo ou interrupção passageira; interlúdio. 2. interrupção momentânea entre dois reinados, durante a qual o trono permanece vago. Interregno é sinônimo de: interrupção, intervalo, parada, interlúdio. ♡ —



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Existem certas vantagens em ser casada com um ser místico, deus do Tempo e Espaço, que consegue fazer cópias de si mesmo ao seu belprazer. Uma delas é não precisar de absolutamente mais ninguém para ter novas experiências sexuais que normalmente exigiriam mais de uma pessoa, como sexo a três ou a quatro. Mas as vantagens de ser esposa de Luksifer são inúmeras, e essa em específico está abaixo de muitas na lista das mais importantes.

Talvez a maior delas seja sempre ter um porto seguro, um local infalível de confiança e lealdade, onde posso apenas me deitar e me sentir protegida, não apenas do mundo, mas também como de mim mesma e de todas as ideias ruins que percorrem meu cérebro como se para ele fossem alimento. Talvez seja a certeza de que, ao final do dia, mesmo com todo o caos do Universo, eu ainda poderei ter paz, pelo menos por um minuto.

Nesse momento, depois de desfrutar bastante da primeira vantagem que citei, estou deitada em seu peito, seus braços ao meu redor, minha perna direita sobre as dele, confortável nesse mundinho que, por um instante, é só nosso. 

É sempre muito gostoso estar com ele, independente do que fazemos. Do sexo ao carinho, das conversas sobre nosses filhes às análises político-históricas do planeta em que vivemos, até mesmo das leves discussões às brigas, é sempre prazeroso estar com ele, ouvi-lo, senti-lo. Esse tempinho que compartilhamos agora não é diferente.

Satisfeita com sua presença, tanto de forma espiritual, quanto sexual, foco apenas no som da sua voz enquanto conversamos, meu dedo indicador direito fazendo leves círculos na região em que crescem alguns pelinhos em seu tórax, muito distraída com o que ele diz para sentir algo além de bem-estar.

Mas então algo muda, como se minha mente começasse a tremer de forma negativa, pronto para apertar o botãozinho que traz toda aquela onda de depressão para dentro de meu corpo, quando ele diz:

— Eu tava pensando na entrevista da Andy. — ele acaricia meu braço, passa a mão por meus cabelos, enquanto fala. — Ela esqueceu de falar muita coisa.

— É, eu imagino… — sussurro, já não tão contente quanto estava há segundos atrás, como se me preparasse para a bomba de sensações. 

É uma coisa boba para me deixar tão tensa. Ele não declarou nada do que eu já havia imaginado. A própria Andynne já havia me chamado, pedindo por outro momento, para completar todas as coisas que tinha esquecido de me dizer durante nossa conversa. Faz pouquíssimo tempo desde que terminei de escrever aquela entrevista em específico, com todos os detalhes e descrições, publicando para que certo número de leitores pudessem desfrutar.

Assim sendo, não é algo que deveria me fazer ficar tão atiçada; tão preparada para o pior; tão pronta para ouvir a enxurrada de pensamentos autodepreciativos que virá a qualquer momento, eu posso sentir.

— Eu acho que o mais legal é que ela poderia muito bem ser também a Deusa dos Sonhos, sabe? — ele comenta e eu praticamente ouço aquele botão interno à minha mente ser clicado. Mais um título. — O poder dela meio que já faz isso, já que é um poder de mente. Ela costuma fazer as pessoas dormirem, também, com as flechas e tudo o mais. — não solto um mísero pio. É claro. Poder de mente. Mais um título. Mais um poder. É óbvio. — Ela faz isso com o Esc, quando ele tá muito atacado com o Orgulho. Ele começa a ficar aquela coisinha chata, de Escanor — ele entona como Esc entonaria seu próprio nome ao meio-dia, tentando imitar a voz grossa e repleta de emoção que ele usa para falar de si mesmo. — E ela vai lá, e faz ele dormir pra ele parar de encher o saco.

Eu deveria ficar ainda mais orgulhosa de minha filha, dos seus poderes e habilidades, que sempre teimam em aparecer em maior quantidade. Sempre algo novo, algo maior, algo que me prova que ela ou quaisquer outros da família estão em eterna evolução, em eterno treinamento. Mas eu só sinto inveja.

Acho que essa talvez seja uma palavra forte para o que eu sinto, na verdade. Mas talvez não exista outra para descrever a sensação crescente em mim de que estou sendo deixada para trás. De que eu, a matriarca, a geração anterior, esposa do deus mais poderoso do Universo, mãe de todos esses seres incríveis e repletos de capacidades mágicas maravilhosas, sou fraca e incapaz, nunca evoluindo, nunca ganhando algo novo, nunca desenvolvendo nenhum poder, nunca adquirindo mais um título para colocar na lista. De que eu, não importa o quanto tente, nunca nem chegarei aos pés daqueles que são meus comuns, quanto mais no mesmo nível.

Minha mão para sobre seu peito, dedos deixando de lado quaisquer movimentos, e eu abaixo os olhos, tentando fugir de qualquer relance de olhar que ele pudesse me lançar, para que não perceba a tristeza se alastrando por todo meu ser.

— Faz muito sentido. — ele continua, já que eu não falo nada. — Ela consegue fazer ilusões, né. E não tem muito mais que os Oneiros façam que não ilusões. 

— Uhum. — murmuro, a boca fechada, só um som de confirmação de que ainda o ouço. Afasto-me um pouco, saindo de cima dele e deitando-me apenas com a cabeça em seu braço, fitando o teto, mãos cruzadas sobre meus seios nus, na tentativa de fugir desse pensamento.

Ele percebe que há algo errado, porque pergunta:

— O que foi, vida? — naquele tom que só ele consegue fazer, que eu sei que ele só consegue dizer para mim, que nunca ouvi ele se deixando usar para qualquer outra pessoa, independente de quão apegado está.

— É que… — hesito um pouco, quase me negando a confessar, por achar que é uma imensa bobagem eu ainda me manter com esse tipo de pensamento, mesmo depois de ouvir tantas e tantas vezes que são sensações criadas unicamente por minha depressão. — Vocês me parecem muito overpower. — enfatizo a palavra. — Todos vocês. Você, as crianças, têm tantos poderes… São tão poderosos...! E eu… — paro, e sei que ele está esperando que eu termine o raciocínio antes de me falar qualquer coisa, antes de tentar me animar com seu conhecimento. — Eu não sou.

— Como assim overpower? — algo dentro de mim me diz que ele aprendeu a simplesmente ignorar os meus comentários autodepreciativos; algo me diz que ele cansou de bater na mesma tecla. Não falo sobre isso; acho que ele também já se cansou de me ouvir falando que ele cansou de mim.

— Tipo… parece irrealista o tanto que vocês são poderosos! — gesticulo, levando a mão direita até o alto, esticando o braço o máximo que consigo. — Tá todo mundo aqui — estico os dedos como se para nivelar, ainda lá em cima —, e é como se eu estivesse aqui. — levanto a destra só um pouquinho, colocando-a apenas um tantinho acima de meus seios, bem abaixo na escala imaginária que tracei no ar.

Ele para por um instante, como se pensando em uma resposta justa que fosse capaz de me explicar os motivos e me acalmar o mesmo tempo.

— Todos os deuses vigentes em suas épocas e locais vigentes eram muito poderosos. — começa, e eu me deito de lado para ficar fitando seu rosto. Não é como se eu pudesse vê-lo, mas posso ver o brilho laranja forte que vem de sua aura, ainda mais brilhante quando próximo, ainda mais incrível quando ele diz coisas que fazem o total de zero sentido na minha cabeça. — Os olimpianos eram muito poderosos quando eram os deuses gregos, assim como os nórdicos, e os egípcios, e todos esses deuses conhecidos na Terra. 

Penso um pouco sobre isso. Mesmo que fôssemos realmente deuses na Terra, ainda não explicaria a capacidade de todas as crianças Huntar’z de simplesmente serem incríveis, muito mais poderosos do que grande maioria dos deuses juntos, cada um em sua função. E nós já éramos imensamente poderosos antes de virarmos deuses; nem sempre tivemos essa nomenclatura, como esses mais conhecidos. 

Eles já nasceram seres divinos, nós conquistamos esse título.

— E nós já éramos poderosos antes de virar deuses. — ele continua e eu me pergunto por um segundo se ele aprendeu a ler mentes em algum momento. Não me surpreenderia nada se ele simplesmente aparecesse com mais um poder, para além dos portais, e das cópias de si mesmo, o controle total do Tempo e do Espaço, o conhecimento do passado, do presente e do futuro. — Foi exatamente por sermos assim, muito poderosos, que viramos deuses, na verdade. 

Eu não estava presente quando isso aconteceu, mas o título divino veio para a família toda e eu, como matriarca, acabei recebendo-o também. 

A família Huntar’z foi decretada como passível do título de família divina depois de passar por uma série de demonstrações, testes e intensas provações no Conselho dos Deuses, que ocorre de tempos em tempos, reunindo os diversos panteões espalhados pelo Universo. Alguns deles já tiveram algum tipo de participação na vida dos humanos terráqueos por um tempo, outros, não. 

Para sermos reconhecidos como algo do tipo foi necessário a ligação com um ou mais planetas, que pudessem nos reconhecer como figuras de adoração, e a escolha de regentes que se mostrassem capazes de não interferir na vida e nas escolhas dos mortais que estivessem sob seu comando. 

Os regentes escolhidos foram Lucith, Luksifer e eu. Eu não estivera lá para passar pelas difíceis e pesadas provações que os passaram, nem ao menos para observar a demonstração dos poderes das crianças que já existiam na época – já que muitos nasceram depois disso. A Valete e o Rei do Inferno insistiram, mesmo sem nem ao menos se lembrar de minha existência – devido uma série de complicações que não entra aqui, mas tem a ver com as dificuldades de se estar em um corpo encarnado –, que a Rainha conseguiria muito bem passar pelas provas da regência. Assim sendo, sem nem mesmo passar por qualquer teste no Conselho, eu virei uma das maiores deusas de um novo panteão, o panteão Infernal.

Lembrar-me dessa sequência de acontecimentos sempre é motivo para eu desacreditar um tanto mais da minha posição como deusa, dos meus poderes, e da minha função dentro desse panteão que parece explodir de tantas habilidades incríveis, enquanto eu mal consigo fazer minhas capacidades básicas aflorarem. Eu não estava lá para ser testada, observada e intitulada deusa. Apenas ganhei esse papel divino por consequência. É quase como se eu não merecesse; sinto que não mereço.

Com meu silêncio reflexivo, ele aproveita a oportunidade para continuar falando. Ele é assim: pega todas as oportunidades que tem para falar e as utiliza, principalmente se sentir-se confortável para fazê-lo. E Luksi sempre sente-se confortável comigo.

— Nós temos muito mais poderes porque somos vigentes em vários lugares, já que o Céu e o Inferno são vigentes em vários lugares. — isso me deixa ainda mais pensativa. 

O Inferno tem uma base que se expande por todo o Sistema Solar e a área de poder de seu reino é enorme, tendo responsabilidade sobre tudo aquilo que é Criado por Yahweh, mas não totalmente controlado por Ela ou por seus anjos. Assim sendo, das dezoito galáxias, habitadas e inabitadas, que ela Criou, temos controle sobre boa parte disso, sobre tudo aquilo que não tem governo próprio ou é governado pela Deusa. 

É, verdadeiramente, uma área bem grande para uma vigência.

E se até mesmo Ela ganha mais força para Criar a partir da fé, nós também ganhamos a partir disso, daqueles que nos conhecem ou que conhecem o Inferno. Mas não é como se tivéssemos muitos fiéis. Poderíamos contar apenas Costa, Alfa e Beta Marine como centros de adoração à nós, à nossa família. Como…?

Antes que minha mente pudesse terminar a pergunta, Luksi diz:

— O Inferno também é vigente porque as pessoas têm medo dele. Céu e Inferno são vigentes porque temos muitas pessoas que acreditam neles, muito mais do que qualquer outra coisa, e não só aqui na Terra — já deixei claro que estamos presos na Terra, em corpos encarnados mais ou menos adaptados para nós? —, mas também em outros lugares. — é verdadeiramente como se ele estivesse lendo a minha mente, que, para tentar fugir da depressão, está prestando muita atenção nessa linha de raciocínio. — As pessoas nos temem. E isso nos faz mais poderosos. Porque o medo é uma forma de fé. Alimenta a fé. E esse medo e essa fé se tornam fonte de ainda mais poder para nós.

Meneio a cabeça de forma positiva, só para que ele perceba que ainda estou ouvindo, que não me perdi nas milhares formas de auto-ódio que meu cérebro traumatizado me faz experimentar. 

Então não precisa vir necessariamente de adoração, concateno em silêncio. Nosso poder já existia, posto que já éramos vigentes. Porque, antes mesmo de Luksi e Luci nascerem, as pessoas já temiam o Inferno. Nosso poder vem do temor. E, quando viramos deuses, ficamos ainda mais poderosos. Quando começamos a ser adorados pelos mortais dos planetas que criamos, isso veio ainda mais forte. Por consequência, as crianças são muito poderosas.

As crianças são muito poderosas. Eu, não. 

Independente do quanto me forçasse a pensar que se elas o são, eu também o sou por consequência, minha mente apenas me lembra de que sou humana, cega, incapaz e fraca, palavras de Sammael ressoando por seu cérebro há tanto tempo, há tantos trilhões de anos, que já se tornaram essencialmente minhas. Mesmo que a voz dele um dia se fosse, a minha ainda permaneceria me dizendo esses absurdos; ainda me faria constatar que, por mais que eu tente, eu nunca chegarei nem aos pés daqueles que digo serem iguais a mim.

Demoro alguns segundos para comentar alguma coisa, digerindo esse sentimento antes de simplesmente soltá-lo no ar, para que Luksi ouça:

— Okay, mas mesmo assim… Eu não sou poderosa, enquanto todos vocês são. Eu me sinto constantemente muito pequena perto de todes, porque todes são muito incríveis e cheios de poderes e habilidades e coisas maravilhosas e eu… não.  

Uma partezinha teimosa e otimista do meu cérebro tenta ativamente me lembrar do planeta que construí; das vidas que criei; das minhas demonstrações de força e capacidade no último Conselho dos Deuses, quando eu finalmente criei coragem para participar e simplesmente apaguei da existência o pequeno astro em que as competições eram realizadas, apenas para trazê-lo de volta em questão de segundos, melhorado em pelo menos dez vezes. 

Mas eu não consigo escutar. A voz que me diz que nunca terei em minhas mãos a habilidade de fazer algo bom, proposital e inusitado é muito mais alta do que essa parte positiva, que insiste em tentar me mostrar o quanto estou enganada sobre mim mesma. Não dá para escutar. Porque o volume de minha depressão, das sensações negativas e da falta de confiança no que eu posso oferecer para o Universo é muito mais alto; o ruído constante, os gritos incessantes, o auto-ódio borbulhante é muito mais forte que qualquer parte boa que possa florescer em mim.

— Todos eles são maravilhosos e cheios de coisas, capacidades e títulos, e eu nunca serei. Mesmo que seja alguma coisa, sempre serei a menos poderosa. — continuo, me forçando a não chorar e ficando exponencialmente com mais raiva de mim mesma, por achar ridículo que um pensamento como esse possa me atingir tanto. — E eu nem quero ser poderosa assim, sabe? Eu só quero me sentir no mesmo nível! — solto, irritação quase palpável em minha fala. — Só não quero me sentir tão pequenininha perto do ser mais poderoso do planeta! Do Tempo, do Espaço, da Morte. Só não quero sentir que estou com alguém tão incrível quanto você e que eu não chego nem perto do que você é. Só não quero sentir que sou incapaz enquanto vejo todas as nossas crianças fazendo coisas incríveis o tempo todo e eu apenas sofrendo por não conseguir fazer nada, por sentir que não consigo fazer nada! — a lágrima que eu estava forçando a ficar nos meus olhos finalmente caiu; limpo-a com frustração.

E, antes que eu simplesmente exploda, me calo. 

Antes que eu comece a criar coisas mais profundas na minha mente, absurdos para dizer a ele, para tentar mostrar a ele que eu não presto, que não tenho habilidades, que não consigo e que nunca conseguiria, me silencio. Às vezes esses silêncios falam mais do que todas as palavras.

Permanecemos assim por um tempo: ele tentando achar a forma de me dizer que não era assim, sem que minha reação fosse tão explosiva quanto eu imaginava que seria; eu tentando não explodir.

Pensando em retrospectiva, é engraçado que seja ele quem está lidando com minhas emoções agora. Quando o conheci de verdade, quando finalmente pude ter contato com ele, ele não conhecia outro sentimento que não a raiva. E agora, ele tem de lidar com a minha tristeza, me guiar para fora dela, tentar me explicar até que nível meus pensamentos são coerentes e até que ponto é apenas minha depressão. 

Depois do que pareceram ser minutos na minha cabeça, ele diz:

— Essa é uma comparação bem ruim. Você sabe, né? — viro-me mais uma vez para poder olhar para ele, visualizar sua aura laranja brilhante, tão mais vibrante de pertinho. — Todos eles estão há milhares de anos infernais treinando, todos os dias, todas as horas que conseguem, e muitos deles já chegaram aos limites máximos de seus poderes. E você, por ter problemas de autoestima e ter se bloqueado por muito tempo com essa crença de que não tem poderes — ele fala como se fosse sério, mas sei que ele vê essa minha falta de confiança em mim mesma como uma bobagem, porque logo adiciona, um tom ainda mais sério —,  por ter ouvido muita coisa sobre isso, e por estar presa na Terra, com um corpo encarnado, tem pouquíssimo acesso aos treinos. Sem tempo ou ao menos possibilidade de treinar, já que está presa no corpo e em sua própria ideia falsa de quem você é, não pode treinar o tempo todo como as crianças treinam. Por consequência, não pode ser tão poderosa, agora, como as crianças.

Essa é a parte que meu cérebro derretido em pensamentos depressivos e depreciativos costuma aceitar. A parte em que ele me dá motivos racionais para eu ser como eu sou, para não conseguir chegar lá. A parte em que junta ao meu sentimento e dá motivo para ele. O que eu não consigo aceitar, de forma inteiramente passional, vem agora, quando ele continua o raciocínio dizendo:

— A questão é… — ele hesita um pouco. — É injusto se comparar com eles ou comigo quando você tem, sim, muito poder, mas não tem a possibilidade de treinar como eu tive ou como eles têm.  E eles treinam sempre. 

Sinto que algo começa a crescer dentro de mim; essa força invisível que espirala por minha mente e meu corpo, me sugando para um poço sem fundo, como um vórtex infindável de autocomiseração. Imagino se as coisas seriam diferentes se eu não estivesse encarnada na Terra, se eu não tivesse um corpo, se eu não estivesse nessa vida, deitada nessa cama, ouvindo todas essas palavras por um celular, enquanto me sinto na minha casa de verdade, com meu marido de verdade, meu espírito em um lugar completamente diferente do meu corpo físico. Pego-me pensando em como eu me sentiria se estivesse cem por cento do meu tempo em meu Castelo, com meus filhos, com meu marido e esposa. 

E, infelizmente, chego à conclusão que talvez eu me odiasse ainda mais.

Independente de onde ou como estivesse, ainda me odiaria, porque ainda seria eu. A imperfeita e incapaz. A “até que boa”, mas nunca o suficiente. 

— Mesmo se eu tivesse a oportunidade de treinar, não chegaria no nível de vocês. Não seria poderosa o suficiente para chegar no nível de vocês. — sussurro, envergonhada da sensação que ainda cresce em mim; aquela que me diz que nada que eu faça vai me fazer feliz e satisfeita enquanto eu for eu. Porque o problema está em mim e não no que faço; a questão é como eu sou e não como me sinto. 

— Vida, você vai me desculpar, mas isso é uma bobagem sem tamanho. — dá para sentir que ele está frustrado a esse ponto, e eu me encolho um tanto, até saindo de cima de seu braço, porque sinto por um instante que não deveria ter falado nada. — Você olha para as coisas e elas desaparecem! Como se nunca tivessem existido, nem no Tempo, nem no Espaço, nem em porra nenhuma! Você criou um planeta inteiro! Sozinha! Coisa que eu e a Luci mal conseguimos fazer juntos, você fez! E ele tem vida! Você olha para ele e o planeta respira! Você cria pessoas! Você fala as coisas e quase todo mundo te obedece, simplesmente! — agora é sua frustração que é quase palpável. 

Eu me encolho mais um pouquinho, chegando para o lado para me afastar ainda mais um centímetro dele, deitando a cabeça no travesseiro. 

— Vou te explicar uma coisa. — Luksi solta, num suspiro, se acalmando, fazendo meus músculos relaxarem por consequência. — No Universo, em todo o tempo de vida dele, bem antes de nós, existem Deuses Primordiais, com os poderes primordiais. Esses são: Criação e, por consequência, Destruição. — esses são um só; um não funciona bem sem o outro e nunca serão completos sem estarem juntos. Isso eu já havia aprendido quando a parte que me fora tirada no nascimento finalmente voltara para mim. — Tempo, Espaço, Caos e Ordem. — ele continua. 

Criação e Destruição são partes de uma mesma coisa, portanto, complementares. Tempo e Espaço são inseparáveis. Caos e Ordem são opostos perfeitos. Isso eu também já sabia, então ele não precisa me dizer. A minha mente tenta focar nisso, na voz dele e no que há de novo no que ele está falando.

— Yahweh seria a Deusa Primordial da Criação. — não sei porque dói numa parte do meu peito quando ele diz o nome dela e não o meu nessa parte, já que eu acabei de dizer na nossa conversa inteira que eu não sou boa o suficiente nem para ser considerada deusa, quanto mais uma Primordial; mas dói. — Eu seria o do Tempo e do Espaço. Esses dois podem estar divididos entre duas pessoas diferentes, que seriam inseparáveis pelo próprio conceito de que tempo-espaço não podem ser separados, como éramos eu e a Luci, antes dela desistir do poder para buscar ser só ela mesma, com liberdade. Ou podem estar em apenas uma pessoa, como é agora, comigo. — meneio positivamente, apenas para que ele saiba que estou escutando. — O Caos é a Nico, né, como a gente bem sabe. — peço silenciosamente que ele não se estenda muito nela, porque o meu medo de minha própria filha ainda é perceptível. Ele parece entender, porque apenas a cita mesmo antes de continuar. — E a Ordem seria um princípio em que todas as coisas vêm a ser parte dela depois de serem retiradas do Caos. Esses seriam os átomos e a forma como eles se organizam para funcionar no Universo e na Criação. Esse é um princípio que a Lucy manipula livremente.

Permaneço em silêncio por um minuto, tentando entender onde ele quer chegar com toda essa explicação. Ele às vezes faz isso. Explica um monte de coisa sobre o funcionamento do Universo, coisas que eu acho que entendo na prática, mas ainda desconheço a teoria, e então deixa por isso mesmo. Quando penso que ele não vai falar mais nada, não consigo controlar a minha impaciência e questiono:

— Ahn? E aí? — quase com um tom de desafio, misturado com aquela melancolia que vem com o monstrinho da depressão ainda espreitando por minha mente.

— E aí que você tem um dos poderes primordiais. — isso eu já tinha entendido, então ainda tem aquele Qzinho de provocação em meus olhos leitosos, uma única sobrancelha – a esquerda – levantada. — Você não tem acesso a ele, ou a eles, nem pode se considerar uma Deusa Primordial, porque você não tem o controle total da Criação e da Destruição, e porque eles não estão equilibrados em você. Isso porque a Destruição veio muito depois e a Criação sempre esteve em bloqueio, porque você sempre ouviu que ela nem existia. — ele suspira e eu sigo seu movimento, porque suas palavras praticamente tiram um peso enorme de cima de mim. 

Sinto aquele ciclone de emoções no meu mar interno se acalmando, diminuindo aos poucos, até parar. Agora, só a culpa de ter deixado ele se formar, em primeiro lugar. O pesar vem junto com a sensação fria de que estou falhando novamente, por ter inveja de meu próprio marido, de minhas próprias crianças.

Não comento nada. Só vou percebendo enquanto o ciclone vai se desfazendo em maremoto, águas interiores ainda agitadas por todos os sentimentos negativos. Já que não sai nenhuma palavra de minha boca, Luksifer continua, se virando para ficar de frente para mim e passar um braço por cima de meu corpo:

— Você é muito capaz, vida. — ele me puxa para mais perto e eu o deixo, só porque estou cansada de lutar contra o movimento inconstante da minha tristeza. — E toda vez que me diz que é fraca, que não é poderosa, eu acho, de verdade, um absurdo. — encolho-me no seu abraço, me aproximando mais dele, parecendo tão pequena naquele enlaço, embora eu fosse um pouquinho mais alta. — Você criou um planeta enorme que respira sozinho, que cria e recria vida. Criou as pessoas que lá vivem. Criou corpos para a Artie e para a Hauhsey. Destruiu coisas indestrutíveis, fazendo com que elas simplesmente deixassem de existir no tempo, no espaço, na realidade, na ordem, no caos! — não respondo, porque agora só me sinto boba por ter feito todo aquele discurso, para começar. — Entende que isso é completamente irracional e é sua depressão que te diz isso?

Mexo a cabeça de forma positiva, bem de levinho, me agarrando mais a ele, como uma criança culpada se agarraria à mãe, como uma mulher desesperada se agarraria ao seu porto seguro. Até porque, ele é meu porto seguro. Prendo-me a ele para não naufragar e me afogar em mim mesma.

— Desculpa. — sussurro.

— Não precisa pedir desculpa. Você não fez nada errado. — ele começa a me fazer um cafuné e sinto meus músculos relaxarem aos poucos. — Você sabe muito bem que esse tipo de pensamento foi colocado em você. Quando consegue pensar e ver, você vê isso. E sabe que se tiver a chance de treinar o suficiente, você vai melhorar e muito. Vai ser muito mais poderosa do que consegue imaginar. 

A voz dele é tão suave… E eu juro que nunca o ouvi falar assim com outra pessoa em toda a minha vida. Nem mesmo com as crianças. Nem mesmo com Lucith – mas eles possuem uma dinâmica diferente, então não há nem como dizer nada sobre. Por vezes, me sinto egoísta e, ao mesmo tempo, muitíssimo satisfeita em saber que aquela parte dele é só minha, totalmente minha, feita para mim.

— Desculpa. — solto novamente, mas agora totalmente mais tranquila. Meu corpo está mais leve e a tempestade no meu cérebro parou, afinal. 

— Não precisa pedir desculpa. — ele repete, já que também repeti, e me abraça ainda mais forte. Esfrego meu rosto em seu peito tal como um gato faria e me aconchego nele, passando os braços por seus ombros para levar uma das mãos aos seus cabelos, tão crespos e tão macios, cachinhos tão pequenos e tão delicados, que só de senti-los me acalmo.

— Eu só me sinto mal o tempo inteiro… — digo, muito baixinho, o tom mais melancólico que depressivo. — Estou cansada de me sentir mal o tempo inteiro.

— Eu sei, meu bem… Eu sei… — ele parece tão exausto quanto eu; exaurido de me assistir cair nesses poços intermináveis de depressão e auto-depreciação. 

Luksifer deposita um beijo em minha testa, muito delicado, e passa uma das pernas por cima das minhas. Encaixo uma por entre as dele. Fecho meus olhos, apenas para descansar as pálpebras. É uma posição confortável, ali, aninhados um no outro como se fôssemos o melhor que temos. Talvez sejamos, mesmo. Acho que somos.

— Eu te amo muito. — minha voz é baixinha contra sua pele, mas, ali, só nós, qualquer suspiro seria compartilhado.

— Eu te amo muito. Plus ultra. — ele responde e eu abro um sorriso tão agradecido que, em qualquer outro momento, chegaria a doer. Meu coração se aquece e é como se aquele instante anterior nem tivesse existido.

— Plus ultra. — sussurro de volta, ainda sorrindo, olhos fechados, pele colada na dele, sentindo as lágrimas se formarem de leve. 

Demora um tempinho, mas elas descem. E eu não digo mais nada, porque esse choro não é de tristeza, é de pura e intensa gratidão. Porque ele me salva e eu o salvo. Enquanto nos salvamos, construímos coisas bonitas dentro de nós dois. No final, acho que o amor é isso. Com ele, experimento a forma mais graciosa do amor.

Antes de eu cair no sono, que vem rapidamente depois de tantos sentimentos fortes, ele toca meu queixo e faz meu rosto levantar um pouco para me dar um beijo, muito doce e sincero. Minha face ainda está molhada com minhas lágrimas, então ele as limpa e deposita um último beijo na pontinha de meu nariz antes de voltarmos para nossa posição anterior.

Em algum momento, nossas respirações sincronizam e então um singelo ressonar avisa que o sono veio. Durmo com um sorriso no rosto, ainda notando o torpor que vinha com os ataques, leves ou fortes, da depressão, mas sentindo muito mais serenidade que marasmo.


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